“Quem diz que o artista ‘mama’ na Lei Rouanet deveria voltar aos bancos escolares”

Zé Vitor Castiel fala sobre trajetória e afirma que seu legado está longe de acabar

Paulo Egídio
11 min readAug 26, 2017

Paulo Egídio e Fernando Eifler

José Victor Castiel é um homem simples e sem cerimônias. Aos 58 anos, com uma carreira que vai dos palcos de teatro às novelas da TV Globo, o ator esbanja sinceridade. Zé Victor, como é conhecido, recebeu a Beta Redação em seu escritório, na Mezanino Produções, para conversar sobre sua trajetória na arte e, dentre outros temas, o festival Porto Verão Alegre, a Lei Rouanet e a crise política que vive o país, além de falar sobre a próxima temporada de Homens de Perto e seu mais recente projeto: interpretar Vinicius de Moraes.

Zé Victor Castiel concede entrevista exclusiva à Beta Redação. Foto: Fernando Eifler/Beta Redação

Beta Redação: Você sempre quis ser ator?

Zé Victor Castiel: Eu comecei aos 14 anos fazendo teatro, quando estudava no Colégio Farroupilha. Nós montamos uma peça e fomos nos apresentar em um festival de teatro amador em Novo Hamburgo. Acabamos por ganhar o festival e, como prêmio, faríamos algumas apresentações no Teatro de Câmara, em Porto Alegre. Naquela época, existia censura no Brasil, e a peça foi totalmente desfigurada por ela. A partir daí, até por vir de uma família de artistas, fiquei com vontade de continuar e ser ator profissional. Quando fui fazer vestibular, era um tabu trabalhar como ator. Assim, me intimidei e fiz vestibular para Direito.

Beta: E você chegou a trabalhar como advogado?

Zé Victor: Sim. Já no início resolvi me especializar em direito autoral, por ser uma maneira de ficar próximo àquilo que eu queria. E logo busquei pessoas que pudessem me introduzir na arte da atuação. E em 1983 fiz meu primeiro espetáculo profissional de teatro chamado Rasga Coração. Casualmente, minha estreia profissional foi exatamente onde havia acabado a carreira amadora, no teatro Paschoal Carlos Magno, em Novo Hamburgo.

Beta: A partir de seu sucesso no teatro, a migração para a televisão foi automática?

Zé Victor: Na verdade, na televisão eu comecei fazendo comerciais, em 1985. Também comecei a fazer locuções e spots para o rádio. E, na década de 90, fui chamado para o meu primeiro trabalho na TV Globo, a minissérie Incidente em Antares, uma adaptação da obra de Érico Veríssimo. E já estreei em uma minissérie importante contracenando com grandes atores, como Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Paulo Betti, Alexandre Borges e Gianfrancesco Guarnieri. Era um elenco estelar.

Beta: E, desde então, você continuou produzindo exclusivamente para a Globo?

Zé Victor: Em seguida, eu comecei a fazer trabalhos com a Casa de Cinema de Porto Alegre, que produzia em parceria com o Núcleo Guel Arraes. Assim, fiz várias participações em programas de humor como TV Pirata, Dóris Para Maiores e Comédias da Vida Privada. Uma série de coisas produzidas em Porto Alegre, mas, profissionalmente, para a TV Globo.

Beta: Foi através da Casa de Cinema que você começou a atuar em filmes?

Zé Victor: Sim. Meu primeiro curta-metragem chama-se Barbosa, uma alegoria em cima da Copa de 1950. E a partir daí comecei a fazer muitos curtas e fui para o cinema.

Beta: Algum filme o marcou em especial?

Zé Victor: O cinema é uma cachaça. Eu adoro fazer. O que mais marcou foi O Quatrilho (1995). Porque ele foi filmado no Rio Grande do Sul e acabou sendo indicado ao Oscar (como melhor filme estrangeiro). E eu era o único ator profissional aqui do estado que fazia O Quatrilho. Assim, acabei me tornando o primeiro ator gaúcho indicado, através de um filme, a uma premiação no Oscar.

