Texto sobre motivos e formas de indicar linguagem pessoal nas redes sociais

Oltiel
9 min readOct 18, 2020

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Existem campanhas e postagens de pessoas trans e não-binárias apelando para que pessoas num geral indiquem alguma linguagem pessoal em suas redes sociais, principalmente através da bio (biografia), onde geralmente pessoas descrevem alguma coisa sobre si (idade, profissão, etc).

Esse é mais um texto falando sobre isso, mas abordando outros aspectos que não vejo sendo falados ou explicados nos demais conteúdos, e procurando não cometer as mesmas falhas que se repetem até hoje.

Como podem reparar, não falei “pronomes” no título. Isso porque na língua portuguesa as linguagens que usamos para nós mesmes e com outras pessoas vão além de pronomes pessoais. E também quero dizer outra coisa com “indicar”, pois há outras formas de evidenciar um tratamento do que uma descrição curta e simples como “ele”, ou “ela/a”, ou “ê/elu/e”.

Antes de tudo, quais são os objetivos disso tudo?

Conforme as discussões de gênero foram avançando, e comunidades de pessoas trans/não-binárias foram ganhando espaço e visibilidade, várias questões emergiram. Uma delas é o reconhecimento da identidade de gênero através do uso da linguagem, o que inclui não apenas um nome (social ou retificado), mas também pronomes, artigos, substantivos e adjetivos, títulos e outros marcadores de gênero. Numa língua como a nossa, que é toda generificada, isso pesa mais que em outras menos generificadas (como o inglês).

Para não perpetuar esse cissexismo estrutural que nos dita que linguagens pessoais podem ser presumidas e usadas pelo “sexo” deduzido ou sabido da pessoa, ou, no máximo, através da aparência ou leitura que se faz (que, a princípio, é binária), uma forma de romper com isso é normalizar perguntas e descrições a respeito de linguagens. Ou seja, normalizar perguntar a alguém como tratá-le e normalizar pessoas descreverem como querem ser tratadas, e tudo isso independentemente de como a pessoa se chama ou pareça.

Claro que no dia-a-dia, na rua, no emprego, enfim, isso não tem a mesma prática ou tanta necessidade. Não saímos com um crachá dizendo nossa linguagem, e podemos deduzir um tratamento ou parte dele conversando com alguém. O ideal seria tratar as pessoas ou com um conjunto neutro universal ou evitando uma linguagem específica dentro da gramática tradicional até ter uma indicação da outra parte. Na dúvida, sempre perguntem.

Voltando ao tema, aqui estamos falando de redes sociais, do meio virtual. Pois o mundo virtual é uma extensão do mundo material, parte das vidas de várias pessoas, e outra forma de comunicação e de manifestarmos o que somos. O que colocamos é importante, e informações devem (ou ao menos deveriam) ser checadas antes de interações.

Para pessoas trans e não-binárias em especial, a questão do respeito às linguagens pessoais é muito importante, não apenas para o reconhecimento de suas identidades e individualidades, mas também por sua saúde mental e autoimagem. Para muitas pessoas, às vezes o que lhes resta como um espaço seguro para serem respeitadas são as redes sociais. E as redes também costumam ser refúgio de pessoas ainda não assumidas, ou um espaço de experimentação para quem está se descobrindo e testando uma nova linguagem.

Mas isso não precisa ser uma pauta exclusiva de quem é trans/não-binárie. Pessoas cis também podem aderir, e isso é uma boa ação de pessoa aliada da causa. Mesmo sendo pessoas binárias e os gêneros binários tendo linguagens “padronizadas”, é válido também romper com o pensamento de que a linguagem de homens e mulheres é óbvia. Aliás, existem homens e mulheres inconformes de gênero que usam linguagens não esperadas, como a linguagem associada ao outro gênero binário e também neolinguagens. De novo, precisamos desassociar que existem linguagens definidas para determinadas identidades de gênero.

Bem, agora falarei de possibilidades de descrição de linguagem, e outros tópicos que envolvem esse tema e que ainda são frequentes (e aqui falo de limitações e reducionismos que não ajudam muitas pessoas inconformes de gênero).

Utilizando o sistema APF

Esse sistema, que descreve linguagem como artigo/pronome/flexão ou final (de palavra), é uma forma mais precisa de evidenciar um tratamento do que dizer apenas pronome, por exemplo.

