O Assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford (2007)

Parina Mais
5 min readMay 25, 2018

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Há uma diferença abissal entre ler uma descrição dos acontecimentos de um filme e assistir a eles se desenrolarem. O Assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford é um excelente exemplo disso: apesar de retratar uma personalidade muito conhecida, a sua inventividade faz com que a trajetória de Jesse seja original e empolgante — mesmo que o título nos conte como terminará.

As distorções nos cantos dos quadros dão um tom fantasmagórico à história

Este segundo longa de Andrew Dominik utiliza recursos como enquadramento, música, narração em off e — especialmente — fotografia para afastar a história de Jesse James da biografia e aproximá-la da mitologia. Isso não quer dizer que os eventos retratados se distanciam de como aconteceram (ao contrário, o filme parece ser bem fiel aos fatos), mas que a forma escolhida para retratá-los cria uma atmosfera de sonho que transforma a vida do fora da lei em uma fábula sobre um arquétipo.

Isso é especialmente inteligente em se tratando de um filme que é, essencialmente, sobre um bandido. A sequência inicial, com a sua música melancólica, película enevoada e narração fantasmagórica é um ótimo exemplo da ambientação onírica que domina a narrativa. Tudo isso funciona para fazer com que julgamentos morais sobre as ações de Jesse e sua gangue fiquem em segundo plano. Não é a exaltação de um assaltante de trens, mas um conto sobre um fã e seu ídolo. A covardia e a coragem. A inveja e o inalcançável.

A fotografia da apresentação de Robert se opõe a de Jesse, o que ecoa a distância entre as duas personalidades

Esse contraponto entre as figuras de Jesse (Brad Pitt) e Robert (Casey Affleck) é o ponto central de toda a narrativa. Há uma cena específica, por exemplo, em que Jesse é mostrado de costas, tomando banho em uma banheira. Robert tenta observá-lo recostado na porta, mas é de imediato detectado.

Nesse plano, Jesse é visto sob uma perspectiva subjetiva de Robert. O registro que este faz, de que Jesse nunca é surpreendido ou visto sem a sua arma, encontra eco na cena final.

Pouco depois, Robert é quem está tomando banho em meio a um prado, visto de frente para o espectador. Nesse momento, a câmera gira em torno do seu rosto para revelar que ele estava sendo espreitado por outro integrante da sua gangue, que não só o surpreende como consegue ameaçá-lo com sua própria arma.

Aqui, Robert inicia a cena distraído com uma vaca, e muito embora a sua arma esteja visível, não representa qualquer ameaça

Nesse sentido, é muito bom que Dominik saiba aproveitar as (excelentes) atuações. Com destaque para os seus protagonistas, tanto Brad Pitt quanto Casey Affleck conseguem personificar bem as suas figuras, e o desenvolvimento de ambos é tão bem feito que faz parecer não haver alternativas aos seus destinos. Não é por acaso que este filme foi descrito por Brad Pitt como o favorito em que já atuou.

Uma sequência que ilustra muito bem a excelência tanto dos desempenhos individuais desses atores quanto das suas interações entre si é a do jantar de Jesse na casa que abriga os irmãos Ford. A intenção de Jesse James, ao aparecer lá, é testar a lealdade dos membros da sua gangue. Por isso, há uma tensão que sublinha as cenas, uma vez que sabemos que eles estão escondendo um desertor do grupo.

Planos longos centrados no rosto dos atores demonstram a confiança de Dominik na força de suas interpretações

A condução dessa cena é muito interessante, especialmente como Dominik transcende a forma habitual de filmagem. Para isso, vale notar como os planos caminham entre os interlocutores. O usual seria manter o foco em quem está falando, mas, aqui, os planos mais longos centram-se em quem está reagindo. Isso porque esse é, de fato, o foco dessa cena, e é na reação um do outro que Jesse e Robert estão prestando atenção: aquele, ao testar os limites da lealdade do seu admirado, este, ao ver o seu ídolo se dissolver diante dos seus olhos.

Estes planos revelam, também, uma ótima adaptação das habituais cenas de duelos de faroeste para um thriller psicológico

Assim, os personagens retratados nesse longa são ampliados de tal forma que extrapolam os humanos que os inspiraram. Se a narração em off parece, em alguns pontos, um pouco redundante, ao final fica evidente que ela não existe para explicar o que é mostrado, mas sim como forma de trazer poesia à fábula. É perceptível que todos os elementos são orquestrados para consolidar a atmosfera específica que foi concebida. Os elementos cinematográficos são tão estilizados que tornam impossível esquecer que estamos assistindo a um filme — é quase o contrário do Cachimbo de Magritte.

E aqui entra a fotografia. De responsabilidade de Roger Deakins, a manipulação das imagens é o ponto alto deste filme. Detalhes como planos filmados através de superfícies de vidro, a criação de iluminações estranhamente deprimentes e até mesmo a névoa nos cantos de alguns quadros contribuem para a sua consolidação como uma obra única.

Primeiro, vemos o trem…
… e depois, o homem que irá assaltá-lo. As oscilações entre planos de figuras que se antagonizam refletem o tema do filme

A cena do assalto ao trem é um excelente exemplo disso. Não há, aqui, qualquer ação convencional que distraía a narrativa do seu ponto, que é o estudo dos personagens retratados. Por isso, a sequência é conduzida com uma melodia dramática que demonstra a complexidade do seu tema, que consegue, paradoxalmente, humanizar e mitificar Jesse James.

É difícil dizer se Robert de fato admirava Jesse. O fato de, quando criança, manter uma lista sobre as semelhanças existentes entre eles indica que o que sentia era muito mais uma vontade de se perceber grande através da identificação com uma figura existente. Por isso, quando o fora da lei se mostrou inalcançável, concluiu que destruí-lo seria a única forma de superá-lo.

E Jesse James foi assassinado por Robert Ford. Isso, o título e os fatos já contam. O que nenhuma sinopse pode descrever, por outro lado, é como a história é contada. Mas não há problema: O Assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford faz um excelente trabalho em mostrá-la.

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