Quando Éramos Reis

Paulo Silva Jr
19 min readSep 3, 2015

Bartô está furioso. Não bastasse a missão de comandar a defesa do Club Athletico Paulistano na primeira partida da excursão à Europa enfrentando de cara, em Paris, a seleção da França, o zagueiro sofre com o gramado castigado num lamaçal causado pela neve. Toda a defesa, aliás, cai em escorregões na primeira parte do confronto, e nem a passada de chuteira dupla de Bartô resiste ao estranhamento do terreno — o beque veste um calçado 42 dentro de outro 43, cerrando a sola do maior, para que o revestimento dobrado lhe permita chegar com mais força nos atacantes rivais. Passado o momento de adaptação e equilíbrio, o time paulista logo vira o jogo e vai ao intervalo já na frente. Mas Bartô é Bartô. Cobra o time, é o líder dos mais jovens e xerife da primeira linha, mínima em tempos de esquema 2–3–5. Com seu gorro vermelho, que lhe renderia o apelido de Le Cardinal — o pássaro de cabeça da mesma cor -, não se conforma com o branco do fardamento de Araken, limpo como se acabara de sair da mala. Para chacoalhar o jovem atacante santista, combina com três comparsas de jogá-lo numa poça assim que retornarem ao meio-campo para o segundo tempo. Dito e feito. Araken primeiro se revolta com a peça pregada pelos colegas; depois, participa ativamente do massacre do onze brasileiro sobre a equipe europeia, 7 a 2. Araken sai de campo com a alcunha de Le Danger — o perigo. Filó, Friedenreich e companhia amanhecem com o título de Reis do Futebol.

Tigre

O Club Athletico Paulistano foi fundado em dezembro de 1900 e, à parte a promoção do ciclismo no Velódromo Paulistano — área onde hoje estão a rua Nestor Pestana e a praça Roosevelt, região central de São Paulo — já no ano seguinte viu o departamento de futebol ser um dos principais agentes do início da era competitiva para a modalidade na cidade com a criação da Liga Paulista ao lado de São Paulo Athletic Club (SPAC), Germânia, Mackenzie e Internacional.

Nos três primeiros Campeonatos Paulistas, virou freguês do SPAC ao terminar três vezes no segundo lugar, sempre atrás do rival; depois, foi vencendo seus títulos a partir de 1905, somando 11 no total e sendo até hoje, com sobras, o maior vencedor além dos quatro grandes do estado e também o único a enfileirar um tetracampeonato no torneio.

O Paulistano era, portanto, um dos grandes do início do futebol em São Paulo, fazendo valer inclusive sua força de mobilização política e de bastidor. Em 1913, protagonizou a primeira ruptura da competição local, ao se mostrar insatisfeito com a entrada de times populares como Ypiranga e Corinthians e, querendo se manter num ambiente elitista do Velódromo, fundar uma liga paralela, a Associação Paulista de Esportes Atléticos, rapidamente cooptando Mackenzie e Associação Atlética das Palmeiras. A reunificação se deu em 1917, último campeonato do clube antes de contar com Friedenreich, então artilheiro pelo Ypiranga com 15 gols.

Capa da revista O Badalo destacando o 11 do Paulistano [crédito: reprodução arquivo Centro Pró-Memória Paulistano]

“Arthur Friedenreich jogava futebol com o coração no peito do pé. Foi ele quem ensinou o caminho do gol à bola brasileira”. A frase é de Armando Nogueira, uma das tantas definições daquele que é para muitos o principal jogador da geração. Era filho de Oscar, descendente de alemães e migrante de Blumenau que trabalhava com engenharia e arquitetura, e Mathilde, mulata professora normalista da rede pública, conforme descrição da biografia Friedenreich, escrita por Luis Carlos Duarte.