Como exemplos clássicos, os dois conjuntos validados pela língua padrão são o/ele/o e a/ela/a. De conjuntos de neolinguagem comuns por aí acho que eu poderia citar e/elu/e, le/elu/e, e -/elu/e*; essa variedade se deve ao fato de que ainda não existe consenso sobre um novo artigo definido que serviria como neutro universal.

*Observação: traço significa ausência daquele elemento.

Aqui não existe intenção de limitar possibilidades, ou reduzir todo mundo a no máximo três opções de linguagem. Esse sistema está aqui também para dar abertura a infinitas combinações de conjuntos. Por isso, também, classificar tudo em masculino ou feminino ou neutro também acaba se tornando sem sentido, pois pessoas podem combinar elementos da língua padrão com elementos de neolinguagem, como usar artigo e flexão a com neopronome ila, ou usar pronome ele com neoflexão i.

Muito embora nós todes, por termos sido criades desde sempre dentro desse idioma, sabemos o que as pessoas querem dizer com “me trate no masculino” ou “use o gênero feminino” (sabemos tudo que acompanha os gêneros gramaticais normativos sem nem saber as classes gramaticais), dizer apenas “pronome neutro” na bio não diz nada, absolutamente nada. Embora na maioria das vezes isso se refira ao menos ao neopronome elu acompanhado da neoflexão e, existem as seguintes questões: há pessoas que usam outros neopronomes fora elu (como ilê e éli), isso reduz qualquer coisa fora da língua padrão a “neutro”, tem gente que já usou isso para dizer que na verdade não usa pronome, e é uma descrição vaga que merece mais explicações por ser um assunto ainda novo (considere a chance de alguém que nunca ouviu falar em neolinguagem vendo sua bio).

Para contornar essas complicações, o sistema APF é uma alternativa, pois descreve linguagem de uma forma mais precisa, mostra outros elementos gramaticais do idioma, e não precisa cair na contradição de chamar alguma linguagem por alguma qualidade de gênero.

Mesmo para quem está acostumade a ver como descrições de linguagem apenas o pronome pessoal ou [pronome]/d[pronome] (uma tradução errada do inglês), é possível deduzir que ao menos o segundo elemento é um pronome e o terceiro é o que vem no fim das palavras que “mudam de gênero”. Para quem conhece as propostas de neoartigos, como e ou le ou u, pode ser mais intuitivo saber que o primeiro elemento é o artigo.

E, assim, dúvidas sobre o sistema podem ficar menores à medida que o mesmo é popularizado. Não adianta também usar a desculpa de “vou usar o de sempre” ou “vou usar o que todo mundo já conhece”, pois se formos por esse caminho, nenhuma novidade ou melhoria sairá de um nicho e chegará a mais pessoas.

Pessoas que usam mais de uma linguagem

Se você estiver disposte a isso e isso for possível, pode descrever cada conjunto separadamente, ou descrever com parênteses e colchetes. Por exemplo: alguém que usa ambos conjuntos da língua padrão poderia colocar isso como o/ele/o, a/ela/a ou (o,a)/(ele,ela)/(o,a). Recomendo mais isso do que algo como o/a/ele/ela/o/a ou o/ele/o/a/ela/a, ou mesmo o(a)/ele(a)/o(a).

Para pessoas que mudam de linguagem periodicamente, algo comum com pessoas gênero-fluido, eu já vi duas opções:

A) colocar apenas uma linguagem, e mudá-la quando sentir vontade.

B) colocar todas as linguagens que usa no total, e indicar qual a linguagem do momento através de um emoji correspondente (ex: colocar o emoji de sol após um conjunto e então colocar o mesmo emoji ao lado do nome de perfil).

Acredito que pessoas que usam mais de duas ou três linguagens possam não querer colocar mais que isso numa bio. Então recomendaria colocar sua maior preferência ou ao menos o que você mais usa pra si.

Caso tenha preferências, já vi pessoas usando emoji também para indicar isso, como um coração inteiro e um meio coração, ou um sinal verde e um sinal amarelo, ou um sorriso aberto e um sorriso mais fechado. Enfim, use a criatividade.

