Eu, Racista

Paulo Ferreira de Moura Jr.
12 min readJul 13, 2015

Essa é uma tradução para o português do artigo “I, Racist” de John Metta. Agradecemos ao autor por ter dado permissão para traduzir o texto.

O que se segue é o texto de um “sermão” que eu (John Metta, autor do texto) ministrei como uma “reflexão congregacional” para uma audiência somente de brancos na Bethel Congregational United Church of Christ no domingo, 28 de Junho. O sermão começou com a leitura do Bom Samaritano e essa bela citação do livro Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie (Nota da tradução: a versão traduzida da citação está no final do texto)

Algumas semanas atrás, estava conversando sobre o que iria falar nesse sermão. Disse ao Pastor Kelly Ryan que tinha grandes reservas em falar sobre o único assunto que todo dia penso a respeito.

Então um terrorista massacrou nove pessoas inocentes em uma igreja que eu frequentava, em uma cidade que ainda chamo de lar. Neste momento, soube que, apesar das reservas, tinha que falar sobre raça.

Não converso sobre raça com pessoas brancas. Para ilustrar o porquê, vou contar uma história:

Mais ou menos uns 15 anos atrás, houve uma conversa entre minha tia, que é branca e vive no estado de Nova Iorque, e minha irmã, que é negra e vive na Carolina do Norte. Essa conversa pode ser resumida em uma única frase, dita pela minha irmã negra:

“A única diferença entre as pessoas no Norte e as pessoas no Sul é que aqui embaixo as pessoas pelo menos são honestas sobre serem racistas”

Obviamente, a conversa teve muito mais coisas do que isso, mas digo que ela pode ser resumida a essa única sentença — porque ela foi — pela minha tia branca. Mais de uma década depois, essa frase é o que ela ainda fala a respeito. Ela se tornou o único aspecto mais importante do relacionamento da minha tia com minha família negra. Ela ainda está magoada pela idéia de que as pessoas de Nova Iorque, que ela, uma pessoa do Norte, uma liberal, uma pessoa boa que tem membros negros na família, é racista.

Isso ilustra perfeitamente porque não falo a respeito de raça com pessoas brancas. Até mesmo — ou melhor, especialmente — com minha própria família.

Amo minha tia. Na verdade, ela a minha favorita, e olha que tenho um monte de tias incríveis para escolher. Mas nesse caso, os fatos estão muito mais do lado da minha irmã.

O estado de Nova Iorque é um dos mais segregados nos Estados Unidos. Buffalo, cidade onde minha tia vive, é uma das 10 com sistemas escolares mais segregados do país. O desnível racial nas áreas onde ela mora é tão alto, que está sendo alvo de investigação pela Civil Rights Action Network e pelo NAACP (National Association for the Advancement of Colored People).

Porém, esses são fatos que a minha tia não precisa saber. Ela não precisa viver com a segregação racial e opressão em seu lar. Sendo uma pessoa branca com boa mobilidade social, ela tem continuado a melhorar sua situação econômica e social. Ela se mudou da área onde cresceu — se mudou para uma região com escolas melhores. Ela não tem que sentir o racismo, por isso ele não é real para ela.

Também não passa pela cabeça dela que o próprio fato de ter saído de uma região com crescente população negra para viver em uma vizinhança branca pode ser por si só um dos aspectos do racismo. Ela não tem que perceber que “melhores escolas” significa exclusivamente “escolas mais brancas”.

Não converso sobre raça com pessoas brancas porque geralmente não leva a lugar algum. Quando era mais novo, pensava que isso era porque todas as pessoas brancas eram racistas. Recentemente, comecei a entender que há mais nuances do que isso.

Para entender, você tem que saber que pessoas negras pensam em termos de Pessoas Negras. Não vemos o assassinato por arma de fogo de uma criança negra inocente em outro estado como algo separado de nós, porque sabemos, de modo visceral, que nossas crianças, nossos pais, ou mesmo nós, que poderiam ser alvejados.

O assassinato de Walter Scott em North Charleston ressoou em mim porque Walter Scott foi retratado na mídia como um caloteiro e um criminoso — mas quando você olha os fatos sobre a pessoa em questão, ele era praticamente idêntico a meu pai.

O racismo nos afeta diretamente porque o fato de ter acontecido em um local geograficamente remoto ou com outra pessoa negra é só uma coincidência, um acidente. Poderia ter facilmente acontecido conosco — aqui mesmo e agora.

