O Nascimento das Primeiras Universidades Europeias

Paulo Vítor Antonini Orlandin
11 min readFeb 4, 2023

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1. A Importância do Renascimento Urbano para a Formação do Intelectual

Com o renascimento urbano do século XII surge uma nova figura entre os ocidentais, um homem cujo trabalho é escrever ou ensinar, que trabalha com a mente, ou seja, surgem os intelectuais. A figura do intelectual surge com as primeiras cidades, sendo como mais um homem de ofício. A princípio estes profissionais utilizavam os antigos como materiais de pesquisa copiando-os, ou seja, não contestavam suas ideias, apenas as reproduziam.

Alain de Libera, em seu livro, Pensar na Idade Média, diz que o intelectual medieval não apenas se limitava a reproduzir os antigos, mas que também questionavam e produziam novos conhecimentos. Com o potencial comercial, que foi proporcionado pelas cidades, chegam os primeiros manuscritos antigos ao ocidente cristão, abastecendo assim estes homens de saber. As regiões da Itália e da Espanha foram de grande importância para esta troca de saber, pois o contato com o povo árabe, detentor desses manuscritos, era mais intenso nestas regiões. A redescoberta dos livros de Aristóteles e a incorporação da filosofia grega na teologia e na filosofia cristã colaboraram muito para esta expansão de conhecimento.

Segundo Jacques Le Goff, um fator importante para a disseminação do conhecimento, é devido ao fato de os livros saírem dos mosteiros e chegarem até as universidades. Outros fatores que também contribuíram foram: a diminuição do seu formato, o inicio do uso de letras maiúsculas e minúsculas, perda do luxo e mudanças para que o livro seja feito de forma mais prática.

“Aliás, ele não tem como instrumento apenas o seu espirito, mas também seus livros, que são seus instrumentos de trabalho. Graças a estes, ele se afasta do ensino oral da Alta Idade Média.”

Para Verger, durante os séculos XII e XIII, houve um progresso simultâneo nos saberes e nas instituições de ensino. Isso se deve graças ao surgimento de escolas urbanas, que acabaram por aumentar o nível de conhecimento geral da população cristã. Le Goff diz que é durante século XIII que essas ideias amadurecem e se afirmam dentro das Universidades, que vão se disseminando por várias regiões da Europa.

“Resta a esses artesãos do espirito, engendrados no desenvolvimento urbano do século XII, organizarem-se dentro de um grande movimento corporativo, coroado pelo movimento comunal. Essas corporações de mestres e estudantes serão, no sentido estrito da palavra, as universidades. Esta será a obra do século XIII.”

2. A Expansão Universitária no Século XIII

Segundo Verger, o século XIII se caracteriza pela expansão e afirmação das Universidades por toda a Europa, se destacando principalmente as universidades de Cambridge, Oxford, Bolonha e Paris. Com exceção de Bolonha, as outras universidades sofreram forte influência dos franciscanos. Além dessas, também foram criadas várias universidades como Chartres, Reims, Montpellier, Tolouse, Salerno, Pádua, Nápoles, Toledo, Palencia, León, Salamanca, Coimbra, etc. Apesar de possuírem estatutos próprios, todas elas estavam de alguma forma sob o domínio do papa ou do rei. A exceção é novamente Bolonha, onde professores e estudantes conseguiram manter sua autonomia por algum tempo. Devido a influência exercida pelo papa ou pelo governo local, o conteúdo ensinado nessas universidades era controlado, ocorrendo com frequência interferências do rei, príncipe ou papa na tentativa de controlar o conteúdo produzido por professores e alunos. Muitas vezes os interesses de ambos os lados entravam em conflito, fazendo com que um dos lados defendesse a universidade da tentativa de controle do seu adversário. Cada universidade possuía seu próprio estatuto, garantindo assim monopólio na concessão de graus universitários e autonomia jurisdicional. Eram compostas por uma pequena elite, pois a maioria dos frequentadores eram pessoas ligadas à Igreja e a pessoas de poder.

Para Jacques Le Goff, o intelectual desta época tem o objetivo de alcançar o poder por meio da educação, que os estudos florescem com o objetivo de formar homens para administrar o estado. Alain de Libera não recusa que o intelectual vise o poder, que haja uma associação entre poder e saber, mas defende que a universidade foi um lugar da produção do saber também.

“[…] os homens do século XIII percebiam o ensino como uma atividade autônoma e um verdadeiro poder que contribuía para a animação do corpo social, que eles concebiam por outro lado, como sendo indissociavelmente ligado aos poderes politico e eclesiástico, com a Igreja e o Estado, o Papa e o príncipe.”

