Tarás Bulba (Nikolai Gógol)

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4 min readFeb 27, 2019

O ucraniano Nikolai Gógol é desde a infância um dos meus autores preferidos na literatura russa. Procuro resolver essa aparente contradição ucraniano-russa com uma explicação histórica: até o fim da União Soviética em 1991 a Ucrânia pertenceu a uma comunidade política e cultural com a Rússia que atravessou séculos, compartilhando com seus vizinhos a nordeste a mesma vivência social e cultural. Portanto, se escrito antes de 1991 considero os autores ucranianos como Gógol (Ou como Bábel) como literatura russa.

Dito isto, vou em direção a uma obra que foge da característica cômica e satírica que sempre me encantou neste escritor. Tarás Bulba, publicado pela Editora 34 em 170 páginas, é uma narrativa de tons épicos escrito em terceira pessoa que conta a história das lutas do guerreiro cossaco Tarás (que dá nome ao livro). Bulba é um chefe militar experiente em guerrear, um homem já de idade, mas que ainda possui o espírito da peleja e tenta convencer seus companheiros a ir em direção a novas batalhas.

A história começa em Zaporojie, no sul da Ucrânia em meados do século XV, com Tarás aguardando a chegada dos seus filhos Óstap e Andríi, que estavam num seminário em Kiev estudando filosofia e teologia e retornam à terra natal para voltarem às origens guerreiras. A aparente contradição entre filosofar e pelejar não aparece aqui, pois Gógol diz que isso era um costume por aquelas épocas. Tarás, embora valorizasse o estudo dos filhos, desejava que estes rumassem em definitivo para o caminho da guerra. A esposa do chefe Bulba é apresentada como alguém que possui um papel submisso e menor. Sua emoção ao ver os filhos chegando e logo partindo para o caminho militar é reprovada pelo marido.

Enquanto Óstap é considerado um futuro líder guerreiro, seu irmão mais novo Andríi é censurado pelo pai ao se envolver num romance em Kiev. Para Tarás a guerra deve ser mais importante que o amor. No acampamento cossaco para onde pai e filhos se dirigem Tarás chega e fomenta uma rebelião contra o kochevói (líder) moderado que guiava os guerreiros, pois considera este um homem traidor por querer a paz com os turcos. Ao derrubar este líder Tarás consegue influenciar os soldados a partirem pra uma nova guerra.

Nesta parte do livro os cossacos aparecem atacando os judeus que comerciavam em volta do acampamento. Aqui aparece um velho preconceito ancestral antijudaico infelizmente comum no Leste europeu. Os judeus eram perseguidos pela religião que praticavam, por comerciarem e terem riquezas e por serem considerados apátridas, estando em todos os lugares do continente e falando um idioma próprio: o íidiche. O judeu Iankel é o símbolo desse estereótipo judeu criado pelo autor, sendo um personagem apresentado como um homem frágil, volúvel e mercenário. Não gostei nem um pouco dessa caracterização, me senti desconfortável com ela e um pouco decepcionado com Gógol. Não esperava que ele repetisse preconceitos de sua época.

Em seguida Tarás e os cossacos partem para o sudoeste da Polônia, onde cometem massacres e pilhagens contra a população católica. Para os cossacos a vida consistia em defender a pátria e a fé ortodoxa, fazendo de todos que estivessem ao seu redor e não comungassem da mesma crença em inimigos. Isso vale para judeus, tártaros, turcos ou poloneses. Os cossacos exaltavam seu espírito festivo e anárquico fazendo festas regadas a vinho, cerveja e hidromel para festejar suas conquistas.

Uma narrativa de tons épicos sobre a violência histórica dos cossacos

Os poloneses eram desprezados por viverem numa sociedade aristocrática e senhorial, repleta de luxos e requintes. Os cossacos a isso se contrapunham vivendo em simplicidade e carregando um forte espírito de igualdade social. Em meio à batalhas em terras polonesas Andríi acaba sendo guiado mais uma vez pelo amor e troca de lado no conflito, passando a lutar lado a lado com os poloneses. A traição do filho revolta Tarás, que a considera imperdoável e promete vingança.

Nessa espiral de vingança Andríi e Óstap são mortos em circunstâncias diferentes: o primeiro como traidor e o segundo como herói. Lutando para vingar a morte de Óstap, Tarás reúne um exército de 120 mil homens que entra na Polônia causando mortes e destruição nunca antes vistas, aplicando contra a população civil uma quantidade de violências inimagináveis. A crueldade regozija os cossacos, os quais vivem despossuídos de qualquer sentimento de remorso pelo que fazem. Mas essa violência vai ter troco e vai se voltar contra Tarás, que vê atônito seus companheiros tombando em batalha e em breve se encontrará frente a frente com seu destino final.

Embora a narrativa épica seja interessante, Gógol parece errar a mão na descrição da vida cossaca, que parece ao longo das páginas ser constituída de um enorme vazio moral. O livro é repleto de grandes e pequenas violências que costumam acontecer sem precisar de qualquer explicação ou justificativa. É o ser humano mostrado em seus momentos menos humanos. Uma obra não recomendada para sensibilidades afloradas.

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