UX ruim pode matar

Patrícia Estevão
7 min readJul 5, 2016

--

Você já deve ter ouvido — provavelmente vindo de um designer — que Design é mais do que deixar as coisas bonitas. Se nunca ouviu, está ouvindo de mim agora e, por sinal, Design é muito mais do que isso.

A famosa usabilidade

Uma das partes mais importantes do trabalho de Design é a usabilidade. Isso quer dizer que é parte do trabalho do designer fazer com que o produto/site/“qualquer-coisa-que-esteja-sendo-desenhada” seja facilmente entendido pelo usuário para que ele possa ser usado corretamente.

Nas palavras do escritor Steve Krug, eis o que ele define como usabilidade:

“Uma pessoa de habilidade e experiência média (ou até abaixo da média) consegue descobrir como usar a “coisa” para realizar uma determinada tarefa sem que isso dê mais trabalho do que vale a pena.”

Steve Krug, “Don’t Make Me Think, Revisited: A Common Sense Approach to Web Usability.” Tradução Livre.

Basicamente, o bom design deve fazer o usuário ter o mínimo de dúvidas e ter que pensar o mínimo possível em qual procedimento ele deve usar para alcançar o resultado que quer — salvo quando as dúvidas são intencionalmente criadas e fazem sentido no contexto do design. Para a maior parte dos casos: se há dúvidas, o design provavelmente não está claro o suficiente.

Veja esse quadro com botões de um elevador:

Fonte: https://shreevatsa.wordpress.com/2010/06/29/examples-of-bad-design-2/

Alguém possivelmente parou e pensou que, nessa disposição, a estética do quadro de botões ficaria melhor. Mas e agora? A seta corresponde ao botão que está alinhado verticalmente ou horizontalmente? Como saber? Você pode até apertar os dois botões para garantir que o elevador que você quer irá chegar, não é como se você fosse ficar preso no prédio por isso. Mas esse momento em que você olhou, viu opções de ação pouco claras e teve que parar para pensar numa solução própria é um exemplo claro de usabilidade ruim.

Ficando preso no prédio

A maior parte dos casos de design que eu lido no meu dia-a-dia são como os botões do elevador acima: a usabilidade ruim é um problema, pode causar frustração e erro por parte do usuário, mas não terá consequências letais.

No entanto, existem muitos casos em que a usabilidade ruim, mesmo em sistemas apenas digitais, pode levar a tragédias e mortes. Acha que eu estou exagerando? Pense em sistemas que lidam com e que afetam vidas, como transportes, hospitais, usinas de geração de energia, etc. Todos esses sistemas, em algum nível, usam software para otimizar e gerir as atividades envolvidas. E quando há um problema com estes softwares dos quais os profissionais dependem, as consequências podem ser fatais.

Erros no funcionamento dos sistemas de gerenciamento claramente podem causar acidentes graves, como um alarme que deixou de soar por falha de software. Mas não é neste ponto que quero entrar, pois estes são problemas inquestionáveis e que qualquer um que o perceber saberá que deve ser resolvido com urgência. Além disso, esses são erros causados por falhas inesperadas, são difíceis de prever e controlar — a melhor saída é desenvolver um sistema robusto e com as redundâncias necessárias para que uma única falha não cause um grande desastre.

Falhas de usabilidade são diferentes. O problema não é do funcionamento do software ou sistema e sim de como ele foi pensado para interagir com o humano que deve manuseá-lo. Por exemplo, se você trabalha em uma usina nuclear e há algum problema no funcionamento do reator, o que você espera que aconteça:

  1. Uma mensagem em letra pequena e cor branca apareça no canto de uma das telas de controle?
  2. Uma mensagem em letras grandes e cor chamativa apareça bem no meio da principal tela utilizada pelos operadores? — Provavelmente acompanhada de alarmes sonoros e outros indicadores, dependendo da gravidade do problema.

É fácil de imaginar que o segundo caso seja o modelo usado, afinal, é um aviso que não pode deixar de ser visto e ele deve ser tratado como tal pelo designer do sistema. Se isso não acontecer, temos um problema de falta de usabilidade que pode matar.

E para quem está pensando “Ah, mas esse tipo de erro de design não ocorre em casos tão importantes como sistemas que mexem com vidas”, tenho uma triste notícia: acontece sim. Por isso é tão importante ressaltar esse papel que a usabilidade tem, tanto para as conversões do seu site quanto para as vidas que dependem do bom entendimento de um software. Vou citar três exemplos aqui, para ilustrar consequências reais de usabilidade ruim.

A triste história de Jenny

Jenny era uma menina que havia superado o câncer e que voltou a desenvolver a doença depois de um tempo, sendo obrigada a fazer um segundo tratamento quimioterápico de altíssimo nível de toxicidade. Para sobreviver a esse tratamento, ela deveria ter sessões de hidratação antes e após as sessões de quimioterapia. Tudo isso era controlado por um software médico que era consultado pelas enfermeiras que deveriam realizar as sessões de hidratação.

