Sagrado Feminino e Feminismo não são rivais
Se você leu ou acredita que o Movimento do Sagrado Feminino é tão somente um endeusamento do útero, te peço para repensar! Temos visto discussões sobre as práticas do Sagrado Feminino, como uma expressão diferente, quase rival do Feminismo onde supostamente “existem regras que as mulheres devem seguir para o despertar de um feminino essencial”. Bom, isto não é real em teoria e muito menos deveria acontecer na prática.
Por experiência pessoal, este pensamento está bem longe do que é vivenciado em rodas de mulheres e em grupos virtuais de Sagrado Feminino, cujo foco primordial é o acolhimento e o aconselhamento, apoio psicológico e espiritual (não religioso) entre mulheres, de forma horizontal. Mas primeiramente, precisamos pontuar as questões que mais causam polêmica:
– Existe um apelo ao biológico, um “endeusamento” do útero dentro do Movimento do Sagrado Feminino? E as mulheres sem útero ou Trans, como ficam?
É preciso deixar muito claro que Sagrado Feminino se refere à intenção do reequilíbrio de uma energia humana PSÍQUICA e não puramente biológica e que também não está se referindo ao GÊNERO FEMININO especificamente, e sim a um resgate de saberes ancestrais atrelado ao retorno de valores humanos outrora esquecidos. Entretanto os seres humanos de sexo feminino conseguem mais facilmente entrar em contato com esta energia, com esta “essência feminina”, justamente pelo próprio condicionamento em que vivemos, onde as expressões do que foi determinado como “feminino” e “masculino” já estão dadas para nós desde que nascemos. E é justamente por se identificarem com o que se condicionou em chamar de “o feminino”, que as mulheres trans ou sem útero não estão excluídas desta prática!
Quando falamos de uma “essência” estamos falando do equilíbrio das energias feminina e masculina, como por exemplo, o Yin — Yang (complementos opostos que trazem a harmonia do corpo e da mente, segundo a Medicina Tradicional Chinesa), entendendo que tudo na natureza funciona como uma dualidade e isto, apenas para fins de entendimento e não como uma classificação rotuladora entre um e outro. Não significa também, que um atributo é melhor ou pior do que o outro, mas que são energias que se complementam. E neste sentido, existe o Sagrado Masculino a ser resgatado também. (Veja aqui meu texto sobre Sagrado Feminino e Sagrado Masculino)
Imagine os dois hemisférios do cérebro humano: o lado direito se refere às emoções, à criatividade e ao lúdico. Já o lado esquerdo se refere ao lado racional e analítico. É óbvio que neste caso, quando falamos de “masculino” e “feminino” não estamos falando de gênero. Seria um absurdo dizer que os homens são racionais e as mulheres intuitivas. Os seres humanos são racionais e intuitivos, mas “convencionou-se” dizer portanto, que existe a “energia feminina” e a “energia masculina” que atribuem determinadas características para cada um dentro das relações sociais, na forma como nos expressamos e que foi moldada socialmente, mas não tem a ver com a biologia de nossos corpos. A energia masculina e feminina estão dentro de qualquer ser humano, independentemente do gênero ao qual a pessoa se identifica, (ou se biologicamente ela é XX ou XY).
Quando falamos de uma “essência feminina”, não estamos suscitando as qualidades da “mulher submissa e passiva” que o patriarcado tanto ama, estamos falando de valores mentais, emocionais e espirituais que são suprimidos, por serem considerados valores “inferiores” na nossa sociedade utilitarista. E por espirituais aqui, NÃO ESTAMOS FALANDO DE RELIGIÃO e sim de psiquismo, de expressão emocional que se dá no social.
Uma mulher chamada Miranda Gray, tomou a iniciativa de conectar mulheres do mundo todo, a partir de uma meditação em comum, chamada de “Benção mundial do útero”, que acontece em diversas datas do ano. Para quem olha o Sagrado Feminino de fora, esta deve ser a prática mais conhecida, porém o olhar através deste único viés deixa escapar a grandeza do que entendemos como o “Sagrado Feminino”.
Tudo isso vem com a intenção primordial de equilibrar o planeta e as relações sociais, que valorizam apenas os aspectos que foram condicionados como “masculinos”(assertividade, racionalidade, conquistas, agressividade, etc.) o que também não significa que sejam atributos que somente os homens possuem ou podem desenvolver, mas que a sociedade patriarcal reprimiu nas mulheres e é aí que as coisas se tornaram desequilibradas.