Pessoas negras pensam em termos de nós porque vivemos em uma sociedade na qual as estruturas políticas e sociais interagem conosco como Pessoas Negras.

Pessoas brancas não pensam em termos de nós. Pessoas brancas tem o privilégio de interagir com as estruturas políticas e sociais da nossa sociedade como indivíduos. Você é “você”, eu sou “um deles”. Pessoas brancas geralmente não são afetadas diretamente pela opressão racial mesmo em suas próprias comunidades, então o que não os afeta localmente tem pouca chance de afetá-los regional ou nacionalmente. Elas não tem necessidade, nem geralmente nenhum desejo real de pensar em termo de grupo. Elas são apoiadas pelo sistema, e na maioria das vezes não são afetadas por ele.

O que os afeta são os ataques a seus próprios personagens. Para minha tia, a ideia de que “pessoas no Norte são racistas” é um ataque a ela como uma racista. Ela é incapaz de distinguir sua participação dentro de um sistema racista (mobilidade social, não ser avaliada racialmente, habilidade de mudar para vizinhanças brancas, etc.) da acusação de que ela, individualmente, é uma racista. Sem essa capacidade de distinção, pessoas brancas em geral passam a defender vigorosamente seu próprio não-racismo, ou apontar que isso não existe porque eles não o veem.

O resultado disso é a repetição incessante da discussão onde a pessoa negra diz “Racismo ainda existe. Ele é real” e a pessoa branca defende “Você está errado, eu não sou racista de forma alguma. Eu mesmo não vejo racismo algum”. A resposta imediata da minha tia não é “isso é errado, nós deveríamos fazer algo melhor”. Não, sua resposta é de auto-proteção: “Isso não é culpa minha, eu não fiz nada. Você está errado.”

Racismo não é escravidão. Conforme disse o Presidente dos Estados Unidos Barack Obama, racismo não é evitar o uso da palavra “Preto” ou “Crioulo” . Martin Luther King não acabou com o racismo. Racismo é um policial causar uma lesão na coluna vertebral um inocente. É uma criança de 12 anos ser alvejada por brincar com uma arma de brinquedo em um estado no qual o porte de armas ao ar livre é legal.

Mas racismo é ainda mais sutil do que isso. Tem mais nuances. Racismo é o fato de que “Branco” representa “normal” e que qualquer outra coisa é diferente. Racismo é aceitar todo um elenco de pessoas brancas no Senhor dos Anéis por causa de “precisão histórica”, ignorando o fato de que é um mundo dentro de uma história totalmente ficcional.

Mesmo quando inventamos qualquer porcaria, queremos que ela seja de branco.

E racismo é o fato de que todos aceitamos que seja branco. Benedict Cumberbatch fazendo o papel de Khan no Jornada das Estrelas. Khan, que é indiano. Existe alguém mais branco que o Benedict Cumberbatch? Hein? Eles precisavam de um elenco “menos racial” porque já tinha a personagem negra Uhura?

Isso é racismo. A partir do momento que você passa a perceber, ele estará lá a todo momento.

Crianças negras aprendem isso com seus pais durante “A Conversa”. Quando essas crianças, por volta dos 5 anos, aprendem que o pai do seu melhor amigo não está doente ou mal-humorado — ele apenas não quer que seu filho brinque com você. Crianças negras amadurecem cedo para viver na Matrix. A nós não é dada a escolha da pílula vermelha ou azul. A maioria das pessoas brancas, tipo a minha tia, nunca tem que escolher. O sistema foi desenhado para as pessoas brancas, por isso pessoas brancas não tem que pensar sobre como é viver nele.

Mas não podemos apontar isso.

Viver todo santo dia com racismo institucionalizado e ainda ter que discutir a existência dele é cansativo, é entristecedor, é enfurecedor. Além disso, se expressamos alguma emoção quando estamos falando a respeito disso, temos nosso tom policiado, nos dizem que estamos bravos. Na verdade, um elemento chave em qualquer discussão racial nos Estados Unidos é a figura da Pessoa Negra Brava, e discussões raciais terminam quando a Pessoa Negra Brava fala. A Pessoa Negra Brava invalida quaisquer argumentos sobre racismo porque ela é “apenas muito sensível”, ou “ muito emocional”, ou “está dando a cartada racial”. Ou pior ainda, nos dizem que nós é que somos racistas (Alguma pessoa inteligente realmente acredita que uma população sistematicamente oprimida tem a capacidade de oprimir aqueles no poder?)