A UX do software era tão ruim — uma quantidade enorme de informações competindo por atenção enquanto os alertas urgentes eram quase imperceptíveis — que as 3 enfermeiras responsáveis pela menina — todas muito experientes — não conseguiram ver a necessidade de hidratação em um determinado momento. A Jenny morreu de intoxicação após 2 sessões de hidratação perdidas.

Para mais detalhes da história, você pode ver o texto original (em inglês).

Voo GOL 1907

Este voo da GOL Linhas Aéreas Inteligentes foi em 29/09/2006, saindo de Manaus e com destino no Rio de Janeiro. Eis o que aconteceu, segundo o artigo da Wikipédia sobre o acidente:

Enquanto sobrevoava o estado de Mato Grosso, colidiu no ar com um Embraer Legacy 600. Todos os 154 passageiros e tripulantes a bordo do Boeing 737 morreram após a aeronave se despedaçar no ar e cair em uma área de árvores densas, enquanto o Legacy, apesar de ter sofrido danos graves na sua asa e estabilizador horizontal esquerdo, pousou em segurança com seus sete ocupantes não lesionados, na base Aérea do Cachimbo.

De uma forma geral, acidentes aéreos são resultado de uma combinação de coisas que deram errado e este caso não foi diferente. Mas, por incrível que pareça, um dos fatores que mais contribuiu para o acidente foi a usabilidade ruim.

A área que os aviões estavam sobrevoando não era coberta pelos radares utilizados pelas equipes de controladores de voo, que estão em solo e se comunicam com as aeronaves. Até aí, tudo bem, pois os aviões tem a capacidade de detectar outras aeronaves que estejam se aproximando através de um equipamento chamado TCAS (Traffic Collision Avoidance System).

O que aconteceu foi: o TCAS do Legacy estava desligado e o aviso para os pilotos era dado em letras brancas e pequenas, de forma que passaria facilmente desapercebido.

Mas por que os avioes estavam em rota de colisão em primeiro lugar? Afinal, eles têm altitudes definidas pelo controle de tráfego aéreo. Acontece que o software utilizado na torre de controle deixava confusa a informação da altitude das aeronaves. Havia dois números por aeronave, um com a altitude planejada pelos controladores e outro com a altitude na qual a aeronave de fato estava. E não havia nenhuma indicação de qual era qual, você precisaria decorar qual era o número da direita e qual era o da esquerda. Isso pode parecer uma necessidade simples, mas devemos lembrar que o trabalho de controle aéreo tem um alto nível de stress e quanto menos peso cognitivo o design puder evitar, melhor será a performance. Para piorar, o fato de que os números de altitude estavam diferentes não dava nenhum tipo de alerta, ainda que fosse algo simples como mudar a cor do texto.

E foi o que aconteceu. As falhas de usabilidade, associadas a outros problemas como stress e falta de treinamento apropriado dos controladores levou à catástrofe. Ao não ter a capacidade de “enxergar” a aeronave vindo na direção contrária, o Legacy e o Boeing colidiram, causando a morte de 154 pessoas.

Mais detalhes dessa história podem ser vistos nesse post, onde eu conheci o acidente.

Air Inter Flight 148

O último exemplo que darei também foi um acidente aéreo facilitado pela usabilidade ruim.

Em 20 de Janeiro de 1992, o voo que deveria pousar no aeroporto de Strasburgo — na França — bateu no topo de uma montanha, matando 87 das 96 pessoas a bordo. O avião era um Airbus 320, um dos mais modernos da época, mas cujo design falhou em um ponto muito importante: não deixar dúvidas.

Quando estava se preparando para o pouso, mas ainda acima das nuvens, o piloto pensou estar vendo no seu painel um ângulo sutil de descida de 3.3 graus. No entanto, o que estava sendo mostrado era uma taxa de descida de 3.300 pés por minuto — uma descida muito mais rápida do que a desejada e que causou a colisão.

O que se notou, posteriormente, foi que ambos os valores eram definidos na mesma tela e com uma representação muito similar, o que causou o erro do piloto. Caso a interface fosse menos ambígua, o erro provavelmente teria sido evitado.

Mais detalhes do caso podem ser vistos nesse artigo (em inglês).

Insistência final

Após esses exemplos, eu espero que tenha passado corretamente a importância da usabilidade de um sistema, seja em algo com ou sem consequências catastróficas. Afinal, mesmo que ninguém se machuque, a usabilidade é o que define, em última instância, se o sistema será útil ou não.

Curtiu? Clique no coração e compartilhe com seus amigos! :)

Saiba mais sobre o txplab ou entre em contato conosco!

--

--