Pioneirismo estrelado

Cruzeiro relembra os 65 anos de seu maior feito, ter sido o primeiro clube gaúcho a jogar na Europa

Paulo Egídio
6 min readJul 21, 2018
Excursão à Europa ocorreu entre 1953 e 1954. Foto: Liane Oliveira

Depois de onze longos dias de viagem, desde o Rio de Janeiro, o navio Giulio Cesare atracou em Barcelona no dia 4 de novembro de 1953. Entre os passageiros, um grupo de pessoas estava encarregado de cumprir uma missão histórica: pela primeira vez, um clube do Rio Grande do Sul entraria em campo para jogar futebol na Europa.

A excursão ao Velho Continente emergiu como o maior dos vários pioneirismos que fulguram a existência do centenário Esporte Clube Cruzeiro, de Porto Alegre. “Foi um espetáculo!”. A exclamação sai da alma do ponteiro-direito Odilon Ribeiro, um dos 21 jogadores que compunham aquela delegação que fez história.

Um dos destaques da equipe, o atacante jovem, rápido e driblador ganhou o apelido de Tesourinha II, em referência ao também ponta Tesourinha, consagrado no Internacional na década de 1940 e que hoje nomeia até ginásio de esportes na capital gaúcha.

Aos 83 anos e de cabelos alvos, que contrastam com a pele morena, o segundo dos Tesourinhas transita por lembranças um pouco confusas daquela viagem. Ainda que imprecisas, elas são capazes de lhe renderem largos e demorados sorrisos. As melhores recordações, como não poderia ser diferente, são daquele que, para muitos, é o maior jogo da história do Cruzeiro.

O ex-atacante Odilon Ribeiro, o Tesourinha II. Foto: Liane Oliveira

Quatro dias depois de desembarcar na Espanha, o estrelado realizou a tão sonhada façanha. A proeza foi tão gigante quanto o adversário: em pleno estádio Chamartín, atual Santiago Bernabéu, jogou contra o pentacampeão europeu Real Madrid, considerado por muitos o melhor time do mundo.

O elenco merengue — assim chamado em referência ao uniforme branco — era um dos mais fortes da época, com nomes como Ferenc Puskás e Alfredo Di Stéfano. Este último, argentino como Lionel Messi, mas obstinado pelo gol como Cristiano Ronaldo. “Eles não davam pontapé, só jogavam. E ficaram abismados. O nosso time era muito bom”, orgulha-se Tesourinha II. Para ele, tão necessário quanto falar do jogo, é exaltar que o esquadrão azul e branco tinha sua qualidade.

Outro dos expoentes do time era o corpulento zagueiro cruzeirista Walter Spiess, encarregado de marcar Di Stéfano durante o duelo. Ocorre que, em uma das tantas disputas de bola, o defensor teria abusado da força. Nisso, o argentino reclamou: “Mira, pibe, yo soy Di Stéfano, de Real Madrid”. “E daí? Eu sou o Waltão, de Canoas”, respondera o zagueiro, pouco impressionado com o carteiraço adversário. Contrariando os mais incrédulos, Tesourinha revela ter acompanhado esse que ficou conhecido como um dos diálogos mais famosos (e menos prováveis) da história do futebol gaúcho. “Ele (Walter) entrava duro no Di Stéfano, para terminar com o homem”, ri o ex-atacante.

A saga iluminada

O professor de História Eugênio Vasconcellos. Foto: Liane Oliveira

Se desafiar o esquadrão madrilenho era tarefa para poucos, a derrota era considerada um resultado quase certo. Quase. Para surpresa geral, o Cruzeiro ignorou as probabilidades, a torcida adversária, as estrelas merengues e qualquer um que se pusesse a arriscar um palpite sobre a partida. O resultado foi um heroico 0 a 0.

Embora dominado pelos espanhóis, o jogo também teve bons lances do time gaúcho. “Nós quase ganhamos. Fiz uma tabela com o Rudimar (meia) e ele chutou, mas foi pra fora. Saiu por perto, senão seria um a zero”, relembra Tesourinha, observando que a equipe ficara “com cartaz” após segurar o poderoso Real Madrid.

A tese de que o surpreendente empate abriu espaço para outras partidas no continente é chancelada pelo professor de História e cruzeirista Eugênio Vasconcellos, de 71 anos. “O estouro foi esse resultado com o Real. Foi uma festa, por que era o melhor time do mundo, que não conseguiu ganhar do Cruzeiro”, conta o sorridente historiador.