Mas essa é a ironia, é aquilo que toda Pessoa Negra Brava sabe e que nenhuma pessoa branca que debate calmamente gosta de admitir: Todo o sistema de raças nos Estados Unidos está centrado na proteção do sentimento dos brancos.

Pergunte a qualquer pessoa negra e ela dirá a mesma coisa. A realidade de milhares de pessoas inocentes estupradas, alvejadas, presas e sistematicamente desprivilegiadas é menos importante do que a ideia de que uma única pessoa branca possa ser cúmplice em um sistema racista.

Esse é o país no qual vivemos. Milhões de vidas de pessoas negras valem menos do que os sentimentos feridos de uma única pessoa branca.

Pessoas brancas e negras não estão tendo uma conversa sobre raça. Pessoas negras, pensando como um grupo, estão falando sobre viver em um sistema racista. Pessoas brancas, pensando como indivíduos, recusam a falar sobre “Eu, racista” e, ao invés disso, protegem sua própria bondade pessoal e individual. Ao fazer isso, elas rejeitam a existência do racismo.

Mas reclamar a respeito do não-racismo pessoal é fugir da questão.

Apesar do que o massacre de Charleston possa aparentar, pessoas morrem não porque indivíduos são racistas, mas sim porque indivíduos ajudam a sustentar um sistema racista através do desejo de proteger suas próprias crenças não racistas.

Pessoas morrem porque estamos sustentando um sistema racista que justifica pessoas brancas matando pessoas negras.

Vemos isso quando um assassino muçulmano é um sinal do terror islâmico; quando um ladrão mexicano é um indicador da importância da segurança das fronteiras; quando um homem negro inocente e desarmado é alvejado pelas costas por um policial, e então tem sua reputação destruída pela mídia ao ser retratado como um bandido e criminoso.

E quando um racista branco em um estado que ainda hasteia a bandeira confederada é visto como “preocupante” e “desconcertante”. E quando as pessoas “não entendem porque ele fez uma coisa dessas”.

Uma pessoa branca fumando maconha é um “hippie” e uma pessoa negra fazendo isso é um “criminoso”. Está evidente quando pessoas saem da escola e vão para a prisão e no fato de que há quase 20 pessoas não-brancas na prisão para cada pessoa branca.

Uma chamada do jornal “The Independent” sintetiza muito bem essa situação: “Tiroteio em Charleston: assassinos negros e muçulmanos são ‘terroristas’ e ‘criminosos’. Por que atiradores brancos são chamados ‘mentalmente doentes’?”

Vou ler novamente: “Assassinos negros e muçulmanos são ‘terroristas’ e ‘criminosos’. Por que atiradores brancos são chamados ‘mentalmente doentes’?”

Vocês perceberam? É lindamente sutil. Esse é um artigo falando especificamente sobre como tratamos de forma diferente pessoas não-brancas nessa nação e ainda assim, na chamada do artigo, pessoas brancas são “atiradores” e pessoas negras e muçulmanas são “assassinos”.

Mesmo quando estamos falando sobre racismo, estamos usando uma linguagem racista que faz pessoas de cor parecerem perigosas e faz pessoas brancas parecerem não tão ruins assim.

Deixe isso assentar por um minuto, então pergunte a si mesmo porque pessoas negras ficam bravas quando conversam sobre raça.

A realidade dos Estados Unidos é que pessoas brancas são fundamentalmente boas, e que quando pessoas brancas cometem um crime, é um sinal que elas, como indivíduos, são más. Suas ações como pessoa não são indicativos de nenhuma construção social mais ampla. Mesmo o fato de que os Estados Unidos tenha um número crescente de grupos violentos de ódio, compostos principalmente por homens brancos, e que praticamente *todos* os assassinos seriais sejam homens brancos não põe em dúvida a crença fundamental na bondade do homem branco. Na verdade, gostamos tanto de assassinos seriais brancos que até fazemos minisséries sobre eles.

Pessoas brancas são boas como um todo, e apenas agem de forma ruim como indivíduos.

Pessoas não brancas, especialmente pessoas negras (mas, sim, podemos falar sobre “os mexicanos” nessa comunidade) são vistas como fundamentalmente más. Até pode existir algumas pessoas boas — e somos rápidos em apontar para os nossos amigos, ostentá-los como nosso prêmio da Academia de “Melhor Não-Racista em um Papel de Branco” — mas quando vemos uma má, é apenas a prova de que o resto é, por regra, mau.

