Carta para ser aberta daqui a 30 anos

Gael Rodrigues
3 min readSep 28, 2016

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Olá, Gael.

Seu nome ainda é esse? Lembro que até os 27 seu nome era Gilmar, o mesmo de seu pai. E quando decidiu ir para São Paulo quis deixar Gilmar para trás. Mas ele nunca ficou para trás, não é?

Você é mais que seu nome, e espero que agora com 60 anos já tenha aprendido isso. Não importa que se crie um pseudônimo, um personagem. A história não se escreve para trás. Memória inventada não é memória. É mentira. É fuga. É medo.

Você ainda tem medo de ficar louco? Esse era o único medo que você tinha aos 30. Não tinha medo da morte. Sua e dos outros. Com 30 anos sua cabeça estava em ebulição, ainda tentando lidar com sua síndrome de pânico e depressão. Por várias vezes você quis apertar o botão e desligar tudo. Se você está lendo essa carta você não apertou o botão.

Valeu a pena?

Espero que sim. Torço muito por você porque você se esforça muito. Você não é necessariamente uma pessoa boa. Você é egocêntrico. Vingativo. Um pouco hipócrita às vezes. Mas se esforça tanto para conseguir o que quer e faz isso de forma tão idônea que não há como não torcer . Você se esforçou tanto desde pequeno que nunca aprendeu a se divertir.

Você consegue se divertir hoje? Conseguiu notar que a vida não é uma meta a ser alcançada? Que ela já começou desde que você nasceu? Você parou de fazer metas a cada reveillón? Parou de aprender mil coisas a cada ano? Duvido muito. Provavelmente você está aprendendo sua vigésima língua, algum instrumento, e está planejando conhecer algum país exótico. Ou planeta? Talvez hoje aos 60 anos você esteja querendo visitar Marte. Afinal qualquer lugar parece melhor do que onde você mora. Qualquer lugar longe de você é o melhor lugar para se estar.

Com 60 anos você já aprendeu a se amar? Ou continua com aqueles atos autodestrutivos? Você sabe do que estou falando. Não se preocupe eu não vou dizer a ninguém. Talvez devido a isso que você anda fazendo, não chegue aos 60. Que alívio, hein? Você se destruiu e deliberadamente. Sempre na beira do precipício esperando aquele empurrãozinho. Ou apenas para sentir aquela brisa que passa somente por ali. Aquela brisa te fazia sentir vivo, não é? Ou ela te lembrava o quanto a vida é efêmera.

Entre tantas dúvidas deixa ver se acerto uma: você está sozinho! Continua indo ao cinema sozinho, a restaurantes. Talvez você tenha cansado daqueles namoricos de um mês e esteja definitivamente sozinho. Posso estar parecendo cruel mas vamos combinar. Você procurou por isso. Você sempre procurou uma pessoa tão idealizada, perfeita, sem erros. Claro que ela não apareceria, afinal ela não existe. Mas você já sabe disso. Por que insistiu nisso até hoje? Você não aprende, não é?

Você ainda escreve? Torço que sim. Que tenha vários livros escritos. Com 30 anos você tinha ideias para cinco livros, e séries de televisão. As pessoas hoje ainda vêm televisão? Lêem livros? Alguém te lê? Você estava tentando publicar seu livro mas nenhuma editora respondeu. Isso te machucou não foi? Hoje depois de trinta anos alguma editora te respondeu?

Talvez você não se importe hoje mais com isso. Talvez nem escreva mais. Talvez esteja pensando na sua aposentadoria no serviço público. Talvez tenha os filhos que queria adotar.

Talvez você seja feliz.

Acho difícil, Gael. Mas quero muito que você esteja feliz. Que hoje você consiga passar o dia sem imaginar mil hipóteses de como viver. Que você consiga fechar os olhos e dormir. Que consiga ver um filme sem pensar na sua própria versão. Que esteja vivendo na sua vilazinha no interior da Itália, olhando o mundo de sua varanda.

Não precisa chorar, Gael. Você só vai ler essa carta daqui a 30 anos. Não precisa sofrer por antecipação. Nunca fomos bons em previsões. Somos o mesmo, no fim das contas. Com 30 ou 60.

Ok?

Gael?

Gael?

São Paulo, 28/09/2016

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