Essa mistura, diante do elitismo dos clubes paulistanos do início do século XX, impactou inclusive a entrada de Friedenreich nos quadros, como mostram as palavras de José Miguel Wisnik em Veneno Remédio. “A sua entrada no futebol é possibilitada, aliás, pela condição social de classe média, dada pela origem do pai, um alemão radicado no Brasil, graças à qual começou a jogar pelo clube paulista Germânia e onde começou a se firmar pelo talento, transferindo-se depois para o Ypiranga e mais tarde para o Paulistano. A cor e o cabelo ‘ruim’ indicavam a ascendência materna (…) que, segundo se conta insistentemente, ele tentava atenuar (pelo menos no começo da carreira) usando gorro e alisando o cabelo”.

Em campo, a estrela de Fried começou a brilhar em 1911, quando aos 19 anos decidiu um 4 a 3 para o seu Germânia diante da Associação Atlética das Palmeiras; no ano seguinte, jogou pelo Mackenzie, quando chegou a marcar quatro gols num só jogo e foi pela primeira vez chamado para um combinado brasileiro, que na ocasião enfrentou um argentino.

Após então rodar ainda por Paulista, Paysandu, Atlas e Americano, Fried chega ao Paulistano para disputar o Campeonato Paulista de 1918, quando foi artilheiro e pela primeira vez campeão. Foi no clube do Jardim América que ele viveu sua melhor fase, atuando até o fim das atividades do futebol no clube, em 1929, e defendendo a camisa na época de sua grande consagração internacional: o apelido de El Tigre veio após o gol do título sul-americano da seleção brasileira sobre o Uruguai, nas Laranjeiras, em 1919. Numa jogada emocionante // O nosso time venceu por um a zero // E a torcida vibrou, diz o choro de Pixinguinha e Benedito Lacerda, Um a Zero, homenagem ao gol da lenda.

Depois, pelo São Paulo Futebol Clube, foi protagonista desde o início de sua história, em 1930. “Foi o jogador mais importante do São Paulo naquela fase. Não era o maior líder dentro de campo (isso ficava a cargo de Clodô e Araken Patusca, por exemplo), mas exercia autoridade fora. Chegou a ser árbitro indicado pelo São Paulo e comandou alguns treinos da equipe entre 1933 e 1935. A importância dele em ser campeão pelo São Paulo, apesar da idade, foi, em boa parte, ajudar a consagrar o nome do São Paulo e engatilhar o que o Tricolor é hoje. Pois, é notório, o Tricolor era um bebê em sua época e o nome Friedenreich tinha um peso mil vezes maior que o clube, até então. A ponto de, quando encerraram temporariamente as atividades em 1935, haver pessoas que lutaram para manter o clube, reorganizando-o, muito devido à contribuição dentro de campo de Friedenreich e outros jogadores do Esquadrão de Aço”, comenta o historiador do São Paulo, Michael Serra.

Zeelandia

“Estou sendo muito bem acolhido pelos representantes da Federação Francesa de Futebol. Essa instituição, em sua reunião ordinária de 23 do corrente, marcará as datas dos torneios, tendo ficado estabelecido, em princípio, que a comitiva deverá ser composta do quadro completo e mais das reservas suficientes para uma grande excursão, além dos diretores auxiliares. Rogo convidar um representante do Estado de S. Paulo e outro jornalista que a diretoria designar. A estada aqui será no máximo de dois meses. Sobre a data definitiva da partida peço esperar novo telegrama.”

Assim escreveu Antônio Prado Jr., presidente do Paulistano, conforme texto publicado pelo Estadão de 21 de janeiro de 1925. De férias em Paris, o mandatário foi arranjar jogos para aquela que seria a primeira empreitada de um time brasileiro de futebol na Europa, ele que já estava na história do futebol em São Paulo por ter convencido sua avó, Dona Veridiana, a permitir que um campo fosse criado no centro do Velódromo, dando origem à grande cancha do início do Campeonato Paulista.

