Sexo não é cromossomos: a história de um século de ideias erradas sobre X e Y

Oltiel
16 min readMar 12, 2020

Aviso de conteúdo: concepções binaristas de sexo biológico, cissexismo e diadismo estruturais (meio científico e social), essencialismo de gênero, sexismo no meio acadêmico-científico, menciona ideias sociais misóginas e heterossexistas, menciona eugenia, texto longo.

Este texto é uma adaptação minha do original “Sex isn’t chromosomes: the story of a century of misconceptions about X & Y”.

Link: https://www.newstatesman.com/future-proof/2015/02/sex-isn-t-chromosomes-story-century-misconceptions-about-x-y.

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A influência do modelo XX/XY do sexo cromossomal tem sido profunda ao longo do século passado, mas está fundada em premissas falhas e é responsável por incentivar pensamento redutivo e essencialista. Enquanto o mundo científico seguiu adiante, seu apelo popular permanece.

Por Ian Steadman

Quando a União Astronômica Internacional (IAU) reclassificou Plutão de planeta para planeta-anão em 2006, ela não fez nada para mudar o fato de que Plutão existe. Sua posição, porém, é um exemplo inócuo de como a ciência não é sempre uma descritora objetiva da realidade, mas uma interpretadora, carregada com o contexto das gerações anteriores — como “planetai” do grego e “planetas” após Copérnico foram ambos rótulos para descrever coisas que se moviam no céu, mesmo nós percebendo que aquelas coisas não eram realmente tão parecidas entre si numa inspeção mais minuciosa com o tempo.

O processo científico frequentemente envolve ajustar taxonomias. A humanidade viu objetos distantes acima, e a taxonomia que construímos era simples: dois registros, um rotulado “planetas”, e o outro, “estrelas”. Ao longo do tempo adicionamos coisas, como asteroides (rochoso) e cometas (gelo), para cobrir novas descobertas — e, então, com mais pesquisa (e imagens como aquelas enviadas pela sonda Rosetta) mostrou-se que algumas das coisas que achávamos tornar asteroides e cometas muito diferentes eram na verdade apenas um reflexo de nossa perspectiva. (E, se serve pra alguma coisa, na mesma reunião em 2006 quando a IAU criou o novo termo “planeta anão” para objetos como Plutão e “planeta” para, sabe, planetas, ela também votou pelo uso de “corpo menor do Sistema Solar” para todo o resto. Isso passará também, provavelmente.)

Nós todes acreditamos na existência de cometas e asteroides, mesmo que a distinção coloquial entre eles faça cada vez menos sentido formal — nos incomodaríamos com dois nomes diferentes se os tivéssemos descoberto hoje? Qual seria o propósito de traçar uma linha entre eles dessa forma?

Como se sabe, quando o primeiro ornitorrinco bico de pato taxidermizado foi mandado de volta a Londres por naturalistas trabalhando na Austrália, acreditou-se ser uma farsa, pois ele se recusava a aderir às definições até então aceitas de mamíferes e aves ao insistir em ser uma criatura peluda de sangue quente que botava ovos. O estado taxonômico do ornitorrinco (e os poucos outros monotremados que botam ovo ainda não extintos) ainda é discutido até hoje — biologistas descobriram que ele tem genes geralmente presentes em peixes e anfíbios. Um ornitorrinco macho tem até dez cromossomos sexuais (XYXYXYXYXY), em vez de dois como é normal para ume mamífere.

Ah, mas tem uma palavra traiçoeira aqui: “normal”. E com cromossomos sexuais, percepções de “normal” têm um grande papel — não apenas no que pensamos que eles são e fazem, mas na própria existência do termo “cromossomos sexuais”. Esse é o assunto do livro revelador de Sarah Richardson, Sex Itself: The Search for Male and Female in the Human Genome (tradução literal: “O Próprio Sexo: A Busca por Macho e Fêmea no Genoma Humano”), uma história sobre a ciência do sexo e a invenção do conceito de sexo cromossomal — que Richardson argumenta que devemos rejeitar inteiramente por ser um erro que nos direcionou a má ciência, preconceito social e um grande mal-entendido sobre o que sexo realmente é.