Para entender de uma forma ainda mais visual, pense no seguinte exemplo: se queremos juntar duas cores para obtermos o verde, precisamos misturar de forma adequada o amarelo (Masculino) e o azul (Feminino), para obtermos uma unidade harmônica. Esta simples equação está em desequilíbrio no mundo. Temos muito amarelo e pouco azul. O Patriarcado traz uma tonalidade branca, dizendo que este é o feminino ideal (que para nós mulheres, é irreal) e em consequência disto o desequilíbrio continua. O Sagrado feminino traz o azul, para equalizar as dimensões mentais e emocionais, para todos os gêneros e para todas as relações, sejam elas profissionais ou pessoais, com a finalidade de conseguirmos uma sociedade mais “verde”.
O sagrado feminino tem uma forte ligação com a terra, com a o retorno do ser humano à natureza, e com a valorização dos ciclos lunares e sua correlação com os ciclos menstruais, mas é antes de tudo, uma questão desse resgate psíquico de uma “feminilidade humana” que foi oprimida tanto nos homens quanto nas mulheres, e que era natural para as culturas ancestrais.
O arquétipo da mulher selvagem, segundo a autora Clarissa Pinkola Estés, cujo livro “Mulheres que correm com lobos” é o mais famoso entre as praticantes do Sagrado feminino e ensina que as mulheres precisam redescobrir sua mulher selvagem, ou seja, encontrar sua essência reprimida no inconsciente, justamente para se libertarem do jugo opressor do Patriarcado, que exalta uma “essência feminina” domesticada e impede as mulheres de serem donas de si mesmas. Será que o arquétipo da Mulher Selvagem combina com uma mulher submissa, servil e que reprime sua sentimentos e desejos? Justamente, o oposto! Na verdade, é uma reconexão com o que somos, uma busca de nossa versão mais autêntica, é algo que estamos ainda desvendando e provavelmente vamos continuar, durante toda nossa vida.
Quando falamos de essência feminina queremos entender portanto, quem somos nós e quem seríamos nós hoje se não tivéssemos sido oprimidas pelo patriarcado, que suplantou nossa “essência real”, humana e animal, por uma feminilidade irreal (a figura da mulher idealizada, meiga, delicada e sem pêlos, infantilizada e vulnerável, etc) impondo o que poderia ou não ser expressado pelo sexo feminino, de acordo com o que lhes convinha. E nesse sentido, a questão da mulher selvagem vem justamente para nos libertarmos dos estereótipos, e de podermos antes de tudo, sermos humanas, expressando todo e qualquer sentimento e sensação, sem sermos taxadas de histéricas.
Não existe, portanto, dentro do Sagrado Feminino, a figura da mulher frágil e alienada meditando em cima da montanha, muito pelo contrário, está vibrando uma sororidade tremenda em grupos virtuais o que inclusive, é a bandeira que o Feminismo se propõe: a união e sororidade.
Desta forma, o sagrado feminino vem resgatar uma equidade, uma energia de força psíquica, de entendimento e autoconhecimento e portanto, é bem distante da fragilidade ou superficialidade, características que sempre são, equivocadamente, atribuídas ao gênero feminino. A busca então, se dá pelas características femininas REAIS que o Patriarcado nos tolhe, diariamente. É uma jornada interior. Nós ainda estamos nos autodescobrindo. Nós ainda não temos todas as respostas
Não existe uma idolatria do útero no sagrado feminino, apenas uma valorização, um autoconhecimento de nosso próprio corpo, que até então não tínhamos, e isso é empoderador! É interessante e bonito saber que os ciclos femininos funcionam exatamente como as 4 fases da lua e isso não é metafísica, é uma observação simples e direta de como nosso organismo funciona da mesma forma que a mãe natureza.
– Toda mulher que pratica Sagrado Feminino invariavelmente quer ou precisa ser mãe? As mulheres que querem ser mães serão rechaçadas caso se sintam desconfortáveis com a maternidade? — Muitas vezes devido ao abandono do parceiro, à perda de emprego ou depressão pós parto, ou simplesmente caso tenham se arrependido da decisão de serem mães? Todas as mulheres que desejam ser mães, devem obrigatoriamente, querer um parto natural, humanizado e serão criticadas caso prefiram uma cesariana?
