a literatura multiplica a vida: uma digressão sobre a importância da literatura

olivia maia
10 min readJan 27, 2016

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eu ia falar de Cortázar: desse estranho hábito dos estudiosos brasileiros de acharem que se alguns acadêmicos argentinos o veem como escritor menor então nós não deveríamos ser tão ridículos a ponto de continuar gostando dele; das referências a Cortázar por toda parte na Argentina em 2014 ano do seu centenário (uai, não era escritor menor?) etc etc.

mas olha: não vou falar de nada disso. se Cortázar aparece por aqui é porque eu não posso evitar, mas a verdade é que fico pensando naquele texto em que ele ironiza um pouco as análises da sua obra (e a insistência com o duplo, etc — não me lembro se o texto estava em “A volta ao dia em 80 mundos” ou “Último round”).

pobre cronópio.

porque, por falar em cronópio, o que eu queria contar era outra coisa: estive lendo o “Berlin Stories”, do Robert Walser, aquele suíço que morreu numa caminhada pela neve na noite de natal — morreu com a cara na neve, o que foi uma morte bem Robert Walser, eu diria, sem floreios e últimas palavras. era um cronópio, esse tipo. um cronópio trágico, de certa forma, pelo fim em um sanatório, pela mania de escrever a lápis em papel de pão com uma letra minúscula (procurem o livro “Microscripts”), pela incapacidade de estar no mundo.

Robert Walser.

o cronópio trágico é o que se propaga entre a crítica: o seu silêncio; o seu “pudor literário”, como escreveu Walter Benjamin, porque Walser tivesse vergonha de escrever literariamente (ui); seu olhar de criança para as coisas; seu deslocamento.

um outsider, enfim. aí que no prefácio de “Berlin Stories” aparece outro Walser, que foi morar em Berlin com o irmão, que era um pouco desastrado e barulhento, que deixava de ser convidado paras as festas porque comia demais. digamos: um fanfarrão.

(será que pode chamar Walser de fanfarrão ou a polícia da crítica me leva presa?)

é que Robert Walser (como Cortázar) desperta em mim algo que eu chamaria alegriazinha literária:

é por transformar em literatura a vida em suas pequenezas, embaralhar perspectivas e pontos de vista, fazer olhar o insignificante.

(adiante vou explicar melhor; deixa eu ordenar minha digressão aqui.)

no caso desse suíço, tudo ainda vem com uma singeleza narrativa, que para mim soa muito irônica, como se ele não estivesse bem se levando a sério enquanto escreve.

separei aqui alguns exemplos e quero saber o que te parece (em inglês porque ainda não há tradução pro português e, enfim, era o que tinha):

But now I swerve rather badly from my theme. Is this permitted? (…) With great regret I see that I have now bumped against the frame delimiting my essay, leaving me with the tragic conviction that many things I most definitely wished to point out have gone unsaid.

*

How glad I would be (almost) to be carrying a baby in my arms (…)

*

I must confess: I have achieved a certain technical mastery in the art of staring straight ahead.(…) From time to time you do nonetheless look straight ahead again. After completing this straightforward exercise, you may permit your eyes a modest excursion. (…) and gradually begin to observe your own footgear, which could use proper mending. (…) and one whose eyes well up with tears quickly turns to gaze into a shop window as if oh so fascinated by what he sees there.

*

It’s not just that he can make you laugh harder than twenty men can laugh in all their added-together lives, make you laugh till you split your sides or, what am I saying, till you roll in the aisles, or wait a bit, till you die laughing, oh what a simpleton I am if I cannot pound a better comparison from the quarry of my authorial cranium, it’s not just that but also that, how confusing this is, yes, quite right, but also that even the quite natural inducement of a tragic frisson is by no means beyond his reach, in fact he finds it all too easy. So have I actually finished my sentence now or not? If not, what a lovely pretext for going on.

*

He’s constantly afraid people might be poking fun at him, but there are certain individuals you cannot faithfully portray without poking a bit of fun. (…) He is not merely a person like any other, just as most people are not merely people like any other. (…) This ignoble practice of just going and writing about living human beings as though they were dead. And then this Kutsch isn’t even interesting, I hear the reader protest.