Megalomaníaco e empreendedor, Prado deu ares de viagem oficial ao evento. Wisnik lembra que a excursão, financiada pela burguesia paulistana, remete às ações do movimento modernista. Fato é que o presidente não só foi marcando jogos como tratou de convidar repórteres para registrar a viagem, além de ainda articular para que a delegação levasse informes em francês e inglês fornecidos pela Secretaria de Agricultura com o objetivo de propagandear a produção brasileira. Também foram transportados cerca de 10 mil metros de filme para possíveis exibições de imagens do Brasil em terras do Velho Continente.

O último treino começou com filmagens da Rossi-Film, contratada para a produção cinematográfica, e teve o Paulistano vencendo o Internacional por 5 a 0 nos últimos ajustes do elenco, que teria novidades e uma ausência que gerou polêmica.

Defesa do goleiro Nestor, o mais jovem da delegação [crédito: reprodução arquivo Centro Pró-Memória Paulistano]

Formiga, chamado pelo Estadão de “o mais perfeito ponteiro da América, o rei do drible”, ficou de fora. Funcionário da Ford, ele temia que um longo afastamento custasse seu emprego na montadora e, ainda que a diretoria do Paulistano tenha feito os esforços para contar com o jogador — assim como se preocupou com os compromissos profissionais dos outros atletas -, o próprio acabou não se sentindo seguro para viajar. Já com a delegação em alto-mar, A Gazeta publicou que o atacante ainda poderia seguir em outro navio, cinco dias depois. Mais tarde, a caminho da França, parte da delegação escreveu uma carta de repúdio à postura do jogador, reprovando uma entrevista de Formiga no Brasil em que se disse desprestigiado, deixado de lado pelo clube.

Por outro lado, foram convidados os atacantes Junqueira, do Flamengo, Seabra, também do rubro-negro carioca, e Araken Patusca, do Santos — o último não só chegou como atacante titular como escreveu, nos anos 1940, o grande relato em livro sobre a empreitada, Os Reis do Futebol.

Com os reforços, assim foi fechada a delegação de 20 atletas que embarcou no navio Zeelandia em 10 de fevereiro sob festa e centenas de mensagens de apoio e presentes de políticos, clubes e personalidades de todo o país:

Atletas — Júlio Kuntz Filho (industrial), Nestor de Almeida (contador), Clodoaldo Caldeira (lavrador e negociante de café), Caetano Caldeira (estudante do Mackenzie), Bartholomeu Vicente Gugani, o Bartô (Tesouro do Estado), Sérgio Pereira (Brasil Railway), Epanimondas Mota, o Nondas (secretaria de Agricultura), Francisco Abate (reservista), J. Seabra (doutorando em Direito), Maurício Vilela (Ford), João Mestres Alijostes (Ford), Ernesto Pujol Neto (estudante de Direito), Antonio Carlos Seixas (estudante de Farmácia), Arthur Friedenreich (secretaria de Interior), Miguel Leite (comerciante), Luiz Lopes de Andrade, o Guarani (estudante do Mackenzie), Amphilóquio Marques, o Filó (estudante), Araken Patusca (estudante do Mackenzie), Durval Junqueira Machado (médico), Mario Andrade e Silva (Banco Comercial do Estado de São Paulo);

Diretor Esportivo — Orlando Pereira;

Jornalistas — Mario Vespaziano de Macedo, do S. Paulo Esportivo, e Américo Neto, d’O Estado de São Paulo.

O navio foi parando a cada porto para receber as devidas homenagens. Em Salvador, no dia 14, por exemplo, os jogadores visitaram redações de jornal e clubes sociais para confraternizar. O repórter do Estadão chegou a dar uma palestra no Diário da Bahia para falar das condições do esporte no Sul do país — mais uma prova do ar diplomático da delegação.