Esse é o momento onde conversar sobre esse assunto, assim dizendo, as coisas podem desmoronar. Assim como mamíferes não só não colocam ovos, mas não deveriam, pode parecer uma autoindulgência pós-moderna bizarra dizer que a humanidade não está ordenadamente dividida em dois na base de serem cromossomicamente macho (XY) ou fêmea (XX). Isso é uma estrutura que faz sentido intuitivo para quase todo mundo porque se correlaciona exatamente com dismorfismo sexual — há quem tenha pênis, quem tenha vagina, e com um pouco de sorte combinar ambes significa que teremos mais humanes com seus pênis e suas vaginas. Mas assim como o ornitorrinco, é crucial não pensar na taxonomia como mais importante do que a realidade que a qual deveria descrever.

Como Claire Ainsworth escreveu para a Nature, a ciência do sexo tem, por muitos anos agora, reconhecido que características sexuais existem num espectro — e não num binário:

Sexo pode ser muito mais complicado do que parece a princípio. De acordo com o simples cenário, a presença ou ausência de um cromossomo Y é o que conta: com ele, você é macho, sem ele, você é fêmea. Mas doutories já sabem há muito que algumas pessoas atravessam a fronteira — seus cromossomos sexuais dizem uma coisa, mas suas gônadas (ovários e testículos) ou anatomia sexual dizem outra. Famílias de crianças com esses tipos de condições — conhecida como condições intersexo, ou diferenças ou desordens do desenvolvimento sexual (DDSs) — frequentemente enfrentam decisões difíceis sobre criar a criança como menino ou menina. Algumes pesquisadories agora dizem que 1 em cada 100 pessoas têm alguma dessas condições.

Desde a década de 1990, pesquisadories identificaram mais de 25 genes envolvidos em intersexualidades, e o sequenciamento de DNA da próxima geração nos últimos anos descobriu uma gama ampla de variações nesses genes que fazem efeitos leves nos indivíduos, em vez de causar intersexualidades.

O artigo de Ainsworth é um panorama excelente do estado atual da ciência do sexo; Richardson, enquanto uma historiadora e filósofa da ciência, se destaca ao falar de pessoas cujo trabalho (e cujas presunções equivocadas) tem induzido o pensamento popular ao erro em relação a sexo por muitos anos. Ela descreve como os estereótipos de gênero e sexo foram projetados em cima dos cromossomos por pesquisadores iniciais, desse jeito criando e reforçando o mal-entendimento entre o público maior que o binário estrito XX/XY é uma verdadeira sinédoque do dismorfismo sexual. Na realidade, há extremamente poucas características sexuais controladas unicamente pela presença ou ausência de um cromossomo Y — e assim como há muitas características controladas por genes encontrados em outros cromossomos, os cromossomos “sexuais” também carregam genes que determinam traços que nada têm a ver com sexo.

Y não é a essência da masculinidade, nem o X da feminilidade. Como Richardson escreve:

“Gênero ajudou a formatar as questões que são perguntadas, as teorias e os modelos propostes, as práticas de pesquisa empregadas, e a linguagem descritiva usada no campo da pesquisa do cromossomo sexual… Hoje, literatura popular e científica sobre os cromossomos sexuais é rica em exemplos da “generização” de X e Y. Mapas cômicos dos cromossomos X e Y — colocados nas paredes de laboratório e sempre bons pra rir numa conversa científica casual — atribuem traços estereotipados de feminino e masculino em X e Y.

O X é nomeado ‘cromossomo feminino’, é tratado pelo pronome ‘ela’, e tem sido descrito como ‘a irmã maior’ de ‘seu irmão desamparado que é o Y’ e como o cromossomo ‘sexy’. O X é frequentemente associado com o mistério e a variabilidade do feminino, como estava no título do artigo de 2005 da Science ‘Ela Se Move de Maneiras Misteriosas’ e começando, ‘O cromossomo X humano é um estudo de contradições’. O X também é descrito em termos tradicionais de gênero como mais ‘sociável’, ‘controlador’, ‘conservador’, ‘monótono’, e ‘materno’ dos dois cromossomos sexuais. De forma parecida, o Y é ‘ele’ e atribuía qualidades tradicionais masculinas — ‘macho’, ‘ativo’, ‘esperto’, ‘astuto’, ‘dominante’, e também ‘degenerado’, ‘preguiçoso’, e ‘hiperativo’.”