*

The point of Father’s business, I think, is this: the artists, as a rule, understand nothing about business, or, for some reason or other, they aren’t allowed to understand anything about it. Or it is this: the world is big and coldhearted. The world never thinks about the existence of artists.

*

They are a fact of life; but one should respect facts. Should one really?

esse último trecho me lembra muito o que escreveu Walter Benjamin; que Walser começa a escrever uma frase e desiste no meio do caminho, se envergonha do que há ali de literário e emenda com, por exemplo, esse questionamento que desfaz a afirmação anterior por inteiro.

vê?

é um pouco uma criança que inventa uma história e fala qualquer coisa para impressionar os adultos. faz sentido? como quem se esconde atrás de um sorriso maroto de menino querendo impressionar e pertencer mas não consegue deixar de transparecer a sinceridade de quem se sabe atuando.

e da ironia de criança vem o olhar atento, a celebração do tédio, do miúdo, do desimportante.

isso para mim é pensar que a vida é incrível (no sentido mais literal da palavra). ver a vida com os olhos da literatura.

entende o que estou dizendo?

não é pelos temas; o tema não importa. é uma forma de encarar a realidade. isso nos dá a literatura.

porque, olha só, tem aquele livro do Michael Cunningham, “The Hours” — existe um filme, já viu o filme? — que eu li recentemente e, meu deus, que livro incrível. tinha acabado de ler “Mrs. Dalloway” e um artigo sobre “The Hours” e resolvi encarar a overdose temática.

a sinopse do livro pra quem não conhece (dei uma cortada pra ir direto ao ponto):

(…) One gray suburban London morning in 1923, Woolf awakens from a dream that will soon lead to Mrs. Dalloway. In the present, on a beautiful June day in Greenwich Village, 52-year-old Clarissa Vaughan is planning a party for her oldest love, a poet dying of AIDS. And in Los Angeles in 1949, Laura Brown, pregnant and unsettled, does her best to prepare for her husband’s birthday, but can’t seem to stop reading Woolf. These women’s lives are linked both by the 1925 novel and by the few precious moments of possibility each keeps returning to. (…) Like its literary inspiration, The Hours is a hymn to consciousness and the beauties and losses it perceives. It is also a reminder that, as Cunningham again and again makes us realize, art belongs to far more than just “the world of objects.”

o personagem Richard, o poeta, me parece central no que quero explicar. o que ele faz com as pessoas ao seu redor é um pouco esse efeito da literatura na vida. um pedaço do livro:

[Richard] is the opposite kind of egotist, driven by grandiosity rather than greed, and if he insists on a version of you that is funnier, stranger, more eccentric and profound than you suspect yourself to be — capable of doing more good and more harm in the world than you’ve ever imagined — it is all but impossible not to believe, at least in his presence and for a while after you’ve left him, that he alone sees through to your essence, weighs your true qualities (not all of which are necessarily flattering — a certain clumsy, childish rudeness is part of his style), and appreciates you more fully than anyone else ever has. It is only after knowing him for some time that you begin to realize you are, to him, an essentially fictional character, one he has invested with nearly limitless capacities for tragedy and comedy not because that is your true nature but because he, Richard, needs to live in a world peopled by extreme and commanding figures. Some have ended their relations with him rather than continue as figures in the epic poem he is always composing inside his head, the story of his life and passions; but others (Clarissa among them) enjoy the sense of hyperbole he brings to their lives, have come even to depend on it, the way they depend on coffee to wake them up in the mornings and a drink or two to send them off at night.

a literatura como hipérbole da vida?

e o livro, ao tratar do suicídio, se transforma numa celebração da vida.

como?

Richard transforma a banalidade do cotidiano em algo grande; faz poesia com o que é comum — porque afinal de onde vem a poesia senão da vida?

e sobre o que eu estava dizendo sobre Robert Walser — e que mágico voltar a ler Walser — : como pode ser lindo o tédio, a repetição, a inércia do cotidiano. como a vida pode ganhar outra perspectiva, outro tamanho; por causa da literatura, para a literatura.

penso numa frase do Ray Bradbury no livro “Zen in the Art of Writing”:

You must stay drunk on writing so reality cannot destroy you.

e “drunk on writing”, claro, mas eu vou também dizer on reading. estar bêbado de escrita e de leitura. a realidade sem a literatura é uma versão encolhida do possível. no filme “The Hours”, baseado no livro, uma cena entre Virginia e Leonard simplifica a questão. Leonard quer saber por que alguém precisa morrer no livro, afinal:

“Why does someone have to die?”
(…)
“Someone has to die in order that the rest of us should value life more. It’s contrast.”
“And who will die? Tell me.”
“The poet will die. The visionary.”

que é uma forma linda de dialogar também com o “Mrs. Dalloway” da Virginia Woolf: porque alguém tem que morrer, e de um jeito estúpido, de um jeito banal e desnecessário, como se afinal não fizesse tanta diferença, que é pra obrigar o leitor — o espectador — a pensar “faz diferença?”

por que o poeta, o visionário? por que Septimus, esse personagem secundário que em “Mrs. Dalloway” surge no começo e se alonga na história com suas pequenezas e de repente aparece tão feliz, tão completo e satisfeito com a vida e o que existe.

mas.

porque à parte a necessidade de explicitar o que no livro fica implícito (afinal são meios distintos e o filme se vira como pode para transformar o que era fluxo de consciência em diálogo e imagem) me parece que foi interpretação acertada. a frase é do filme mas vem também do que Michael Cunningham captou em “Mrs. Dalloway”: fazer crescer o micro por meio da riqueza de detalhes.

aí está o mágico do livro.

a celebração da vida está no trabalho estético da obra, na sutileza da linguagem, na beleza com que trata algo doloroso, difícil.

porque a morte dói. também a vida dói, o cotidiano massacra; a rotina, a solidão. as cidades e as guerras e o ódio e uma vida que não tem nenhum sentido e jamais poderia ter. mas a literatura, pela palavra, reorganiza tudo isso e nos reapresenta a vida COMO SE ela pudesse ter sentido.

a dor, a tristeza e a alegria, na literatura, podem ser observadas a partir de outra perspectiva. e isso faz crescer o mundo. é saber-se grande e importante por uma conversa banal com o motorista do ônibus, por ajudar uma senhora gorda com artrose a subir um degrau, por observar as luzes noturnas da avenida vazia e saber que aquele momento pode ser belo em sua insignificância.

isso não tem nada a ver com autoajuda, com olhar o próprio umbigo e “acreditar em si”. a palavra transforma não porque a gente fica se agrandando, mas sim porque a palavra tem o poder de POSSIBILIDADE.

a literatura multiplica a vida.

e com tudo isso eu não quero dizer que a literatura PRECISA celebrar a vida diretamente, escancaradamente. esses três livros são exemplos explícitos do que a literatura tem como possibilidade.

e possibilidade, no caso, é a palavra-chave:

já imaginou o ser humano como se fosse um animal que se observa com o interesse de um biólogo estudando um predador meticuloso; um caminhar por uma avenida suja do centro como a descoberta de belezas ocultas; o olhar triste de um mendigo como quem divaga sobre uma terra divina perdida pra sempre? já encarou o banal do dia a dia como se a grandeza de um gesto histórico, ou um gesto histórico como se a banalidade de um dia comum? já encarou o vizinho como alguém de violentas inseguranças quanto ao futuro, ou suas próprias inseguranças como quem observa um desconhecido num banco da praça mirando o horizonte?

é a literatura como a possibilidade de novas perspectivas, de fazer crescer o insignificante e tornar insignificante o que é gigantesco. de ver no outro um espelho, um ser humano, e refletido no ser humano o absurdo da vida e das escolhas.

como pode dizer que não serve para nada a literatura? como não serve para nada o que nos torna mais humanos, mais capazes de observar a vida e perceber o outro e sentir-se parte da vida e da humanidade — porque afinal é este o grande tema universal da literatura: nossa humanidade.

a literatura humaniza (…) porque faz viver,

nos escreveu Antonio Candido, no ensaio “O direito à literatura”, tão mais conciso do que eu.

o que eu queria tentar explicar era, afinal, por que eu PRECISO da literatura. por que sem a literatura eu me sinto perdida, sem chão.

essa é minha alegriazinha literária.

também sobre tudo isso quero te indicar um artigo chamado “Confronting Reality by Reading Fantasy”. se a discussão te interessa, vale muito a leitura. cheguei a escrever sobre isso no meu blog.

esse texto foi originalmente escrito para os assinantes da minha newsletter. assine-a aqui.

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