Na mesma barca estavam também jogadores argentinos e uruguaios, seguindo a mesma aventura europeia, mas eram os brasileiros os responsáveis pela festa, como relatou Mario Vespaziano:

“Compraram instrumentos para a formação de uma orquestra: violino, violão, cavaquinho, uma ocarina de metal chamada Fanfare, reforçados por um reco-reco improvisado e um chocalho que foi uma lata meio-cheia de café paulista. Juntaram-se a um rapaz tocador de clarinete que chamaram de Seu Borges, de uma peça de teatro em SP (…) Tocaram músicas de Eduardo Souto, Marcello Tupinambá e Jubert de Carvalho, três paulistas da gema (…) Araken pegou o chocalho, e nos dedicou modinhas brasileiras (…) holandeses foram chegando”.

E Araken, em seu livro, complementa: “Às dez horas, num recanto do tombadilho, foi visto um dos nossos melhores ponteiros, segredando aos ouvidos de uma pequena: Se eu pedir, você me dá // Ó minha nêga // Um beijinho assim Yayá // Ó minha nêga // Numa noite de luar // Ó minha nêga // Lá no fundo do quintá..

Passadas mais cerimônias e visitas já na França — lugares famosos como Fantasio, Lion Rouge, Paradis, Moulin Rouge, Louvre -, o time treinou pela primeira vez em 5 de março no próprio Estádio de Búfalo, local da estreia dez dias depois, 15, cercada de dúvidas.

Os diários esportivos franceses L’Auto e L’Echo des Sports acreditavam que o Paulistano não teve tempo suficiente para se aclimatar e logo enfrentar a seleção francesa. Além disso, a referência de futebol sul-americano era o uruguaio, campeão olímpico em Paris no ano anterior após golear os donos da casa por 5 a 1 nas quartas de final. Para aumentar a confiança da crítica local, o onze francês contava com ao menos dez jogadores com mais de dez partidas internacionais e nomes famosos à época, como Cotenet, Vignoli, Bonardel e Bardot.

Rola a bola

Finalmente, mais de um mês após a viagem que começou na Estação da Luz, entra em campo o time brasileiro estranhando o gramado — menor que o de costume — para às três da tarde alinhar diante de 30 mil pessoas:

Seleção Francesa — Cottenet; Vignoli e Mazanarés; Dupoix, Bel e Bonardel; Gordon, Accard, Liminara, Bardot e Galay. Paulistano — Nestor; Clodoaldo e Bartô; Sérgio, Nondas e Abate; Filó, Mario, Friedenreich, Araken e Netinho.

A saída é brasileira, e no primeiro minuto Filó já marca, mas a arbitragem assinala impedimento. Quem abre o placar são os franceses, com Bardot recebendo bom cruzamento de Cordon. “Os brasileiros que assistiam à partida já olham desanimados para a equipe e o resultado final já é lastimado”, descreve Araken. Mas, dada a saída, uma grande trama do ataque já trata de empatar o confronto, gol de Mario, 16 segundos depois.

A virada vem com Friedenreich, mas logo Bardot aproveita novo vacilo da zaga brasileira para deixar tudo igual. A partir daí a defesa do Paulistano melhora. E o ataque começa a sobrar: Netinho faz o terceiro, Araken o quarto. Em meia hora de jogo, 4 a 2 para os brasileiros, placar que se manteve até o intervalo.

A França volta buscando os gols, mas agora o time brasileiro já está completamente seguro. De Mario para Araken, para Netinho, e gol de Filó. Araken faz mais um, mas é anulado por impedimento. Nestor não trabalha debaixo das balizas. Outro gol anulado — injustamente, clama Araken -, este de Netinho. Em grande tabela de Netinho e Fried, gol do Tigre, driblando o goleiro e com direito a derrubar a mascote do goleiro francês pendurada na rede, um ursinho de pelúcia.

Para fechar, Friedenreich arranca em alta velocidade, passa por alguns defensores e tabela com Filó; já perto do goleiro, a grande estrela do time fuzila para garantir o 7 a 2 histórico (quase seis minutos da goleada estão registradas em vídeo, disponível no Youtube).