Qualquer opção de linguagem

Precisamos muito começar a quebrar esse pensamento reducionista de que quando alguém diz “qualquer pronome” está se referindo a ele/ela ou mesmo ele, ela, e elu — o que, na verdade, remete aos conjuntos de linguagem o/ele/o, a/ela/a, e ?/elu/e (interrogação porque não existe consenso sobre um neoartigo). Usar qualquer linguagem é usar literalmente qualquer linguagem, e linguagens são infinitas.

Caso queira descrever de acordo com o sistema APF, pode colocar como [q]/[q]/[q], por exemplo. Pode também dizer apenas “qualquer” ou “qualquer linguagem”. Se não se importar mesmo com linguagem, pode apenas não descrever nada também. Eu, pelo menos, quando me deparo com o perfil de alguém que sei que é pessoa trans/não-binária e não há qualquer indicação de linguagem em nenhum lugar, costumo usar uma linguagem mais livre de associações com gênero; pelo sistema APF, seria o conjunto -/-/-. Isso me garante estar respeitando alguém que usa qualquer linguagem (quem usa qualquer também não usa nenhuma, né?) ou alguém que não usa nenhuma linguagem específica também.

Se você usa apenas os conjuntos da língua padrão e um conjunto neutro universal de neolinguagem, tudo bem. Apenas não coloque essas três opções como as únicas válidas definindo-as como “qualquer”, pois é isso que implica falar dessa forma.

Acessibilidade

Um apelo: não descrevam linguagem usando caracteres especiais ou caligrafias personalizadas. Nada disso é reconhecido em leitores de tela. E seria ótimo se descrições de linguagem fossem acessíveis ao maior número de pessoas.

Também não recomendo pelo mesmo motivo o uso de conjuntos de linguagem que contenham caracteres impronunciáveis (como xis e arroba) ou especiais (como aquela letra ae do latim). Nesses casos, para perfis de redes sociais, e não outros espaços mais restritos (como salas de bate-papo), um conjunto auxiliar ou um conjunto com elementos reconhecíveis é recomendável.

Outras formas de indicar linguagem

Entendo que há pessoas que possam não querer colocar um conjunto de linguagem na bio por quaisquer motivos. Acho válido indicar então através de palavras flexionadas que descrevem a pessoa, como “graduando”, “escritora”, “farmacêutique”, etc.

Apesar de tudo que falei sobre o sistema APF, entendo se algumas pessoas preferirem evidenciar ainda o pronome pessoal (ainda é um costume importado do inglês da comunidade brasileira). Não vejo real problema em colocar “elu” e em seguida palavras flexionadas com e. Pode também indicar fazendo uma apresentação como “olá, eu sou i [nome]”. Se você for alguém que usa mais de uma linguagem simultaneamente, pode sinalizar isso usando palavras flexionadas diferentes (“blogueiru e revisore”).

Se houver algum motivo para não querer fazer qualquer indicação de linguagem na bio, recomendo uma postagem à parte. Isso pode ser possível com um destaque (Instagram), um fixado (Twitter/Mastodon), uma descrição de perfil (Facebook), um link externo para algum local ou espaço com informações detalhadas, enfim, depende de cada plataforma e das possibilidades. E já ressalto que fazer postagem separada exige mais boa vontade alheia em conferir linguagem do que apenas olhar uma bio, que é praticamente inevitável de olhar nas redes sociais (embora haja gente que nem olha mesmo), mas somente pessoas interessadas em respeitar a outra parte vão se dispor a isso, e quem não faz isso não merece a atenção ou o contato com pessoas trans/não-binárias.

Contudo e apesar de tudo, maldenominação (tratar pela linguagem errada) sempre pode acontecer, por mais que possa estar evidente pela bio um tratamento, por mais que tenha uma postagem toda didática. Às vezes vale o esforço de pontuar essas coisas, assim a outra pessoa pode aprender a se atentar mais a isso. Mas se mesmo avisando, mesmo explicando, a maldenominação persistir, recomendo se afastar ou bloquear.

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Enfim, acredito que isso era tudo que eu tinha para falar do assunto. Deixarei logo abaixo também outras referências de materiais e fontes sobre linguagem pessoal, neolinguagem, e tópicos paralelos. Dúvidas? Perguntem.

Links adicionais:

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