Os benandanti de “Luna Nera”

Paula carvalho
4 min readFeb 24, 2020

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As bruxas

Assisti à série italiana Luna Nera, que segue a perseguição de um grupo de bruxas na Itália do século XVII. Meu ponto aqui não é fazer uma crítica à série — que é uma confusão, misturando mistério medieval com pitadas de “Brumas de Avalon”, caindo no sobrenatural; o problema não é essa mistureba toda, é o potencial desperdiçado de boas linhas narrativas que nunca são bem desenvolvidas. Eu quero mesmo é falar dos benandanti!

Os benandanti caçando bruxas

Os benandanti são retratados na série como os antagonistas: homens (e uma mulher, Cesaria, uma das personagens mais interessantes da série por querer ser aceita como um dos homens do grupo, algo que obviamente nunca vai acontecer) caçadores de bruxas que tem um acordo com a Inquisição. Eles saem vestidos com uma indumentária feita de pelos, objetos de metal, máscaras e um risco preto nos olhos, segurando tochas. Os benandanti são realmente figuras históricas que existiram na região do Friul, na Itália, nos séculos XVI e XVII. Sabia disso por causa do livro “Andarilhos do bem” (tradução literal de benandanti), do historiador Carlo Ginzburg, e foi uma das razões de eu querer assistir à série, para ver como lidavam com esses personagens históricos.

Não estou pedindo para a série ter uma relação precisa com a história, só queria mesmo fazer uma comparação. Os benandanti, na realidade, não saíam por aí mascarados caçando bruxas. É verdade que eles diziam lutar contra as bruxas e feiticeiros, mas em espírito e não em carne e osso. Eles entravam em uma espécie de transe, em que seu espírito saía do corpo e eles não podiam ser acordados, senão sua alma ficaria vagando sem rumo por aí. Podiam tanto homens quanto mulheres e lutavam em grupos liderados por um capitão. Ginzburg especula que eles deviam ter se originado da religiosidade tradicional camponesa para depois ir incorporando elementos cristãos, e que teria sua origem em mitos eslavos que chegaram até a Itália. Pois o historiador descobriu esses relatos em arquivos da Inquisição italiana, quando benandanti eram interrogados por membros da Igreja que procuravam inserir a narrativa deles dentro dos moldes do sabá demoníaco, algo amplamente aceito pela demonologia de então (sim, era uma espécie de campo de conhecimento). O sabá basicamente era um ritual regado a dança e bebida presidido pelo Diabo em que as bruxas prestavam fidelidade a ele, beijavam seu ânus, por vezes transavam com ele; era comum também a profanação de ritos religiosos cristãos, como fazer uma missa ao contrário, e ao final havia a renegação da fé cristã (apostasia).

Portando ramos de erva-doce, os benandanti, para confusão dos inquisidores, diziam lutar contra bruxas e feiticeiros, que empunhavam paus de sorgo. Se fossem bem-sucedidos na luta, a colheita daquele ano seria boa; também lutavam para proteger crianças de feitiços e para não amargar o vinho. Lutavam em nome de Deus e do cristianismo. Eles também eram procurados para desfazer feitiços de bruxas. Com o passar do tempo, de defensores do cristianismo vão passar a ser identificados como bruxos, o que traz uma certa ironia histórica ao vermos em “Luna Nera” eles representarem os interesses da Igreja, que passará a persegui-los.

Um detalhe interessante e que é incorporado à série é como a pessoa se tornava um benandante. Ela não ia a essas batalhas porque “queria”, mas sim porque era “obrigada”, era seu “destino”, tinha nascido com essa “estrela”. Todos os benandanti nasciam empelicados, ou seja, nasciam envoltos no saco amniótico, que era guardado. Para participar dessas lutas, os benandanti precisavam ter consigo esse saco o tempo todo. Em “Luna Nera”, todos os benandanti tem esse saco mantido em uma espécie de resina, servindo como o pingente de um colar que todos eles exibem em seu peito.

O saco amniótico que envolve o benandante em seu nascimento

Ginzburg também traça essas mesmas características em um interrogatório da Inquisição na Lituânia de um homem que dizia ser um lobisomem: ele saía para lutar contra bruxas em determinadas épocas do ano para defender as colheitas e tinha nascido empelicado. O historiador italiano vai retomar esse caso específico em “Freud, o homem dos lobos e os lobisomens”, publicado em “Mitos, emblemas e sinais”, em que vai sugerir que se esse famoso paciente de Freud, Sergei Pankejef (com quem o pai da psicanálise tinha uma relação intensamente bizarra — cuidou dele criança e depois voltou a fazer análise com ele quando adulto, mas não cobrava pelas consultas e até dava dinheiro para ele, que estava falido; Pankejef, ao mesmo tempo, se achava um dos pacientes mais importantes de Freud) que sonhava com lobos brancos em uma árvore, tivesse nascido no século XVII ele não seria considerado um neurótico, mas sim um lobisomem, que teria por missão lutar contra bruxas para garantir a boa colheita da sua comunidade. Pankejef era filho de uma rica família aristocrata russa e tinha como babá uma mulher eslava que, segundo Ginzburg, deveria contar histórias do folclore desse povo e que ele acabou incorporando em seu imaginário, fazendo-o sonhar com lobos. A cereja do bolo, contundo, é que Pankejef nasceu empelicado. O mundo moderno, afinal, não traz utilidade para um lobisomem.

Sergei Pankejef

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Paula carvalho

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