Nós tratamos os cromossomos X e Y de uma forma que nunca teríamos pensado em tratar outras características físicas — muitas pessoas que achariam absurdo ou rude dizer a alguém “realmente você é macho” por ter cabelo curto, ou um pênis, ou excesso de pelo corporal, apesar disso não pensam em não fazer isso com quem tem cromossomos XY. O Próprio Sexo é uma história de como algumes cientistas se convenceram de que havia alguma coisa no corpo, e então na célula, e então no genoma, que seria literalmente o “sexo em si” — a única coisa que realmente importava para o sexo, a coisa que era sua verdadeira fonte e a coisa que finalmente permitia uma definição simples e causal de sexo. Também é a história de como a premissa do argumento inteiro estava errada desde o início.

Surpreendentemente, contudo, a emergência do conceito de “sexo cromossomal” não aconteceu de imediato — o termo em si foi cunhado por Edmund Wilson da Universidade Columbia em 1906, e não era aceito em geral pelo resto da ciência mundial até os anos de 1920 devido a sua incompatibilidade com o que já se entendia sobre hereditariedade.

Durante o século 19, biólogues estavam “fascinades pela diversidade de formas de dismorfismo sexual e intersexualidade na natureza”, escreve Richardson. Sexo era visto como algo que começava antes da fecundação e que podia mudar antes e depois do nascimento — experimentos com galinhas castradas, e cobaias machos com ovários transplantados, deram origem ao que era conhecido como o “modelo metabólico”. Uma combinação de fatores ambientais — como a saúde des progenitories, ou a temperatura de um ovo — determinavam o desenvolvimento sexual da prole.

Ao fim do século, contudo, microscópios foram aprimorados o suficiente para permitir que biológues vissem dentro do núcleo das células, e pesquisadories “competiram” entre si para tentar identificar a evidência celular que confirmaria as teorias colocadas por Darwin em A Origem das Espécies em 1859. Não demorou muito para que os cromossomos fossem encontrados — mas o citologista alemão Hermann Henking encontrou um cromossomo esquisito e sem par no esperma de uma vespa em 1891. Ele o chamou de “elemento X”, e outres especularam que podia ser um cromossomo “degenerado” ou “acessório” que não servia de nada, como o apêndice humano.

Entre 1903 e 1906, Nettie Stevens na Bryn Mawr College na Pensilvânia investigou esse “elemento X”, e descobriu que ele não estava sozinho — havia um minúsculo cromossomo Y escondido bem ao seu lado. Enquanto isso, Wilson (que usou primeiro o termo “cromossomos sexuais”) também encontrou o Y, e concordou com ela que sua presença parecia influenciar o desenvolvimento de características sexuais de macho. (Richardson toma um tempo para notar sardonicamente as conquistas extraordinárias de Stevens, a qual nunca ofereceram um posto integral na faculdade, feitas “na face das poucas oportunidades para mulheres” — quando ela solicitou financiamento de pós-doutorado da Instituição Carnegie em 1903, ela “acumulou cartas impressionantes de recomendação” dos citologistas de maior prestígio da América, e “nenhum falhou em notar seu esplendor — para uma mulher”.)

(Descrição de imagem: uma fotografia antiga de Nettie Stevens. Fim da descrição.)

Stevens e Wilson concordavam que o X e o Y tinham algo a ver com sexo — mas discordavam sobre o que era. Stevens pensava que o sexo devia ser um dos traços carregados no X, da mesma forma que outros cromossomos pareciam carregar múltiplos traços; Wilson, por outro lado, os via apenas como determinantes sexuais. Houve “um efeito do cromossomo-todo” — um X mantinha as coisas em direção ao masculino, enquanto dois X empurravam a balança para o feminino”.

