O passado sempre presente
Com 26 anos fui sequestrado. Meu namorado estava me deixando na frente de casa quando três menores abordaram nosso carro. Eles portavam armas e facas, e nenhuma racionalidade. Por três horas usaram o carro, com a gente dentro, para entrar em casas e abordar pessoas. Numa dessas casas a polícia chegou, e eles nos fizeram reféns dentro de um banheiro.
Nesse momento eu sabia. Iria morrer. E de alguma forma eu não estava assustado. Eu fiquei triste. Eu iria morrer sem ter me tornado o que eu queria. Eu já trabalhava no serviço público e tinha a segurança financeira que tantos gostariam. Mas, naquele momento, pré-morte, percebi que eu não era quem eu queria. Eu queria escrever. Criar. E em algum momento da vida esqueci tudo isso. Tornei-me alguém igual a tantos os outros. Aquele que os meninos iriam matar não iria fazer falta nenhuma ao mundo. E isso nunca mais saiu de mim.
Sobrevivi àquele dia, mas deixei aquele rapaz de 27 anos dentro do banheiro. Eu o odiava de alguma forma. Ele era tudo o que eu queria esquecer e deixar para trás.
Lembro que quando voltei para casa depois de dar depoimento para polícia, passei a noite em claro. Não chorei. Eu nunca chorei por aquilo. Passei a traçar meu plano de fuga. Eu estudaria para algum outro concurso e iria para São Paulo tentar meu sonho de ser escritor profissional.
Volta e meia me vejo pensando ‘e se’ eu tivesse feito isso ou aquilo. O que teria acontecido. Que consequência aquilo traria a minha vida. No que eu teria me tornado.
O que percebo é que: o que sou hoje depende muito do que não fui. Muito mais do que pensar no clichê ‘o que passou, passou’ ou ‘devemos seguir em frente’, o passado que nunca se concretizou, de alguma forma, faz parte do que somos hoje.
Seguimos vivendo mas pensando em o que teria acontecido se tivéssemos escolhido outro companheiro. Outra carreira. De alguma forma, nossa vida sempre é comparada a outra que nunca pode acontecer.
Quando era criança quis ser coroinha da igreja. Eu estudava em colégio de freira, participava do coral do colégio e da igreja. Como eu era muito novo não pude ser coroinha, mas participava ativamente das atividades. Aos treze anos, durante uma aula de crisma em que se falava da criação, algo aconteceu. Nada daquilo fazia sentido para mim. Passei a me perguntar e me perguntar. Percebi que não tinha fé. Que não acreditava em Deus. Meu mundo passou a ser mais racional e de uma forma sem esperança. Hoje, queria acreditar, ainda, em Deus. Quem sabe assim, eu tivesse para onde fugir quando no fim do dia tudo rui. E tudo rui no fim do dia.
Aos 14 anos tive meu primeiro amor. Uma menina. Fui apaixonado por ela por três anos e mesmo sabendo que eu ‘era diferente’ queria seguir adiante. Eu pensava que amá-la me curaria. Eu já pensava em meninos nessa época mas a ideia de ao menos tocar em um deles era repugnante. Se eu tivesse seguido nisso hoje eu teria família, e teria meus filhos. Ter filhos seria uma grande felicidade. Viver num relacionamento em que minha sexualidade estaria reprimida, seria um inferno. Eu teria o inferno e o céu dentro de casa. O céu e o inferno dentro de mim.
Hoje não sei se tomei a decisão certa quanto a escrever. Uma grande amiga diz talvez seja a hora de eu parar de tentar. As editoras brasileiras cada vez mais apostam não em escritores, e sim em (sub)celebridades. Nunca recebi resposta das editoras dos manuscritos que enviei, e tenho dúvidas se algum dia chegaram a ser lidos. A maioria das pessoas que leram meus livros foram meus amigos que pedi.
Vejo-me numa cidade fria, onde as pessoas não se respeitam, nem se amam. Onde a imagem vale mais que o conteúdo. Longe de minha família e de meus verdadeiros amigos. Onde as pessoas não se importam com seus sentimentos ou com sua voz. Ninguém te ouve. Ninguém se ouve. São Paulo é uma cidade surda.
Tudo isso reverbera na minha cabeça e penso: não é hora de voltar de buscar aquele rapaz de 27 anos que deixei dentro do banheiro? O rapaz que ia morrer pensando ser ninguém. O rapaz que não chorou após ser sequestrado porque queria se livrar logo de si mesmo.
Acho que tenho que voltar àquele apartamento, abrir a porta do banheiro, e abraçá-lo. Dizer que eu fui lá fora e tentei. Tentei ser tudo aquilo que ele sonhava ser. E que não vale a pena. Ele pode sair do banheiro e chorar em paz.