Arquimedes e o Governador do Rio de Janeiro | Parte 1

Odemilson Louzada Junior
6 min readJun 15, 2015

Meu nome é Arquimedes. Ninguém aqui sabe disso, claro. A família se refere a mim pelo estúpido nome de Tutão. Creio ser dispensável dizer que detesto esse nome. Contudo, o fato de eu detestá-lo não me cria tanto incômodo. Minha construção mental paciente e contemplativa faz uma excelente separação entre a racionalidade e a emoção necessárias para analisar os comos e os porquês de meu rebatismo, e de que ninguém aqui sequer saiba que o nome que adotei como sendo o meu seja realmente Arquimedes. Fosse eu um humano, provavelmente me incomodaria mais com Tutão. Mas é realmente um incômodo menor, embora eu ainda o considere um nome detestável.

Para terminar devidamente minha apresentação, devo dizer aqui que sou uma tartaruga. Para ser mais biologicamente exato, sou uma tartaruga gigante de Aldabra ou tartaruga de Seychelles, como queiram. Apesar de nascido na distante ilha do Oceano Índico, considero-me um cidadão carioca. Apesar de não ter nascido nessa terra, já me considero como os nativos daqui gostam de dizer, um carioca da gema. Afinal, dos meus cento e noventa anos de vida já são mais de cento e setenta anos em que ou tive residência fixa, ou estive não muito distante, e sempre envolvido e interessado por este pedaço de terra que vocês humanos passaram a chamar há umas décadas de “cidade maravilhosa”. Quão irônico esse título. Para quem conheceu, o Rio de Janeiro já não era uma cidade tão maravilhosa nas décadas de trinta e quarenta do século XIX. E quanto mais o tempo passa, menos maravilhosa ela vai se tornando. Mas isso é assunto para outro momento. Em comparação com o apelido da cidade, considero um termo mais agradável e adequado o dado a seu morador típico, o “carioca da gema”. Até mais adequado para mim, inclusive. Afinal, mais que qualquer um de vocês primatas, eu sim posso dizer que fui a gema de um ovo um dia.

Foi coisa de pouco mais de um ano depois de deixar de ser uma gema de ovo que cheguei a esta terra em posse de um navegante inglês. Lembro bem poucos detalhes dessa época da minha tenra juventude, de minha chegada ao vibrante Rio de Janeiro, capital de um país recém-independente. Creio que então, ainda chamado de Arquimedes, fui dado como pagamento de uma dívida de jogo por parte do inglês, e pouco tempo depois vendido pelo credor do inglês a título de curiosidade a um dono de terras da localidade de Itaboraí. Por força de conhecimentos em comum, esse homem era conterrâneo e conhecido de um proeminente Deputado Geral da corte, nativo da mesma localidade. O Deputado Geral interessou-se por mim, e tencionava enviar-me para a fazenda, mas por força de seus cargos na capital, apesar de dono de terras em Itaboraí, se afeiçoou a mim me fazendo residente na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde vivi os episódios mais relevantes de minha existência, da década de trinta do século XIX até a década de dois mil e dez do século XXI.

Tartaruga de Aldabra ou Tartaruga de Seychelles, ou ainda Tartaruga Gigante de Seychelles (Aldabrachelys gigantea)

Embora o Deputado Geral tenha sido um homem importante em sua época, tendo além de Deputado Geral sido também Senador, e chegado a receber o título de Visconde, foi através da convivência nas residências que ocupou no Rio Comprido e no Catete que construí apenas uma parte inicial do arcabouço de meus conhecimentos a respeito desta cidade e dos que nela vivem, mas não a principal. O Deputado Geral era homem cultíssimo, e através da convivência aparentemente animalesca e discreta em seu quintal pude absorver muito conhecimento. Minha sinestesia quelônia e minha paciente sensibilidade me permitiram conhecer muito do consumo da filosofia, do direito, da economia e da política através dos estudos daquele homem sério e taciturno. Outra fonte de muito conhecimento a respeito dos mesmos temas eram as conversas com seus colegas, correligionários e até mesmo adversários nos salões. Em algumas noites, saraus traziam o som da música e da poesia que os humanos mesmo totalmente ignorantes do fato, faziam com que minha então jovem e voraz inteligência absorvesse. Naqueles tempos, a certa distância conseguia detectar os sons dos batuques dos negros, a riqueza de minúcias rítmicas de suas batidas rituais não raro embalando lá de longe meus períodos de descanso. Foram tempos de formação do meu conhecimento, onde tinha uma riqueza enorme de aprendizados com essa espécie tão imaginativa. No mais, minha vida transcorria com a tranquilidade esperada para a vida de uma tartaruga. E assim se passaram bons 40 anos até a morte do Visconde.

Sua morte trouxe o fim de um bom período para mim, pois foi decisão de seus herdeiros que não havia espaço para mim em seus destinos imediatos, e até que se definissem os caminhos da vida de cada um, ninguém queria a responsabilidade de tomar conta de uma tartaruga velha. Velho! Eu? Foi uma das poucas oportunidades em quase dois séculos de vida em que perdi a paciência com a ignorância dos humanos. Mordi um dos filhos do Visconde, o que apressou minha despedida. Depois temi por ser negociado com algum indígena e acabar virando sopa, mas por sorte os indígenas já eram raríssimos na capital naquele momento. Não teria valido a pena.

Itaboraí

Mais uma vez retornei às terras da família em Itaboraí, onde confesso que já não me apetecia tanto o ritmo vagaroso daquela vida interiorana. A um humano pode parecer engraçado que uma tartaruga reclame de qualquer coisa vagarosa, mas posso perdoar o erro. A ignorância humana para com nossa capacidade mental e sensorial impede que percebam o quanto nosso metabolismo lento permitiu que desenvolvêssemos capacidades que vocês desconheçam completamente. É natural que um humano não perceba o mundo rico de pensamentos e o sofisticadíssimo caleidoscópio sensorial e emocional que minha espécie desenvolveu em tantos milhões de anos a mais evoluindo nesse mundo que os recebeu há tão pouco tempo. O certo é que na fazenda os dias passavam lentos como o melaço da cana escorrendo num dia frio e que eu sentia muita falta dos assuntos tratados no Rio de Janeiro, onde as decisões do império eram tomadas. A fazenda era comparativamente muito menos rica em experiências que saciassem minha sede por cultura, e por muito tempo passei ouvindo com pouco ânimo conversas cotidianas, fofocas e mexericos, histórias simples repetidas à exaustão, cantilenas religiosas que cada vez mais se tornavam desagradáveis pra mim, independente do credo que as estivesse emitindo. Meu viver biológico continuava tão satisfatório quanto sempre fora, mas minha alma ansiava por movimento, por estímulo, por novos conhecimentos.

Não me era dado a saber disso ainda, mas demoraria mais uns bons anos para que minha vida mudasse e eu fosse viver novamente no Rio de Janeiro.
Exatos cinquenta e cinco anos ainda iriam separar a minha chegada àquela fazenda indesejavelmente sossegada do nascimento do homem que iria colocar em curso meu retorno à cidade grande. A história desse homem e os eventos que culminariam em meu destino final, contarei na próxima oportunidade em que nos encontrarmos, nobres senhores e distintas senhoras.

Continua…

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Odemilson Louzada Junior

Desde 1974 driblando a lei de Murphy. Conseguindo na maioria das vezes.