Grávidos do ano-novo
A gente espera do ano como se ele fosse uma mãe. Que ele alimente nossas expectativas, dê-nos a mão ao caminhar, e nos console se algo der errado. Assim como a mãe, o ano nem sempre nos atende, e fazemos beiço ou esperneamos decepcionados. Reclamamos dele como se ele nos devesse algo, ou agradecemos como se ele tivesse sido responsável por nossas realizações.
Essa nossa relação com um ente temporal e abstrato não é de todo estranho se entendermos a origem dessa cobrança.
Quando chega o início de dezembro, olhamos para trás, e tudo parece conclusão. Tudo soa finalizado. É hora de recomeçar. Limpar. Re-tentar. E é nesse momento que engravidamos do ano que está para chegar.
De alguma forma estamos grávidos a cada ano-novo que se aproxima. Quando vemos que não dá mais como lidar com o que passou, decidimos que é hora de renascer. Desistimos do ano que está para terminar e flertamos com o ano que está chegando. Fazemos mil promessas. Prometemos melhor empenho. E o ano-novo ainda semente, inocente e crendo em nossas promessas, adentra nosso ventre.
E toda gestação é cheia de medos e esperanças. Nosso ventre está cheio do desconhecido. Durante dezembro, algo remexe em nosso corpo crescendo, querendo sair. Uma ansiedade em recomeçar. Em dar certo. E aquilo cresce, cresce…
No ano-novo parimos.
Um novo ciclo se inicia, e cobramos mais uma vez nossos quereres e sonhos. No início de nossa vida, essa cobrança fazia sentido. Os adultos cuidavam de nós e eles são responsáveis pelos nossos caminhos. Aqui os caminhos ainda não se chamam escolhas. Mas aos poucos , vamos crescendo e parindo novos eus. À medida que renascemos a cada 01 de janeiro dependemos cada vez menos dos outros.
Os caminhos viraram escolhas. Nossas escolhas.
A virada de ano tem o poder de fazer a gente parir a si mesmos. Aquele desconhecido que cuidamos em nosso ventre durante dezembro não é nada mais do que uma nossa nova versão. Tentamos mudar, renascer, reiniciar sem nos dar conta que passamos a ser pais de nós mesmos. Ninguém é mais responsável por nossas decisões. Decepções.
O ano nasce junto com nossa nova versão, mas não mata a anterior. Por medo de que a nova não aguente a pressão do que está por vir. Ou por receio de que um mês de gestação não seja suficiente para ter criado um eu completo. Pessoas mais corajosas tentam apagar a versão do ano anterior como se ela nunca tivesse existido. Mas ela não se vai. Ela se esconde em alguma memória esquecida. Ela é paciente e sabe que pode ser lembrada, na próxima ou noutra virada de ano. Quando cremos que tudo pode melhorar e ser diferente.
Todo 01 de janeiro parimos outro eu, como se fosse a primeira vez. Com dor e sangue, anestesiados por champanhe e fogos de artifício. À meia noite, nosso bebê nasce. Já grande.
Pela manhã o bebê adulto levanta da cama e vê, ainda deitado, uma versão dele ainda dormindo. A versão do ano anterior ainda cansada após um ano doloroso — apesar de achar que é apenas resultado de uma ressaca de reveilllón. Ele não percebe o quanto são parecidos e segue. Não importa o passado. O que passou dorme na cama do esquecimento.
Ele abre a janela e vê o primeiro raiar do sol.
Respira fundo.
Tudo vai dar certo dessa vez.