Lance no Estádio Búfalo, local dos dois primeiros jogos dos brasileiros na França [crédito: reprodução arquivo Centro Pró-Memória Paulistano]

A notícia da goleada chega aos telégrafos da agência Havas, no Rio de Janeiro, e logo várias partes do país entram em festa, entre elas, claro, a sede do Paulistano, onde imediatamente a orquestra interrompe o script e toca o hino nacional e a Marselhesa. A comemoração chega aos cinemas República, Mafalda e Colombo, e na França a repercussão é gigantesca (as traduções a seguir são da biografia Friedenreich): Le Soir (“um jogo excepcional”), Le Petit Parisien (“um quadro homogêneo e de bom fôlego”), Le Mirior des Sports (“sabem correr, marcar, passar a um ponto determinado, mudar o sentido dos ataques”), Le Sporting (“os pequeninos passes trocados deixaram frequentemente nossos adversários patetas”), Excelsior (“na turma brasileira, nenhum elemento é transcendente, exceto Bartô e Friedenreich, mas é decidida, corajosa”), Le Figaro (“os brasileiros possuem um grande quadro”), Paris Midi (“se praticam um futebol menos espetaculoso do que os uruguaios, são no fim das contas mais eficazes”) e, claro, o Le Journal, que cunhou o nome Os Reis do Futebol.

Com a vitória, a rivalidade entre as crônicas brasileira e francesa se acirra, como se pode ver no texto de Benjamin Costallat no Jornal do Commercio, de Recife, em 19 de março: “E o mais interessante em tudo isso é que, depois da maravilhosa pugna, os franceses continuaram a chamar os foot-ballers brasileiros de brasileirinhos, de petits brésiliens. Brasileirinhos! Isso dito em tom pejorativo, e do canto da boca, com desprezo! Brasileirinhos que deram em vocês franceses uma tremenda surra! Brasileirinhos, sim, mas uns brasileirinhos que sempre tiveram mais elegância moral do que vocês; brasileirinhos que nunca vaiaram um adversário caído; brasileirinhos que ensinarão a vocês o dia que aqui vierem, como se pratica ainda o velho e antigo dever da hospitalidade; brasileirinhos que ensinarão a vocês muita cousa, inclusive de serem educados e a jogar foot-ball. Brasileirinhos, sim, mas filhos de uma pátria dezessete vezes maior do que a França! Só se somos pequeninos porque nossa terra é grande! E os ‘brasileirinhos’ estarão sempre às ordens de vocês, quando vocês estiverem dispostos a apanhar”.

Junqueira

Para o segundo jogo, contra o Stade Français, foram a campo o goleiro Kuntz, na vaga de Nestor, e o atacante Junqueira, estreando no lugar de Araken.

Durval Junqueira Machado nasceu em Uberaba, Minas Gerais, em junho de 1900, mas fixou-se com a família em São Paulo, onde começou a relação com o Paulistano — uma das irmãs era ferrenha torcedora do clube como conta o filho Luiz Eduardo Junqueira, que recebeu a SARRIÁ no centro de memória do próprio clube paulista, exatamente 90 anos após a chegada da delegação naquela mesma rua Honduras. “Papai morreu em 1959, então infelizmente convivemos menos do que eu gostaria, mas o que eu me lembro é que ele contava com muita alegria as histórias da época. Com certeza a viagem foi muito especial para a vida dele”.

Luis Eduardo Junqueira (dir.) e o sobrinho Marco, respectivamente filho e neto de Junqueira; ao fundo, um quadro de homenagem enviado pelo Flamengo após a viagem do Paulistano [crédito: Paulo Junior/SARRIÁ]

Junqueira foi estudar na Escola de Medicina no Rio de Janeiro, e por isso acabou fazendo parte dos times do Flamengo no início dos anos 1920. Em reportagem da Revista Manchete em 1996, o técnico Flávio Costa elegeu a linha de ataque rubro-negra na temporada de 1924 a melhor que viu: Vadinho, Candiota, Nonô, Junqueira e Moderato.