A resposta, obviamente é NÃO! Absolutamente não têm um culto à fertilidade ou um julgamento das mulheres que não querem ser mães ou que não se sentiram bem durante ou após o parto. Discute-se sim, muito da violência obstétrica, que principalmente as mulheres negras sofrem! Eu sou feminista e do Sagrado Feminino e não desejo ser mãe e nunca vi uma mulher ser julgada por isso nestes grupos. A intenção é acolher a todas, lembra? A liberdade de escolha é e continua sendo o requisito fundamental dentro de qualquer movimento que pretende empoderar as mulheres, do contrário, realmente, seria uma falácia.
– O Sagrado Feminino virou uma mercantilização de saberes tradicionais, apropriados pela classe média branca e as mulheres negras e periféricas nunca têm acesso a esses ensinamentos
De fato, isto acontece muito porque as mulheres ainda não tomaram consciência de que não é obrigatório estar em um circulo para se conectar com sua própria espiritualidade e muitas pessoas tem cobrado muito caro por vivências de meditação extremamente simples, que qualquer mulher poderia fazer sozinha em casa. Obviamente que em grupo é mais rico e proveitoso! Estar entre mulheres é uma energia poderosa!
O Sagrado Feminino tem se beneficiado de culturas ancestrais para buscar uma reconexão do papel da mulher com o que ela era antes do patriarcado, (ou pelo menos do pouco que conseguimos descobrir da história) isto é, antes do que foi dito que todas nós mulheres deveríamos ser, mas muitas vezes esse conhecimento não chega às periferias e as mulheres negras; em sua grande maioria, visto que elas não têm acesso a essas rodas de mulheres e isto acontece porque na verdade nada é acessível às mulheres (e nem aos homens) de baixa renda.
Ás vezes, uma mulher periférica sequer dispõe de tempo, ou de internet em casa, para poder participar de um grupo virtual. Geralmente os encontros ainda que gratuitos, são feitos em locais mais centralizados o que também dificulta o acesso destas mulheres. Elas são as mais vulneráveis dentro da nossa sociedade misógina e racista, pois tudo lhes é negado socialmente e são as que mais sofrem de violência doméstica e obstétrica. Para atingir as mulheres periféricas não bastaria apenas que fossem gratuitos, os encontros teriam de acontecer em locais menos centralizados, mais próximos da realidades destas mulheres.
Os saberes tradicionais podem ser usufruídos pelas mulheres periféricas não necessariamente por um círculo cheio de mulheres de classe média, que estão pagando para participar de uma vivência, mas entre elas mesmas, no acolhimento de uma conversa, na união e rede de apoio que o Feminismo propõe, no campo político e social, mas acima de tudo, entendendo que o Sagrado é tentar entrar em contato consigo mesma. É uma dimensão interior.
Portanto, a questão das mulheres negras e periféricas precisa ser debatida, mas entendendo que tudo é negado às mulheres negras da periferia e isto não é uma problemática apenas do Sagrado, mas sim de nossa desigualdade social. É importante pensarmos em inclusão, mas como? Ainda estamos descobrindo… A cada dia mais e mais mulheres estão aprendendo e passando esses conhecimentos adiante.
Também considero injusto culpabilizar as mulheres que guiam os círculos por esta falta de acessibilidade. Claro, assim como qualquer coisa, os movimentos de empoderamento feminino vão se desvirtuando para uma mercantilização, para uma apropriação cultural “pop” mas é preciso lembrar que as mulheres que normalmente cobram pela realização de seus círculos são terapeutas, são mulheres que buscam conhecimento, que fazem cursos (que geralmente são caros) para retransmitir seus saberes para outras mulheres e na maioria dos casos isso vêm de um chamado muito maior, de uma missão de vida, como é o meu caso.
Algumas mulheres reclamam de algo sagrado ser pago, porém, se entendemos nosso corpo como nosso templo e a natureza como nossa grande mãe, isso parte de um entendimento de sagrado muito diferente das práticas religiosas em geral e a transmissão de conhecimentos não nos chega de forma gratuita, infelizmente. Seria maravilhoso se todos tivessem acesso a tudo mas na prática não é assim que funciona. É uma questão estrutural. É preciso parar de romantizar essas questões, porque nós vivemos em uma sociedade capitalista e todos precisam arcar com despesas, dentro deste ramo não seria diferente.