Ambes trabalharam para se refutarem até que Stevens morreu em 1912 aos 50 anos. Até 1920, a versão de Wilson da teoria cromossomal do sexo ganhava, enquanto o termo “cromossomos sexuais” se tornou quase onipresente na literatura científica, excluindo “cromossomos acessórios”, “hetero-cromossomos” e “idiocromossomos” enquanto rótulos alternativos populares. Isso ocorreu após uma luta árdua daquelus que discordavam. Richardson escreve sobre Thomas Montgomery da Universidade da Filadélfia, que chamou a teoria do cromossomo sexual de “uma maior extensão absurda e simplista da teoria cromossomal da hereditariedade”; e sobre Thomas Hunt Morgan, uma das figuras líderes no jovem campo da embriologia, que a detonou por inventar “um elemento especial que tem o poder de tornar o masculino em feminino”.

Chamá-los de “cromossomos sexuais” ia contra a convenção aceita de nomear outros cromossomos por tamanho e estrutura dentro de uma célula, não pela função. E ainda havia perguntas não respondidas: o que raios estava acontecendo com as espécies que se reproduziam com mais do que dois cromossomos acessórios X de uma vez? E quanto a números ímpares de cromossomos sexuais? Um número significante de espécies não reproduziam de acordo com a teoria nítida dos cromossomos sexuais. Wilson foi uma das pessoas que tentou integrar os cromossomos sexuais dentro da teoria metabólica — com cromossomos sexuais, hormônios e pressões ambientais cada qual influenciando como a prole se movia pelas diferentes partes do espectro do desenvolvimento sexual — mas o estrago, Richardson diz, estava feito.

Uma das razões principais do nome ter tido tanto apelo, ela explica, é porque nos anos de 1920 e 1930 foi quando estrogênio e testosterona foram isolades pela primeira vez, e a ideia de dois “hormônios sexuais” capturou a imaginação do povo:

“Em meados da década de 1920, hormônios tinham se tornado, assim como os genes hoje, no objeto mais proeminente de interesse biomédico, farmacêutico e popular a emergir da biologia moderna. Hormônios sexuais agarraram a imaginação pública e se tornaram um nó entre quais ideias eram trocadas entre a teoria científica e as normas culturais, ideologias e expectativas. Cientistas promoveram a visão de que as glândulas sexuais eram as ‘principais’ do sistema endócrino… Terapias hormonais farmacêuticas prometiam novos auxílios na fertilidade e ofereceram a probabilidade de um meio simples e altamente eficiente de controle natalino. Muites também acreditavam que hormônios permitiriam a correção des desviantes de gênero da modernidade — feministas solteironas, homossexuais, homens impotentes, e esposas frígidas. O pioneiro da endocrinologia Eugen Steinach promoveu o transplante testicular como uma cura médica para a homossexualidade e uma terapia de ‘rejuvenescimento’ para baixa virilidade e apatia em homens idosos.”

(Foi nesse período, aliás, que Frank Buckley, o então líder do time de futebol inglês Wolverhampton Wanderers, começou um rumor de que ele estava injetando nos jogadores um soro extraído de glândulas de macaques para melhorar o desempenho deles. A moda do hormônio sexual era estranha.)

Nesse contexto, cromossomos sexuais faziam todo sentido — um par compatível para os hormônios que determinavam masculinidade e feminilidade. Ao final da década de 1930, a teoria metabólica havia sido descartada por esse novo modelo, onde o sexo genético (XX/XY) causa os desenvolvimentos de ou testículos ou ovários, que em troca criam os hormônios sexuais que fazem todo o resto. Esse processo de duas fases era “uma infraestrutura poderosa e mutualmente autoafirmativa para a biologia do sexo”, e o fundamento sobre o qual trabalho posterior — como a ideia de que sexo é biológico e fixo, e gênero social e maleável — foi construído.

Isso pode ser visto em como cromossomos sexuais começaram a influenciar debates sobre gênero e sexualidade. Havia especulação de que o cromossomo Y “reprimia” o X feminino, ou que feminilidade era a “ausência” de masculinidade; ou, que a “variabilidade intelectual maior entre machos” (em outras palavras, por que cientistas homens achavam que homens eram mais espertos que mulheres) era questão da sorte de ter um único cromossomo X. Com dois X, traços recessivos incomuns seriam mais comumente reprimidos, mas com um, genes raros supostamente responsáveis pela genialidade deveriam aparecer. E, parecidamente, feministas e ativistas iniciais dos direitos das mulheres, assim como escritores homens como o antropólogo Ashley Montagu, se agarram à ideia de que ter dois X era a justificativa científica para o que na verdade era a “superioridade biológica” das mulheres. A ideia de X e Y carregando “o sexo em si” foi arraigada, auxiliada pela eugenia na moda da época que via a biologia como justificativa para uma gama de preconceitos racistas, sexistas e classistas.