Isto, tudo isto, expectativa, tratamento, pensamento, o sistema social fundamental que coloca brancos na posição de Normal e bom, e negros na posição do “outro” e “mau”, tudo isso é racismo.

E pessoas brancas, cada um de vocês, são cúmplices nesse racismo porque vocês se beneficiam diretamente dele.

É por isso que não gosto da história do bom samaritano. Todo mundo gosta de pensar em si próprio como a pessoa que vê alguém espancado e ensanguentado e vai ajudá-la.

Isso é muito fácil.

Se eu pudesse reescrever essa história, reescreveria do ponto de vista da América negra. E se a pessoa não fosse espancada e estivesse ensanguentada? E se isso não fosse tão óbvio? E se eles fossem desafiados sistematicamente de milhares de pequenas formas, e que na verdade essas formas tornam mais fáceis para você ter sucesso na vida?

Você ajudaria rapidamente, ou você, assim como a maioria das pessoas brancas, ficaria em silêncio e deixaria pra lá?

Isso é o que quero dizer para você: Racismo está entranhado de forma tão profunda nesse país não por causa dos radicais racistas de direita que o praticam de forma aberta, ele existe por causa do silêncio e dos sentimentos feridos da América liberal.

Isso é o que eu quero falar, mas realmente não posso. Não posso falar isso porque passei minha vida não falando sobre raça com pessoas brancas. De uma certa forma, a culpa é minha. Racismo existe porque eu, uma pessoa negra, não desafio você a encará-lo.

Racismo existe porque eu, não você, estou calado.

Mas estou nesse beco sem saída, porque quando começo a apontar o racismo, me torno a Pessoa Negra Brava e a discussão termina de novo. Então fico emperrado.

Todas as vozes negras no mundo falando sobre o racismo durante o tempo todo não incita pessoas brancas a pensar nele — mas um John Stewart, branco, falando sobre Charleston faz um monte de pessoas brancas falar a respeito do racismo. Esse é o mundo no qual vivemos. Pessoas negras não podem mudá-lo enquanto pessoas brancas estiverem mudas e surdas para nossas palavras.

Pessoas brancas estão em posição de poder nesse país por causa do racismo. A questão é: São elas suficientemente corajosas para usar esse poder para falar contra o sistema que deu esse poder a elas?

Por isso estou pedindo para você que me ajude. Perceba isso. Fale. Não deixe as coisas piorarem. Não permaneça assistindo calado. Ajude a construir um mundo no qual nunca será necessário chegar no ponto no qual o Samaritano tenha que ver alguém ensanguentado e quebrado.

Da minha parte, não ficarei mais calado. Vou tentar falar amável e suavemente, mas isso será difícil. Porque está cada vez mais difícil pensar na proteção do sentimento de pessoas brancas quando pessoas brancas não parecem se importar com a perda de tantas vidas de pessoas negras.

Tradução da citação de ‘Americanah’ de Chimamanda Ngozi Adichie

“A única razão pela qual você diz que raça não é um problema é porque você gostaria que não fosse. Todos nós gostaríamos que não fosse. Mas isso é uma mentira. Venho de um país onde raça não era um problema; não pensava em mim como negra e somente me tornei negra quando vim para os Estados Unidos. Quando você é uma pessoa negra e se apaixona por uma pessoa branca, raça não importa quando vocês estão sozinhos juntos, porque é apenas você e a pessoa amada. Mas no momento em que você atravessa a porta de casa, raça importa. Mas não falamos a respeito. Não falamos sequer com nossos parceiros brancos sobre as pequenas coisas que nos aborrecem e das coisas que gostaríamos que eles entendessem melhor, porque nos preocupamos que eles vão dizer que estamos exagerando ou que estamos muito sensíveis. E não queremos que eles digam “Veja como progredimos, quarenta anos atrás nosso relacionamento seria ilegal, blá, blá, blá”, porque, você sabe, o que passa na cabeça deles quando dizem isso? Pensamos “por que diabos isso já foi ilegal?”. Mas não falamos nada disso. Deixamos isso empilhar-se dentro das nossas cabeças e quando vamos para jantares liberais legais como esse, dizemos que raça não importa porque é isso que esperam que vamos dizer, para deixar nossos amados amigos liberais confortáveis. Isso é verdade. Falo por experiência própria.”

Traduzido por Paulo Ferreira de Moura Jr. e Hilton Bruno de Sousa

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Paulo Ferreira de Moura Jr.

Belohorizontino, computeiro, viciado em música. Programo, corro e faço brigadeiros.