Sagrado Feminino é a dimensão do sagrado e não uma religião onde se implicaria a caridade. Embora as mulheres que têm disponibilidade de tempo e financeira para articular grupos gratuitos podem e devem fazê-lo, mas sabemos que isso pode acontecer mais frequentemente em parques e outros espaços públicos, pois num local privado, onde as mulheres teriam maior conforto e privacidade, sempre é cobrado um valor de aluguel do espaço. Sempre há custos.
Na verdade o Sagrado mora em cada uma de nós e cada uma vai encontrá-lo da forma que lhe for mais conveniente e para tanto existem sim, grupos gratuitos de mulheres que trocam seus saberes, que formam grupos de estudos mas que por isto mesmo, não possuem uma linha específica de conhecimento e podem servir como rodas de conversa terapêuticas, onde as mulheres trocam suas experiências entre si e se ajudam mutuamente em diversas áreas de suas vidas. Existem muitas formas possíveis que ainda estão sendo articuladas.
– É possível então, ser Feminista e praticante do Sagrado Feminino? Não seria o SF uma volta ao passado e o Feminismo um olhar no presente? Não estariam ambos em direções contrárias?
Eu vejo o quanto o Sagrado Feminino nos empodera, quando preferimos tomar um chá ao invés de um remédio alopático ma prevenção de uma doença, nos tornando assim mais perceptivas em relação aos sinais de nosso organismo, sem entregá-lo simplesmente para um médico quando a única solução que resta é remediar.
Quando aconselhamos uma amiga, ou uma desconhecida no mundo virtual. Quando paramos de julgar nossas irmãs de caminhada, e passamos a conhecer nosso próprio corpo, é ter essa autonomia, de nos libertar das amarras do que nos foi dito que deveríamos ser, do que deveríamos usar, tanto em termos de produtos de higiene, de cosméticos quanto desmistificar o que dizem de como nossos órgãos e nosso sangue menstrual é “sujo”.
Acredito que o Feminismo e o Sagrado Feminino são duas faces da mesma moeda, onde lutamos com o feminismo no campo político e social e no SF numa dimensão emocional, de curar as chagas umas das outras, de poder confiar em outras mulheres, de se sentir acolhida. A gente milita na causa Feminista e vai ficando cada vez mais desesperançosa com o mundo e o sagrado nos aproxima de irmãs desconhecidas, traz conforto e empodera de conhecer nosso próprio corpo.
Que mulher realmente entende seu ciclo menstrual e como isso influencia tudo? Eu, como militante feminista, não consigo ver uma separação entre estes dois movimentos. Percebo o quanto ambos são extremamente necessários, cada qual com a sua função em nossa vida. Queremos igualdade em todos os setores da vida e precisamos curar as feridas que o sistema patriarcal nos faz, diariamente.
Precisamos vivenciar o equilíbrio não apenas no acadêmico, social e político mas também no emocional, para termos forças para não parar de lutar pela igualdade. Não é preciso de um retiro para descobrir a essência do feminino, isto porquê, NINGUÉM pode te dizer o que é, A SUA essência feminina, enquanto ser humano, enquanto mulher, enquanto ser social — isto será descoberto por você mesma! Os trabalhos de círculos e vivências são uma rede de apoio, são companheiras que dividem experiências, dores e alegrias. Não é o caminho obrigatório, mas é um dos caminhos, uma das possibilidades.
A intenção do movimento do Feminino Sagrado é que você possa olhar para si mesma, com amor e compreensão, sem odiar seus ciclos, redescobrindo um poder interno de transformação, que nada tem a ver com uma imagem de fraqueza e . Autoconhecimento é poder de decisão. Existem dois caminhos que parecem distintos, mas se você observar mais adiante eles se cruzam. O importante é entender que o Sagrado Feminino NÃO É O OPOSTO do Feminismo! São, de fato duas irmãs que precisam se entender melhor, se conhecer melhor e confiar mais uma na outra. São duas formas de complementaridade que trazem uma vivencia mais integral do que queremos enquanto mulheres nos dias de hoje.
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