Desculpe, mas não sou seu personagem
Desde pequeno estou acostumado a ser reduzido a um adjetivo dependendo do grupo que me vê. Para os professores eu era o aluno ‘inteligente’, para minha família o menino ‘impossível’, para os vizinhos o menino ‘calado e estranho’. Isso nunca foi privilégio meu. Tinha a vizinha puta, o outro vizinho viado, o maconheiro. A outra que apanhava do marido, o que batia na mulher, a fofoqueira. E assim fui apresentado a um mundo em que pessoas são reduzidas a alguma característica, queiram elas ou não.
Há alguns dias, pela enésima vez, discuti com uns amigos pela forma como me tratam. Pelo fato de não só, escolherem o adjetivo, como se revoltarem quando não me encaixo nele. Como se me forçassem a ser algo para poder caber num grupo de personagens superficiais. O nerd, o gordo, o pop, o depressivo. Desculpe, mas me recuso a ser um personagem e servir para suas piadas e roteiro adaptado de Meninas Malvadas. Desculpem, mas eu e vocês somos mais complexos do que ‘vilão’ e ‘mocinho’.
É de conhecimento de todos que tenho depressão e síndrome de pânico causados pela minha ansiedade. Mas (surpresa!) não sou uma pessoa triste. Tenho alterações de humor, uma sensibilidade exacerbada, e uma introspecção que me faz querer muitas vezes ficar só. De outro lado, sou extremamente carinhoso, tenho um humor ácido, adoro atividades físicas e culturais. Sou um otimista inveterado. Perceba que não há um adjetivo para esse conjunto de coisas. Eu e qualquer outra pessoa somos mais complexos do que reduções maniqueístas.
O mundo de alguma forma parece carente disso. Coxinhas. Petralhas. Veganos. Marombeiro. Loira burra. Intelectual chato. Somo tão preguiçosos em entender o mundo e as pessoas que preferimos escolher um modelo pronto que o defina. Um molde que ele se encaixe e repouse… e assim não abale o equilíbrio das aparências. Caso se rebele contra sua denominação isso só comprovará que eles estão certos! Ninguém admite o que é! Sim, você é o triste do grupo. Você é a burra. Aceite e deixe de ser chato.
Uma das cantoras que mais gosto, Sharon Van Etten, tem as letras mais sofridas do mundo. Numa canta que ‘toda vez que o sol levanta estou encrencada’, noutra ela pede que ‘quebre minhas pernas para não correr mais atrás de você’. Numa entrevista ela contou que sempre que um fã a conhece, ela tenta sossegá-lo e deixa claro que é uma pessoa feliz e que não pensa em se matar. Adele apesar de cantar as sofrências de um amor que deu errado tem uma das gargalhadas mais gostosas do mundo. Em contrapartida, temos notícias de comediantes que sofrem de depressão ou se suicidam. No meu livro ‘O Retorno de Saturno’, o personagem Heitor desiste da própria vida apesar de quem o cerca achar que ele ‘ele tem tudo’.
Então, vamos deixar claro: meus textos, e eu, podemos parecer tristes. E muitas vezes estamos. Mas essa é minha forma de expressar. Tenho (e espero que todos que me lêem) tantas outras facetas. Facetas essas que aparecem, desaparecem. Vou deixando de ser algo e me tornando outra coisa.
E o mais importante: não sinto a mínima vontade de provar essa multiplicidade de facetas. Não quero parecer inteligente para quem me acha burro. Não quero me passar por engraçadão para quem me considera um depressivo. Num mundo de superficialidades, feliz e satisfeito aquele que sabe quem é si mesmo, e não aceita o molde que o presenteiam. Ou, ao menos busca saber quem é si mesmo.