Beta: Nessa época você foi convidado a fazer novelas?

Zé Victor: Na verdade, eu sempre recebia convites para fazer novelas. Só que eu já tinha filhos pequenos e ficava preocupado em sair de Porto Alegre. Até que fui chamado para fazer Laços de Família, em 1999, em que a Globo disponibilizou hotel e passagens aéreas, tantas quantas eu precisasse, para me deslocar até o Rio de Janeiro.

Castiel interpretando Viriato, em Laços de Família, junto à atriz Carla Diaz. Foto: Reprodução/TV Globo

Beta: Foi difícil interpretar um personagem que representava um tabu (na trama, o segurança Viriato sofria com impotência sexual)?

Zé Victor: Eu fazia ele de maneira muito dedicada. Ali, eu conseguia exercer aquilo que o ator deve fazer. Fala-se muito em ‘defender o personagem’, mas o que se vê é as pessoas se defendendo do personagem para ficarem bonitas na TV. Eu, como oriundo do teatro, quis defender os defeitos do Viriato. Então, consegui colocar um toque de humor e a figura ‘pegou’.

Beta: Como você lida com o estigma de ser um ator da Globo e com o reconhecimento do público?

Zé Victor: No momento em que se opta por uma carreira de ator, se opta por uma exposição pública. E, junto a isso, vem o atendimento ao espectador. Eu sempre lidei bem e consigo separar bem isso. Eu continuei frequentando os mesmos lugares. E carinho nunca é demais. Isso não é algo que eu rotule como um problema.

Beta: E você sempre esperou atingir a fama atual?

Zé Victor: Existe uma diferença muito grande entre sucesso e fama. O sucesso é obtido por aqueles que conseguem viver bem com o fruto do seu trabalho. E aí não importa se é ator, médico ou lixeiro. Se o aquilo lhe faz feliz, ele é uma pessoa de sucesso. No caso do ator, a fama acompanha o sucesso. Mas, em geral, nem sempre o sucesso acompanha a fama. Alguém que participa do Big Brother, por exemplo, certamente tem muita fama, mas pode não ter o sucesso. Eu sempre persegui o sucesso, e a fama veio ao natural.

Beta: Você é um dos promotores e idealizadores do maior festival independente de teatro da Capital. Como surgiu o Porto Verão Alegre?

Zé Victor: Nasceu por acaso. Eu estava ouvindo rádio em uma véspera de feriadão de Finados e o locutor disse que cem mil pessoas sairiam da cidade naqueles dias. E eu não tirei aquilo da cabeça e não dormi à noite. Pois, se esse era o número de pessoas que sairia em viagem, isso significava que mais de um milhão permaneceriam na cidade. No dia seguinte fui até a casa do Rogério Beretta (parceiro em Homens de Perto) e propus a ele que fizéssemos um festival de teatro na cidade durante o Verão. E então, há 19 anos, criamos o Porto Verão Alegre, que todo mundo pensa que é do estado ou do município, mas que é totalmente privado. As pessoas confundem muito porque ele tem um caráter público muito forte e mantém os preços populares.

Beta: Duas décadas depois, qual o saldo desse festival para a capital?

Zé Victor: Hoje, ele é o maior festival cooperativado da América Latina e leva entre 50 e 60 mil pessoas aos palcos de Porto Alegre durante o verão. E já não se restringe ao teatro: engloba cinema, música, artes plásticas, literatura, dança e circo. Quem é mais jovem não sabe que Porto Alegre, há 20 anos, morria no verão. Hoje, ela é a capital cultural do Brasil nesse período. E eu não tenho nenhum prurido em dizer que isso foi feito por mim e pelo Beretta. Nós deixamos um legado para a cidade que é a possibilidade de se fazer cultura. E esse é um orgulho que eu tenho.

Beta: Há 15 anos, você, Rogério Beretta e Oscar Simch formam o trio Homens de Perto. Qual o segredo para tanta longevidade?