O nascimento das universidades foi consequência de dois fatores: o primeiro se deve a uma mudança de mentalidade, que levou alunos e professores a se empenharem pela sua afirmação. O segundo fator foi o forte apoio da Igreja, que por meio de concessões, privilégios, apoio material e até mesmo isenções fiscais, auxiliou muito a luta dos scolares contra alguns poderes estabelecidos. Este apoio da Igreja não era atoa, pois as autoridades superiores da cristandade esperavam obter retorno das universidades. Esses retornos poderiam ser de várias formas, como a teologia escolástica, que possibilitava à Igreja técnicas argumentativas e argumentos para combater os hereges e transmitir de forma mais clara seus ideais aos fiéis. Além disso, também tinham interesses em administradores e juízes para fazer os julgamentos, pois os tribunais de oficio estavam surgindo. Os príncipes também tinham grande interesse nos universitários, pois eram eles que faziam o papel de secretários, redigindo cartas e armazenando arquivos do Estado, e de juízes, para manter a justiça de forma correta e rápida.

3. As Universidades Francesas

A universidade de Paris foi uma das primeiras corporações a serem formadas, servindo de modelo para as demais. Surgiu em 1170, composta pela escola da catedral de Notre-Dame, com o título de Studium Generale, formando-se por meio de uma federação de mestres e escolas autônomas. Na França era comum a existência de escolas vinculadas as catedrais, podendo o bispo controlar o ensino e a nomeação de professores.

Segundo Verger, devido ao crescente número de alunos a estrutura da escola de Notre-Dame passou a ser insuficiente para atender a demanda, fazendo assim, com que os professores fossem instruídos a criar novas escolas ao redor. Posteriormente, estes professores, no intuito de defenderem seus interesses, começaram a se unir, formando corporações. Foi com base nesta organização que surge o cargo de Reitor, cujo objetivo era o de transmitir as decisões tomadas pela corporação à Igreja e ao governo. Os interesses mútuos destas escolas foram as aproximando, culminando com a criação de escolas maiores.

A universidade de Paris recebeu grande apoio da Igreja, tornando-a um importante centro de ensino teológico cristão. As ordens mendicantes Franciscana e Dominicana exerceram grande influencia no ensino em Paris.

Em Paris o estudo das Artes era considerado obrigatório, apenas após a conclusão deste curso o estudante poderia escolher entre se especializar em Medicina, Teologia ou Direito. Após completar o curso de Artes o estudante recebia aulas sobre lógica, tópicos de Aristóteles, gramática de Prisciano e Donato, além do trivium e quadrivium, que era composto por música, astronomia, retórica, gramática, aritmética, geometria e dialética.

No sul da França o processo ocorreu de forma mais lenta, pois a rede escolar era muito frágil. Seu funcionamento era muito irregular, com professores se ausentando muito devido a viagens ou alternando períodos de ensino e períodos em que se voltavam mais à prática. Para Verger este processo se deu de forma mais lenta não por um atraso cultural regional, mas sim pela existência de muitas escolas e da proximidade com a Itália, satisfazendo então, os anseios locais por muito tempo.

Com o passar do tempo, as escolas de cidades como Toulouse e Montpellier adquiriram certa estabilidade, além de se tornarem mais numerosas, tornando possível o que Verger chama de “fenômeno de cristalização institucional”. Isso aliado ao apoio da Igreja ou do governo local acabou por culminar o surgimento das universidades.

4. As Universidades Italianas

Muitas universidades italianas, diferentemente das francesas, eram apoiadas pelo governo, ou seja, eram seculares. Este forte apoio se devia à necessidade que a burguesia urbana tinha de pessoas preparadas para assumir cargos administrativos. Exceto Bolonha, para Verger, as demais universidades italianas surgiram de duas formas: a primeira responsabiliza as secessões de estudantes e mestres de Bolonha, gerando assim uma migração e criação de outras universidades em novas cidades. A segunda responsabiliza o imperador Frederico II, que apoiou muito algumas universidades. O problema desta segunda forma é que nunca alcançou uma autonomia suficiente, fazendo com que impedissem de se desenvolver plenamente.

Outra diferença entre esses dois modelos vem da formação da universidade. O modelo bolonhês, por exemplo, se origina com o movimento e a organização de estudantes. Toda a sua estrutura é comandada por estudantes, dominando inclusive a corporação dos mestres, decidindo métodos de ensino, salário e até multando mestres por não comparecerem as aulas. Os mestres, por sua vez, também se organizavam em collegia doctorum, cujo trabalho era conferir licenças e doutorados e preparar os exames. Além disso, o prestigio que os mestres possuíam eram uma forma de adquirirem respeito perante os alunos.

“É de fato entre os estudantes que é preciso buscar a origem do movimento que levou ao nascimento da universidade propriamente dita, o que explica que ela tenha tomado ali a forma original de uma “universidade de estudantes” (universitas scolarium) e não, como em Paris, de uma federação de mestres e de escola autônomas.”

Para se proteger de uma população hostil e de magistrados desconfiados, já que as leis locais não protegiam os estrangeiros, os estudantes que estavam em Bolonha passaram a se organizar em nações. No inicio do século XIII estas nações se dividiam em duas, os Citramontanos, que era composto por nações italianas, e dos Ultramontanos, composta por nações não italianas. Segundo Verger, o número de nações variou até se fixar em treze nações ultramontanas (francesa, inglesa, borgonhesa, alemã, catalã, espanhola, húngara, normanda, da Picardia, do PoitouGascogne, provençal, da Touraine e polonesa) e três italianas (toscana, lombarda e romana).