Isso só piorou após a Segunda Guerra Mundial, com as descobertas do DNA e das primeiras causas cromossomais específicas de certas doenças (como a síndrome de Down, causada por um cromossomo 21 extra). A moda era pensar na genética como uma resposta simples para tudo — parecia que toda característica física, da cor do olho à altura e da inteligência ao sexo, era causada pela presença ou ausência de um único gene ou conjunto de genes. Os cromossomos sexuais do modelo hormonal de 1930 — “os homúnculos genéticos sublinhando dismorfismo sexual”, como Richardson os chama — se encaixavam perfeitamente nesse novo paradigma.

Cariótipos se tornaram amplamente conhecidos, dando às pessoas talvez a primeira imagem icônica real do genoma humano. Os cromossomos sexuais eram empurrados para a margem ou para o final da última linha, acentuando sua distinção percebida — o formato usado até hoje:

(Descrição de imagem: a impressão de um cariótipo XY completo num fundo branco, com todos os 23 pares de cromossomos enumerados. Fim da descrição.)

O Próprio Sexo tem muitas histórias sobre o público geral não entendendo que X e Y não são tudo que há sobre sexo, mas tem muito mais quando se fala em cientistas inclinades em modelos teóricos frágeis não percebendo isso até que fosse tarde demais. (Embora isso não fosse verdade para todo mundo — Richardson encontrou muitas evidências de geneticistas lutando para descobrir quanta influência deveriam realmente atribuir ao X e ao Y.)

Um exemplo particularmente maldito é o tão chamado “super macho” — a descoberta de um pesquisador que um número incomumente alto de homens encarcerados numa prisão em Edinburgh tinha um cromossomo Y extra (tornando-os “machos XYY”), levando à especulação de que “isso pré-dispõe seus portadores a comportamento incomumente agressivo”. A quantidade de tempo gasto em investigar essa hipótese, e sua influência na cultura pop, é espantosa:

A tão chamada síndrome de XYY foi um alvo convencional de investigação nos mais prestigiosos jornais de biologia, genética e citogenética… até 1970, aproximadamente duzentos papeis sobre a ligação entre XYY e agressividade aparecerem na literatura científica. Entre 1960 e 1970, a pesquisa do XYY compreendia 82% de todos os estudos científicos publicados sobre o cromossomo Y humano. Isso representa 28% de toda a pesquisa sobre o cromossomo Y gerada no período entre 1960 e 1985.

Como Jeremy Green recorda, ‘no começo da década de 1970, haviam pelo menos dois filmes thriller em que o personagem principal era um criminoso violento com uma anomalia cromossomal, uma série de romances criminais com um herói XYY (que constantemente lutava contra sua compulsão interna de cometer crimes), e como um spin-off dos livros, uma série de TV chamada O Homem XYY’. O Dicionário Inglês de Oxford cita o Dirtiest Picture Postcard de 1974 de Peter Cave como o primeiro uso anglófono do cromossomo Y num texto não-científico: ‘Você me prendeu na conversa para me dar sermões longos e chatos sobre Germaine Greer, o cromossomo Y defeituoso e as diligências do trabalho doméstico e parto’.

Mas claro que não havia ligação entre ter um Y extra e “masculinidade” extra, porque masculinidade não é definida pelo cromossomo Y. Traços estereotipadamente masculinos (como agressividade, mesmo que nem todo homem XYY na prisão estava lá por causa de crime violento) era um resultado de uma interação complexa de natureza e criação, e a projeção do conceito ocidental de masculinidade em cima do cromossomo Y levou horas indizíveis de pesquisa para um beco sem saída.