Zé Victor: Homens de Perto se mantém porque se reinventa, porque sabe a hora de parar um espetáculo e começar outro e também por ter sido pioneiro. Quando começamos, não existia nenhuma dessas grandes comédias que vemos hoje. Brincando, eu digo: quem foi rei sempre será majestade. E a gente continua fazendo, durante o Porto Verão Alegre e em temporadas esporádicas durante o ano. Ao todo, já fomos vistos por mais de 600 mil pessoas.

Zé (ao centro), junto a Beretta (à esq) e Simch (à dir), estão juntos há 15 anos em Homens de Perto. Foto: Mainquest

Beta: Em breve, vocês realizarão mais uma temporada?

Zé Victor: Exato. De 21 a 25 de junho, apresentaremos esse novo espetáculo: Desgovernados, que muito pouca gente viu, apenas quem assistiu à estreia no Porto Verão Alegre. Ela será apresentada no Theatro São Pedro e terá um caráter mais comemorativo (será a última temporada fora do festival).

Beta: O humor sempre foi algo característico em suas atuações. Como você observa o fenômeno do stand up comedy no Brasil?

Zé Victor: Bom, eu fiz um espetáculo em 1989, chamado conversas ao pé do palco, em que eu estava sozinho e contava histórias engraçadas. Isso pode ser stand up. No prêmio Roquette Pinto, de 1967, o Chico Anysio fez uma apresentação no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, durante 40 minutos, falando à plateia. Então isso pode ser uma moda nova, mas não é necessariamente uma coisa nova.

Beta: Há pouco tempo, você foi convidado a participar do Sala de Redação, na Rádio Gaúcha. Para ti, é um desafio?

Zé Victor: Eu sou um torcedor fervoroso do Internacional. E gosto muito de futebol. Mas não sou um corneteiro, nem vivo futebol 24 horas por dia, e nem o acho a coisa mais importante. Quando a RBS me convidou, até achei que era brincadeira, porque eu não entendo de futebol. A Globo, com quem tenho contrato, me liberou e eu comecei a fazer o Sala. E aquilo é uma coisa realmente provisória. Eu estou ali, mas a minha profissão é outra. E estou ali para dar uma opinião não abalizada. Eu não entendo e futebol, entendo de torcer para o meu time.

Beta: Mesmo não tendo um perfil provocador, você participa de um programa que é marcado por discussões e até hostilidades. Como lidar com isso?

Zé Victor: Bom, eu não tenho sangue de barata. Gosto de discutir futebol até um certo nível. Quando o nível baixa, eu preciso responder, usando minhas armas, que são as armas da elegância e da boa convivência. Mas algumas coisas realmente me incomodam, como o deboche e a agressão pessoal. Agora, não esperem de mim que eu vá protagonizar baixarias.

Beta: Mesmo assim, você se sente bem fazendo o Sala de Redação?

Zé Victor: Eu me sinto bem, são pessoas muito legais, no geral, mas não é minha profissão. Eu sou um ET ali. O que eu não gosto é que pensem que falar de futebol ou viver de futebol é a coisa mais importante da minha vida. Mas não é mesmo! Fora dali, dificilmente você vai me ver falando de futebol na rua. Eu adoro fazer o Sala, mas ele me obriga a fazer uma coisa que eu não sei e que eu não gosto de fazer, que é responder provocação e tirar sarro. Então, me gera um certo sofrimento.

Beta: Você se prepara para interpretar Vinicius de Moraes em breve. Pode nos adiantar alguma coisa?

Zé Victor: Recentemente, encomendei ao Artur José Pinto um trabalho solo no teatro. E eu tinha muita vontade de fazer uma adaptação do livro Chega de Saudade, do Ruy Castro, que fala sobre o surgimento da Bossa Nova. Então comecei a evoluir e a coisa chegou até o ponto em que eu faria um monólogo onde interpretaria o Vinicius de Moraes contando essa história. Seria o Vinicius já morto, em uma licença poética, contando toda a verdade. O texto ainda está sendo elaborado, mas espero estrear no próximo Porto Verão Alegre. Não é um espetáculo de música ou poesia, é um espetáculo de teatro, no qual eu escolhi um personagem muito rico da Bossa Nova para contar a história do movimento.