“Depois de ver essa resposta dele, tomei a liberdade de ligar para o Flavio. E conversando comigo ele disse que meu pai lembrava o estilo de jogo do Rivellino”, acrescenta Luiz Eduardo.

Na Europa, Junqueira foi utilizado apenas nesta vitória por 3 a 1, gols de Mario, Bartô e Friedenreich, e depois voltou a ser reserva. Mas é difícil imaginar que ele tivesse insatisfeito por isso. A carreira que mais lhe chamava a atenção era mesmo a de médico.

Aproveitando a viagem, ele permaneceu até o final do ano na França, onde fez residência num grande hospital de Paris para depois voltar ao Brasil e exercer a profissão em Orlândia. “Eram só quatro médicos na cidade, e eu me lembro da gente estar no cinema, por exemplo, e ele ser chamado para atender alguém”, recorda o filho. De jaleco, seguiu acompanhando o esporte e gostava de reencontrar os amigos cariocas e também frequentar o Paulistano — foi a São Paulo para a inauguração de um novo prédio da sede, em 1957. Também foi ao Rio acompanhar de perto a Copa de 1950 e era um dos mais de 200 mil presentes no Maracanazo. “Ficou arrasado”, diz Luiz.

O que os presentes no Estádio de Búfalo não imaginavam é que aquela seria a última partida da carreira do campeão carioca pelo Flamengo e sul-americano pela seleção brasileira. De volta ao Brasil, virou Doutor Junqueira, e lhe bastava.

Maratona

O Paulistano fez dez jogos em 43 dias, número bastante elevado para os padrões da época. Como comparação, a biografia Friedenreich anota 23 partidas disputadas pelo atacante em toda a temporada 1924, por exemplo.

Stade Français, um dos rivais vencidos pelo Paulistano na Europa [crédito: reprodução dos arquivos do Paulistano referentes à imprensa francesa da época]

A terceira partida marcou a única derrota de toda a viagem, depois de encarar mil quilômetros de trem, das oito da manhã ao início do dia seguinte, até a cidade de Cette. Lá, encontraram um campo de formato quase quadrado, e com o mesmo time da estreia sobrou muita reclamação sobre a atuação do árbitro Broghamer: “não só nos perseguiu com impedimentos imaginários como ainda marcou contra nós faltas que não tínhamos cometido. Desse modo, jogamos contra doze pessoas”, colocou Araken. Final: revés por 1 a 0.

Em Bordeaux para o jogo quatro frente ao Bastidiene, Antônio Prado faz às vezes do dirigente clássico, para Eurico Miranda nenhum botar defeito: revoltado com o ocorrido em Cette, ele foi antes ao campo ver as condições do gramado e conhecer o árbitro: sem grama, com buracos preenchidos com carvão, sem arquibancadas e sem cercas, o presidente se recusou a deixar sua equipe atuar no local marcado, e conseguiu, com sucesso, alterar o lugar do encontro.

Friedenreich marcou duas vezes para abrir vantagem e ainda teve um anulado. Em fúria, Prado exigiu a troca do árbitro no segundo tempo, o que foi atendido depois de muita discussão. Com juiz novo, Araken fez o terceiro, e o Tigre fechou a goleada de 4 a 0.

Três dias depois e a parada foi em Havre, diante do time local com sete estrangeiros e quatro da seleção da Normandia. A vitória por 2 a 1, gols de Friedenreich e Netinho, foi uma das mais difíceis, com os brasileiros elogiando bastante o rival, principalmente o goleiro Frémont, “muito superior a Cottenet”.

O sexto jogo em solo francês aconteceu em Estrasburgo, contra o quadro homônimo, e Seixas e Fried marcaram os gols do triunfo por 2 a 1 — ainda houve um gol contra de Clodoaldo. O time brasileiro usou o uniforme de treino — calções pretos e camisas listradas em roxo e branco — já que havia um compromisso no dia seguinte na Suíça.

