A estética e a narrativa de uma pandemia: uma breve análise das reportagens do ‘Fantástico’ sobre Coronavírus

PabloVallejos
4 min readMar 18, 2020

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Alunos de Jornalismo, principalmente, devem atentar aos métodos jornalísticos escolhidos por produções como ‘Fantástico’. O momento de confecção de uma reportagem requer estruturação, experimentação e o manuseio de vários instrumentos de edição. Dependendo como você utiliza tais recursos, a chance de gerar uma narrativa e uma estética imersivas, que atraem o telespectador, é grande.

Todo mundo sabe que ‘Fantástico’ é um programa da TV Globo que proporciona um jornalismo de tom único, misturando grandes reportagens com pautas mais leves em variadas editorias. É sabido, também, que ali reside um esforço em colecionar as informações mais relevantes e sintetizar no espaço de duas horas de atração da emissora. Ou seja, agrupar o máximo de conteúdo interessante e compactá-lo com uma bonita embalagem de representações estéticas e narrativas. Se no trajeto da semana temos acesso às informações quentes, no ‘Fantástico’ entramos em um território mais confortável, para digerir passo a passo, de modo mais paciente, um resumo bastante profissional sobre tudo o que há de mais sobressalente no momento.

É importante destacar isso tudo, pois essas características ficam ainda mais acentuadas — e postas em exercício — em ocasiões como a disseminação global da pandemia Covid-19. O chamado Coronavírus está em pauta desde dezembro de 2019 e fica em evidência crescente até o momento da redação deste texto, em 18 de março de 2020. Em uma reportagem no início deste ano, o ‘Fantástico’ documentou o início dessa história com certo distanciamento: atribuía a relevância ao assunto, mas talvez não enxergasse ali a devida dimensão (que viria meses depois). Na edição de março, por sua vez, uma ampliação nas representações e nos modos de retratar informações que permeia sua extensa reportagem. Um telejornalismo versátil em técnicas, ainda que sóbrio sem parecer vão ou bobo. Uma boa aula para estudantes.

A representação gráfica e exagerada do Covid-19 na reportagem de janeiro (26/01) parece comunicar, com alarme, a possibilidade de que o vírus está em todos os lugares e se espalhando freneticamente. Aí está a necessidade de encontrar equilíbrio na hora de escolher como representar imageticamente.

Os contrastes são muito claros: em janeiro, não se sabia a proporção que esse evento alcançaria; em março, por sua vez, há um conhecimento aprofundado e, logo, uma necessidade de representar quão denso e sério esse assunto é hoje e pode ser no futuro. Nessa lógica, a edição mais recente recorre a um acervo mais plural de técnicas para contar essa história. É preciso infografia (para listar dados), computação gráfica (explicar noções científicas, disseminação do vírus, etc.) e uma abundante amostra de banco de imagens.

Relatos de quem está na China, imagens obtidas com celulares, infografia que explica a proporção global do Covid-19 e orientações sobre o uso de máscaras. Em janeiro de 2020, a edição do ‘Fantástico’ ainda é pragmática em seu modo de reportar o vírus. Dois meses depois, a escolha da narrativa dessa abertura de programa mudaria por completo para convidar o telespectador a uma imersão quase cinematográfica.

Como a recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde) é evitar aglomerações e permanecer em casa, o esvaziamento dos espaços públicos evoca uma estética semelhante aos filmes pós-apocalípticos. Ou seja, te faz lembrar “Eu sou a lenda”, “Um lugar silencioso”, “Filhos da Esperança”, “Ensaio sobre a cegueira” ou a série “The Walking Dead”, entre tantos outros títulos. Uma sensação de que a civilização já circulou por esses lugares, muito populados, e agora o mundo material do consumo caiu em esquecimento, apagamento. O ‘Fantástico’ brinca de associar as imagens factuais, de cidades realmente esvaziadas pela quarentena, com a aparência visuais desses filmes. Basta observar o recurso de “sombra interna” (“inner shadow”), a coloração (ora azulada, ora amarelada). Quem assistiu à “Extermínio” (tom azulado) e “Contágio” (tom amarelado) sabe do que estou falando.

A coloração, assim como outros tantos recursos imagéticos, proporciona uma atmosfera e impacta a maneira com a qual absorvemos e interpretamos a imagem que nos é apresentada. Nossa leitura e atribuição de significado é chacoalhada quando assistimos à reportagens telejornalísticas que se parecem com filmes. Isso tudo sem mencionar, a escolha de imagens (esvaziamento, resquícios de humanidade, etc.) ali contidas.

É fundamental, também, notar o contraste das narrativas propostas entre uma edição e outra. Enquanto na primeira, de janeiro, o ‘Fantástico’ mostra preocupação em reportar o ocorrido nesse outro território, distante, a preocupação soa menor. Logo, a estrutura da reportagem é feita em blocos tradicionais, factuais, preenchendo todos os conteúdos de acordo com a regrinha do lead jornalístico. Na segunda edição, de março, assistimos a uma reportagem adjetivada, com entonações versáteis da voz dos repórteres, com um espaço de respiro para destacar momentos de seriedade e uma trilha sonora mais cinematográfica.

A voz com específica entonação, as pausas, a trilha de lento suspense que migra para um som acelerado (o drama na saúde mundial e a corrida pela cura) e, por fim, a bateria de imagens. A introdução dessa edição do ‘Fantástico’ evidencia uma proposta estética e narrativa particular do programa na informação sobre o Covid-19. Vale conferir e observar os signos, os instrumentos e a estrutura que foram escolhidas ali.

O modo o qual ‘Fantástico’ costura as informações dessa reportagem é um bom casamento de conteúdo jornalístico com edição de som e de imagem. Requer cuidado, porém, no momento de recorrer a essas ferramentas de representação estética e narrativa, pois elas podem ofuscar a real informação, eclipsando o caráter que configura o fato como notícia. Ou seja, alarmar e provocar deslumbre em vez de transferir informação e manter o telespectador munido de saberes concretos. Demanda experimentação, pesquisa, rascunho de texto e tempo na ilha de edição para contar histórias como essas no telejornalismo.

A avaliação dessas reportagens deve ser feita, assim como em outras posteriores, de modo a desvendar as variadas técnicas que o telejornalismo brasileiro está explorando a medida que os anos — e a história — nos acometem. Para estudantes de Comunicação, em específico no curso de Jornalismo, esse tipo de ótica mais analítica é essencial para obter noções mais claras dos instrumentos da profissão.

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