Beta: Quando sai a sua biografia e o que estará escrito nela?

Zé Victor: Sinceramente, espero que saia só depois que eu morrer, daqui uns 30 ou 40 anos. Acho biografia uma coisa depressiva. Eu me sinto no auge. Eu quero enriquecer minha história para mais tarde alguém escrever minha biografia e ganhar dinheiro sem ter que dividir comigo (risos). Nem penso nisso e acho que meu legado não está completo, ainda é muito pequeno perto do que eu quero fazer. Duas coisas que digo que nunca farei: uma autobiografia e me candidatar a um cargo público, porque eu sou muito desorganizado.

Beta: E como você percebe esse momento político por que o país passa?

Zé Victor:“Eu já participei de uma das viradas, na década de 1980, na época em que vigorava um regime de exceção no Brasil. Nós, artistas de teatro, encenávamos com apenas uma pessoa na plateia, que anotava o que podia e o que não podia dizer. Eu participei do processo de redemocratização e das Diretas Já. E foi uma alegria para o Brasil tomar o caminho democrático. Agora, de novo vemos o país dividido, com intolerância e a tentativa total de desrespeito aos preceitos constitucionais. Hoje, vivemos um perigo constitucional em função de desrespeitos à Constituição com participação de setores importantíssimos do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.

Beta: Para você, a arte e os artistas podem ajudar a modificar este cenário?

Zé Victor: A arte tem um papel fundamental nesse sentido. Não de se posicionar partidariamente, porque isso é ridículo. Mas de manter no prumo as ideias de democracia, liberdade de expressão, pluralidade e respeito ao contraditório. E de saber que, se uma pessoa não tem a mesma opinião que eu, ela não é pior por isso. Democracia não é fácil, não é para amadores.

Ator se mostra preocupado com a crise política e aponta “flagrantes” desrespeitos à Constituição. Foto: Fernando Eifler/Beta Redação

Beta: E como você vê observa o olhar do poder público para a cultura?

Zé Victor: Uma coisa que foi muito pauta nessas últimas discussões foi a Lei Rouanet. Ela foi criada no governo Collor (1991) e foi levada adiante nos Ministérios da Cultura que foram se sucedendo. É um negócio espetacular. Ouve-se muito: “Ah, o cara mama na Lei Rouanet”. A pessoa que diz isso deveria voltar aos bancos escolares. Ela é um preceito legal segundo o qual as empresas que investirem até 4% do Imposto de Renda devido podem abatê-lo. E ela é o único mecanismo público cultural que funciona no Brasil. Nos estados, ela foi relegada ao quinto plano. No Rio Grande do Sul, a Secretaria da Cultura abriga também Turismo, Esporte e Lazer. Há um descaso total do poder público. As políticas públicas estaduais e municipais são lamentáveis.

Beta: Mas não há algumas deturpações no uso da Lei Rouanet?

Zé Victor: Elas existem na Inglaterra, na França, no Nepal ou no Brasil. Sempre tem o malfeitor. Aquele que faz um espetáculo de um grande artista famoso e cobra R$ 400 o ingresso. Com esses caras, temos que nos cuidar, até para extirpar as críticas infundadas. O engraçado é que ela virou o ‘demônio dos diabos petistas’ e foi criada no governo Collor. Ela não pode acabar, e o próprio empresário não deixaria acabar, pois ele consegue ter retorno institucional de um recurso que ele pagaria no imposto.

Beta: Você acredita que a cultura tem responsabilidade de modificar a sociedade?

Zé Victor: Isso não tem uma ligação direta com a cultura, mas com a educação. No momento atual, de violência e a guinada à direita que estamos vendo no mundo, a educação é muito mais elucidativa que a cultura. Embora, logo em seguida, o cidadão vá precisar pensar ludicamente. E aí a cultura é muito importante.

Matéria produzida originalmente para a disciplina de Laboratório em Jornalismo de Cultura, da Unisinos, no primeiro semestre de 2017, sob orientação do professor Everton Cardoso.

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