Correndo para o país vizinho sem nem jantarem no hotel, seguiram de trem até Basileia, de lá baldeação para Berne, e chegada na cidade já na manhã da partida, com tempo só para almoçar e seguir para o campo. Ainda sobrou fôlego para fazer 2 a 0, dois gols de Mario.

Dois dias depois, em Zurique, o adversário seria um combinado da Suíça, base da seleção medalha de prata na Olimpíada de Paris de 1925. Seis jogadores remanescentes da final atuariam diante do Paulistano, com o meia De Lavalez confirmado, na época considerado por muitos o melhor jogador da Europa.

O jogo é bastante pesado, e Nondas, Mario e Abate sofrem com entradas violentas. Seixas fez o gol da vitória magra, 1 a 0, ainda porque Filó teve um gol anulado por impedimento e Friedenreich desperdiçou um pênalti, acertando o travessão.

De volta à França para o jogo 9, o adversário é um combinado reunido pelo Rouen, na Normandia, e a vitória desta vez foi por 3 a 2, com um gol de Friedenreich e dois de Mario. Após a despedida em solo francês, houve ainda a última partida, em Lisboa, e vitória por 6 a 0 contra um combinado português — Filó, Fried, Mario, Fried, Mario, Filó. Para fechar em grande estilo.

Com 11 gols de Friedenreich e outros 8 de Mario, os artilheiros da equipe, e uma base de oito jogadores que atuaram em todas as partidas, o Paulistano venceu nove e perdeu só um jogo, marcando 30 vezes e sofrendo apenas 8 gols. A campanha, considerada espetacular, rendeu até poema de Oswald de Andrade:

A Europa curvou-se ante o Brasil 7 a 2 3 a 1 A injustiça de Cette 4 a 0 2 a 1 3 a 1 E meia dúzia na cabeça dos portugueses

Como comparação, no mesmo período os uruguaios fizeram sete jogos, vencendo quatro, perdendo um e empatando dois, por exemplo, com a mesma seleção francesa em 0 a 0; já o Boca Juniors, da Argentina, em nove jogos venceu seis e perdeu três. Ambos tiveram itinerários diferentes dos brasileiros, e as viagens e jogos foram marcados e negociadas separadamente, o que levou os argentinos à Espanha, país não visitado pelo Paulistano.

Fluminense convidou e recebeu o Paulistano pouco depois da volta do time ao Brasil [crédito: reprodução arquivo Centro Pró-Memória Paulistano]

A chegada do navio Flandria também passou por Nordeste e Rio de Janeiro, repetindo a ida do Zeelandia, e na Cidade Maravilhosa recebeu um grande jantar oferecido pelo Fluminense. Em São Paulo, já em 14 de maio e depois de assistir homenagens e festejos a cada estação de trem, a delegação ainda saiu em cortejo pelas ruas da cidade: José Paulino, Florêncio de Abreu, largo São Bento, Líbero Badaró, praça do Patriarca, Direita, 15 de Novembro, praça Antônio Prado, São Bento, largos do Ouvidor e São Francisco, avenidas Brigadeiro Luiz Antônio e Paulista e rua Augusta, até o Jardim América. Segundo o Estadão, cerca de 2 mil carros participaram do comboio e o total de presentes nas manifestações, incluindo as aglomerações de Ipiranga, Mooca e Brás, foi de cem mil pessoas. À noite, ainda houve nova marcha, organizada pelo Centro Acadêmico XI de Agosto e outras entidades acadêmicas. Clima talvez nunca mais visto, nem em título de Copa do Mundo.

Nestor

Todos querem enfrentar os Reis do Futebol, e já depois do retorno aos confrontos paulistas, cujo campeonato havia começado em abril, o clube marcou um amistoso contra o Fluminense, nas Laranjeiras, como agradecimento pela recepção na volta e apoio durante a viagem. Com renda recorde de 80 contos de réis e 25 mil pessoas presentes, Araken garantiu a vitória por 1 a 0 para os paulistas, mas o melhor em campo foi o goleiro Nestor.

