As Guerreiras Ykamiabas

Paty Rossetti
5 min readFeb 28, 2017

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Em minha pesquisa sobre relatos, mitos e lendas de mulheres antes do patriarcado, me perguntei se não teriam havido tribos matrifocais (ou ainda matrilineares, ou matriarcais*) onde as mulheres desempenhavam o papel de guerreiras. Eis então que me deparo com a lenda brasileira das guerreiras Ykamiabas, algumas vezes com a grafia Ikamiabas ou Icamiabas. Optei pela grafia com Y e K, mais comumente usadas nos dialetos indígenas, mesma escolha feita pela pesquisadora Regina Melo, autora de “Ykamiabas — Filhas da Lua, Mulheres da Terra”.

A denominação Amazonas surgiu então, quando em 1542, o Frei Gaspar de Carvajal, escrivão da frota espanhola de Francisco Orellana, ao penetrar num enorme rio brasileiro, que ele chamou de “Mar Dulce”, encontrou mulheres guerreiras, tendo sido por elas atacado. O ataque foi tão violento que o frade escriba, confundiu-as com o mito grego das Amazonas. Segundo o relato do mesmo, elas eram jovens, belicosas, e andavam completamente nuas, portando arco e a flecha. E foi assim então que o grande rio foi batizado de o “rio das Amazonas”, durante o combate em que sofreram os espanhóis que ousaram pisar em suas terras.

Estima-se que haviam cerca de 70 tribos onde viviam somente mulheres “as sem marido”, ou “mulheres sem homem” que caçavam, pescavam, faziam cerâmica, redes, tecido, enfeites de penas e fabricavam armas. Era uma comunidade que viveu na região que se estende entre os Rios Xingu e Juruá.

Reino das Pedras Verdes: o Muiraquitã

De acordo com a lenda, as índias se escondiam no coração da floresta e eram exímias guerreiras que faziam os homens das tribos vizinhas tremerem de medo. Vez ou outra, elas raptavam os homens afim de se procriar e se concebessem uma menina, esta seria acolhida na tribo e treinada para ser uma excelente guerreira. Porém, se nascesse menino, seria esperado o tempo do aleitamento e no ano seguinte, na festa do ritual das pedras verdes, este era devolvido à tribo do pai.

Segundo consta, os homens escolhidos para fertilizarem as Ykamiabas pertenciam às tribos dos Guacaris, que era a tribo mais próxima e depois elas os presenteavam com um talismã chamado Muiriquitã ou Muyrikitan, feito de alguma pedra esverdeada, como a jade ou ainda do barro que era retirado do fundo do lago chamado Jacy Uaruá (“espelho da lua”).

O ritual das pedras verdes acontecia uma vez por ano, na festa dedicada à lua. Elas mergulhavam no lago e traziam às mãos um barro verde, ao qual davam formas variadas de rã (símbolo da fertilidade), tartaruga e outros animais. O barro era retirado ainda mole do fundo da água e então era moldado por elas. Ao entrar em contato com o ar, o barro endurecia e os objetos eram usados em colares como poderosos amuletos pelos homens presenteados por elas .Por essa razão as tribos das Ykamiabas eram conhecidas como o “Reino das pedras verdes”

Algumas fontes dizem que os Muiraquitãs, fabricados de barro ou pedra, apresentam- se sob cores variadas, podendo ser amarelo, preto, cinza ou vermelho e não apenas verde como é mais conhecido. Terminado este ritual da fertilidade, elas se retiravam para sua moradia em um lugar sagrado, onde prestavam culto feminino à deusa Mãe-Terra e à Lua. Até hoje, o muiraquitã é considerado um objeto sagrado, um talismã de boa sorte.

A lenda das Ykamiabas é tão forte no norte do país que virou tema de uma série de animações curta-metragens intitulada: “Icamiabas na Amazônia de pedra”. É uma versão meninas super-poderosas indígena, com os costumes e folclore local.

As mulheres do alto Xingu hoje: o Yamurikumã

O tradicional ritual anual do Yamurikumã inverte os papéis nas tribos indígenas do alto Xingu. Neste dia as mulheres tocam os instrumentos que normalmente só os homens podem tocar, usam as penas e ornamentos que são restritos apenas aos homens durante as festividades do ano todo. Nesse período, ocupam o pátio da aldeia, cantam versos de canções masculinas e convidam mulheres de outras aldeias para conversar, enquanto os homens fazem os afazeres domésticos e cuidam das crianças.

A partir deste rito anual surgiu a Associação Yamurikumã de Mulheres Xinguanas, com o objetivo de fazer as vozes femininas das várias tribos do alto Xingu serem ouvidas, já que dentro das tribos também impera a opressão patriarcal. A associação promove a roda de conversa nas aldeias, para fortalecer os laços e os desejos das mulheres das tribos, onde elas falam de suas necessidades e podem lutar de forma cooperativa pela melhoria de suas aldeias.

Para que esses encontros aconteçam, as ativistas percorrem as aldeias, até mesmo as mais distantes, para reavivar o mito das guerreiras e convidar as mulheres a se mirarem nesse exemplo. Para conhecer a Associação Yamurikumã de Mulheres Xinguanas clique aqui

*O termo “matrilinearidade” está associado à linhagem sanguínea ligada à mãe. Neste caso, a referência no que se refere ao nome, e/ou crença religiosa está associada à mãe e à família desta.

Já o termo “matrifocalidade” ou “matrístico” se refere às sociedades em que, ao se casar, o homem passa a pertencer à família de sua mulher, sem o exercício de dominação da mulher em relação ao homem.

Quanto ao termo “matriarcado”, está vinculado ao domínio do feminino em relação ao masculino, assim como o patriarcado é relacionado à dominação dos homens em relação às mulheres. Esta expressão, portanto, está ligada ao exercício de poder do gênero feminino para com o masculino, algo que historicamente nunca aconteceu de fato, portanto, o termo “matriarcado” é equivocado.

Fontes:

Artigo: Protagonismo Feminino na floresta amazônica: uma leitura de Regina Melo de Margarete Edul Prado de Souza Lopes

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Paty Rossetti

Atriz, escritora, palestrante e terapeuta. Promove Jornadas Xamânicas e Vivências Meditativas, Rodas do Sagrado Feminino e Masculino. Insta: @eusoupatyrossetti