E esse tipo de pensamento era comum com cromossomo X também — Richardson descreve como os homens Klinefelter (XXY) eram vistos mais como “dependentes maternos”, e testados para se verificar se eram mais como homens ou mulheres em suas habilidades verbais e sociais. Homens XXY pareciam homens, e muitos homens com o cromossomo extra nunca percebiam que o tinham — ainda assim pesquisadories frequentemente interpretaram seus desvios da masculinidade normal (como peitos maiores e testículos menores) não em termos objetivos, mas como traços masculinos “feminilizados”, com isso criando um estigma.

O último suspiro da teoria do cromossomo sexual veio na década de 1990, com a descoberta do gene SRY no cromossomo Y — sem ele, o desenvolvimento das gônadas masculinas é impossível. É a única etiqueta genética encontrada somente naquelus que são machos, e é a melhor candidata para sustentar a teoria clássica do cromossomo sexual. Mas, como Richardson escreve: “Hoje o gene SRY é entendido como um entre os muitos fatores essenciais para a determinação do sexo em mamíferes que estão envolvidos nos caminhos genéticos de ambas as determinações testicular e ovariana. Mamíferes requerem cascatas de produto genético em dosagens apropriadas e em momentos precisos para produzir gônadas funcionais de macho e fêmea, e pesquisadories reconhecem uma variedade de fenótipos sexuais saudáveis e caminhos de determinação sexual em humanes.”

Atribuir sexo biológico baseado na presença ou ausência do gene SRY não faz sentido quando ele é apenas parte de uma rede imensamente complexa de outros fatores biológicos e ambientais, especialmente quando não é mesmo necessário em toda espécie de mamíferes. (E talvez nós devemos aes nosses ancestrais vitorianes algum reconhecimento tardio por sua apreciação mais diferenciada do desenvolvimento sexual.) Muites cientistas discutem vigorosamente que pesquisa sobre a genética racial não deveria começar por catalogar genomas pelo que percebemos como diferentes grupos raciais, para evitar projetar um viés racista em cima dos resultados — não deveríamos fazer o mesmo com sexo?

Richardson aponta para vários diferentes grupos como responsáveis em desenterrar a genética de sua rotina de determinação peloi cromossomo: psicólogues criminais, médiques clíniques, e, acima de tudo, feministas, cujos questionamentos de gênero e sexualidade (frequentemente de fora da academia científica) criaram um corpo importante de evidência empírica. Anne Fausto-Sterling e Jennifer Graves, em particular, assim como grupos pressionadores de ciência feminista como Society for Women’s Health Research, são citades como crítiques importantes da representação binária de sexo biológico ou genético — e essenciais para a “mudança conceitual” pós-2000 para o modelo complexo que conhecemos hoje, onde a interação de diferentes fatores genéticos e ambientais dá origem tanto a características físicas sexuais quanto aspectos do sentimento psicológico de identidade de gênero.

O Próprio Sexo é uma demolição compreensiva do próprio termo “cromossomos sexuais” — uma taxonomia de quase um século atrás, tropeçando meio-viva na imaginação do público mas indo muito tardiamente ao abatedouro:

“Ideologia de gênero é dinâmica, persistente, e sempre presente no estudo de genética e genoma sobre sexo e gênero; não pode ser excisada cirúrgica ou permanentemente da ciência. Em vez de procurar uma maneira de eliminar o gênero na ciência, é mais aconselhável focar em modelar os diversos papeis das suposições de gênero em áreas específicas da ciência, a fim de desenvolver métodos críticos de gênero e abordagens para a ciência.

A pergunta não é ‘como podemos tirar todas essas políticas de gênero da genética?’ e, sim, ‘como podemos ampliar e aprimorar criticamente nossas idéias sobre gênero, que são pivô em nossas teorias científicas do sexo?’”

Na época entre a descoberta de Plutão em 1930 e sua reclassificação como um planeta anão em 2006, ele completou apenas um terço de sua órbita ao redor do Sol; em quase essa quantidade de tempo os cromossomos sexuais se divertiram em serem árbitros místicos do sexo de todas as coisas. Se preocupar com os sentimentos feridos de um planeta rebaixado é tão sensível quanto se preocupar com aqueles por uns pedaços de material genético numa célula — o que importa é como temos certeza que interpretamos nosso mundo, e construímos nossas taxonomias, de forma que melhore nosso entendimento do mundo, e não o limite.

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