O que poucos sabem, segundo Vasconcellos, é que, na verdade, o estrelado sequer imaginava disputar aquele jogo. O primeiro duelo em solo europeu seria com o também forte, mas muito menos poderoso, Espanyol, de Barcelona, com quem o empresário José Gama havia acertado a viagem, sob a alegação de que o Cruzeiro era um dos grandes brasileiros e que já havia vencido clubes como o Palmeiras e São Paulo.

Na chegada à Catalunha, o então presidente Antônio Pinheiro Machado Neto esclarecera que os confrontos com grandes clubes nacionais foram em amistosos, o que fez o Espanyol desistir do jogo. Daí, então, surgiu o convite do Real Madrid, que fez a viagem tomar uma proporção muito maior do que aquela inicialmente imaginada.

Depois do notável empate, comemorado como goleada, foram disputadas mais quatorze partidas, em seis países europeus e asiáticos. E, logo, viria outro pioneirismo.

O destemido Cruzeiro foi o primeiro clube brasileiro a atuar em Israel, apenas cinco anos depois da independência do país, enfrentando inclusive a seleção local. “Os outros times estavam todos se borrando de medo de jogar lá, pela tensão com os árabes. O Cruzeiro jogou quatro ou cinco partidas e ganhou todas”, exagera Vasconcellos. Na verdade, foram três vitórias e um empate, justamente com o selecionado israelense.

O estrelado girou ainda por França, Itália, Bélgica e Turquia e voltou à Espanha para encerrar a turnê, já nos primeiros dias de janeiro de 1954. O adversário? O mesmo Espanyol que havia desdenhado da força azul e branca na chegada à Europa. A resposta foi à altura: dois jogos e dois triunfos brasileiros, por 4 a 2 e 2 a 0. O saldo final da excursão gaúcha em solo europeu foi de sete vitórias, quatro empates e quatro derrotas.

Marca vanguardista

Erico Faustini, presidente do Conselho Consultivo do estrelado. Foto: Fernando Eifler

Passados sete anos da primeira viagem, o esquadrão gaúcho voltaria a terras europeias para obter outro pioneirismo relevante. Desta vez, viajando de avião e sem surpresas no desembarque, o retorno rendeu ao estrelado a honraria de ser o primeiro gaúcho a vencer um campeonato intercontinental. No Torneio da Páscoa, disputado contra três clubes alemães, o Cruzeiro venceu o FC Bayern Hof e FC Worwärts e empatou com o Dynamo, de Berlim.

“Era (um sistema) todos contra todos, não esse negócio de jogar uma partida e, se der sorte, sair campeão”, brinca o presidente do Conselho Consultivo do clube, Erico Faustini, em referência aos títulos mundiais de Grêmio e Inter.

Autor do livro O Centenário Sport Club Cruzeiro — uma espécie de “guia” sobre a história cruzeirista lançado em 2013–, o médico e professor universitário de 65 anos acompanhou, sempre de perto, os altos e baixos do clube e tem na ponta da língua o conjunto de vanguardas protagonizadas pelo Cruzeiro.

Desde ser o precursor das categorias de base para meninos e adolescentes, à época chamados de filhotes, em 1914, um ano após a fundação, até ser o primeiro gaúcho a vencer o Inter no Beira-Rio, em 1970, e o primeiro brasileiro a vencer o Grêmio na Arena, em 2013.

O destino de ser pioneiro parece enraizado no clube desde a fundação, quando da criação do nome. O estrelado porto-alegrense foi o primeiro time brasileiro a se chamar Cruzeiro. Seu homônimo mais famoso, de Minas Gerais, seria fundado como Palestra Itália e rebatizado em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, quando o governo de Getúlio Vargas proibiu o uso de quaisquer símbolos dos países do Eixo.

E se o passado glorioso é marcado por vanguardas, o próximo desafio em vista também envolve um pioneirismo — talvez muito mais modesto que os anteriores: ser o primeiro clube de futebol profissional de Cachoeirinha, cidade da região metropolitana de Porto Alegre onde está sendo construída a nova arena cruzeirista.

Para Erico Faustini, a receita passa tanto por almejar a disputa de campeonatos de nível nacional, para atrair público, quanto pela aproximação da população local. “O Cruzeiro tem que abraçar a cidade”, sentencia. Nada difícil para quem já atravessou um oceano para fazer história.

Reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Literário, do curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre, no primeiro semestre de 2018, sob orientação do professor Everton Cardoso, e publicada na revista Josefa.

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