O jovem arqueiro completou 18 anos no Atlântico, e precisou ser emancipado para viajar à Europa. Ele havia jogado o Campeonato Paulista de 1924 pelo São Bento, mas se destacou mesmo no Paulistano e, posteriormente, no São Paulo.

Fernando Foz, sobrinho-neto do goleiro Nestor, apontando o joelho lesionado do tio em quadro que estampa o centro de memória do Paulistano. [crédito: Paulo Junior/SARRIÁ]

"Ele me levava todo sábado para ver a construção do Morumbi. Lembro da primeira vez que fui até lá, o terreno tinha acabado de passar pela terraplanagem, e ele mandou eu ir andando atrás dele num pedaço de madeira, aqueles de obra. De repente ele gritou: agora para! Está vendo? Aqui vai ser o meio-campo do nosso estádio”, narra Luiz Foz, sobrinho-neto de Nestor, que também recebeu a SARRIÁ na sede do Paulistano.

Por conviver com o avô da infância, nos anos 1950–60, até a morte do ex-goleiro, em 1992, Luiz tem diversas referências do futebol da época. Segundo ele, o tio elogiava muito Friedenreich, que para ele era do mesmo nível de Pelé; Araken, jogador que num Choque-Rei dos anos 1970 foi comparado por Nestor com o palmeirense Leivinha; e Bartô, zagueiro, líder e referência naquela viagem de 1925.

Amigo de são-paulinos ilustres como Gino e Poy, também tinha muita admiração por Bellini e Roberto Dias. Gostava ainda de ver o meia Prado jogar, além do ponta Canhoteiro.

“Ele acompanhou futebol a vida toda, principalmente sentando na mesma cadeira ali na numerada vermelha do Morumbi, um pouquinho à direita do campo, onde encontrava outros ex-jogadores. Gostava de entrar bem cedo, a uma hora do jogo, e ficar olhando o campo. Eu cheguei a vê-lo chorar num empate contra o Corinthians que praticamente tirou um título paulista do São Paulo”.

O amor pelo clube tricolor se deu na transição de Paulistano para São Paulo. Nestor defendeu o primeiro até o fim da história da camisa, que encerrou o departamento de futebol após o estadual de 1929, e fez parte do grupo de jogadores que fundaria o São Paulo Futebol Clube e estreou com o novo time em 1930, na companhia, por exemplo, de Bartô e Fried, amigos da viagem de cinco anos antes. Último goleiro do Paulistano, primeiro goleiro do São Paulo, portanto.

Da viagem, Nestor também levou, por acaso, uma companheira de uma década. A camareira do hotel em Lisboa, que se infiltrou escondida no navio dos brasileiros para tentar uma nova vida na América, viveu com o goleiro e inclusive o viu encerrar precocemente a carreira, depois de apenas 35 jogos pelo novo time. No primeiro dia de maio de 1931, uma dividida com um atacante do Palestra Itália lhe rendeu uma lesão no joelho que o fez pendurar as chuteiras.

Não houvesse a briga entre cariocas e paulistas — só jogadores do Rio de Janeiro foram chamados –, Nestor teria ido à Copa do Mundo de 1930, no Uruguai, assim como Friedenreich e Clodô, remanescentes do Paulistano e então atletas do São Paulo. Quem foi, por uma confusão contratual que ainda não o colocava como atleta de clube algum após deixar o Santos, foi Araken Patusca, único representante de fora dos times do Rio. E o primeiro brasileiro a vencer uma Copa seria Filó, um dos destaques da excursão, que em 1931 seguiu para a Lazio já como Amphilóquio Guarisi e fez parte do elenco italiano campeão mundial em 1934.

Se bem que, pelo que ainda reverbera no Jardim América, os primeiros campeões do mundo foram aqueles do navio Zeelandia. Se registros contam que “nunca mais se fez uma recepção igual”, nem em 1958 ou 1962, não custa acreditar.

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Paulo Silva Jr

jornalismo, futebol, cinema, literatura, enfim, cascatas.