As universidades, conforme vão ganhando mais importâncias, buscam cada vez mais autonomia na organização de seu ensino, deixam de se contentar com a simples tarefa de defender os estudantes e passam a organizar os estudos.

Para a Igreja, Bolonha sempre foi um reconhecido local na formação de juristas, sendo que os melhores canonistas da Cúria Romana vinham das escolas de Bolonha. Em 1219, o papa Honório III concedeu a essas escolas o sistema licentia docenti, sendo de fundamental importância esta intervenção da Igreja para a afirmação da universidade.

Foi entre 1224 e 1250 que a universidade de Bolonha se tornou uma instituição estável. Nesse período a Igreja, a Comuna, os estudantes e os mestres estavam em conflito com o imperador Frederico II que tentava acabar com as escolas de Bolonha para fortalecer o studium que tinha acabado de criar na cidade de Nápoles. Foi esta união que possibilitou a estabilização da universidade. Em Bolonha, ao contrário de Paris, a dialética, a filosofia e a teologia não tinham uma importância essencial, davam muito mais importância a um aprendizado prévio em uma universidade de Artes. Por fim, a faculdade de Teologia, que era a principal disciplina em Paris, não encontrou seu espaço em Bolonha.

Além de Bolonha outras universidades também surgiram na Itália ao longo dos séculos XII e XIII. Este é o caso de Pádua, que surgiu com a migração de mestres e estudantes de Bolonha, culminando com a formação de uma nova universidade. Inicialmente Pádua teve um começo excepcional, obtendo bons resultados, mas que não duraram muitos anos devido ao aparecimento de algumas dificuldades. Muitos estudantes voltaram para Bolonha, outros se deslocaram para outras cidades, deixando assim, a universidade de Pádua fragilizada. Posteriormente, com o apoio da Comuna, Pádua volta a crescer, e durante os séculos XIV e XV chega ao seu apogeu.

Outra universidade foi a de Nápoles, criada pelo imperador Frederico II no intuito de criar para o seu reino homens preparados para ajudar a administrar a justiça. Dessa forma, o poder público substituía por completo o poder da Igreja. Para atrair estudantes, Frederico II oferecia riquezas, carreiras brilhantes, facilidades de crédito, preço dos alugueis e alimentos fixos, etc. Em troca ele proibia seus estudantes de se transferirem para outras universidades, principalmente a de Bolonha. Segundo Verger, essa universidade se caracterizava pela ausência de uma organização corporativa de estudantes e mestres, mostrando que ambos quase não tinham representatividade. Por fim, a universidade de Nápoles quase fracassou, pois sua falta de autonomia e preocupação excessiva em formar funcionários, aliados a fraca cultura escolar do sul e a expansão das escolas do norte, acabou por atrasar muito o seu avanço.

5. As Universidades Ibéricas

Para Verger, o inicio das universidades ibéricas se deu graças ao investimento politico dos reis. Verger diz que as instituições ibéricas se caracterizam por terem um caráter nacionalista, focando seu recrutamento em estudantes locais. Por volta de 1180 o rei de Castela, Afonso VIII, criou uma escola de Direito na cidade de Palencia. Após ter sido fechada em 1215, o bispo Telo Téllez teve a iniciativa de recriá-la sob a forma de uma universidade nos moldes parisienses. Esta iniciativa não deu certo, pois a cultura local não se adaptava a esta forma de ensino diferente. Outro exemplo foi o studium criado em Salamanca pelo rei Afonso IX, que posteriormente se tornou uma universidade de prestigio, recebendo ajuda de reis de Castela e até do Papa. Pelo fato de ser uma universidade gerada por reis, sua autonomia era muito limitada, mas mesmo assim, caracterizando uma universidade.

Nos reinos de Portugal e Catalunha também foram criadas universidades nos mesmos moldes que os de Castela. Ambas foram criadas, respectivamente, pelos reis Diniz I e Tiago II de Aragão, sendo então eles os responsáveis por prover os privilégios aos estudantes. Posteriormente o Papa enviou uma bula de confirmação, oficializando essas instituições como universidades.

6. As Universidades Inglesas

Durante todo o século XII os estudantes ingleses optavam por migrar para a universidade de Paris, fragilizando muito as escolas locais. Este quadro mudou no fim do século XII com a criação de escolas privadas de Artes, Teologia e Direito na cidade de Oxford. Após um incidente, onde os burgueses da cidade executaram três estudantes por um caso de assassinato, mestres e estudantes se dispersaram voluntariamente de Oxford. Apenas em 1214, por exigência de um legado pontifical que estava em viagem, que as escolas puderam voltar com mais garantias e benefícios como: preço dos alimentos e dos aluguéis fixos e privilégios judiciários. Durante o século XIII essas escolas já possuíam autonomia suficiente para serem caracterizadas como universidades. Sua organização lembrava a de Paris, com uma federação e escolas e com alunos organizados em nações (Meridionais ou Australes e Setentrionais ou Boreales). Segundo Le Goff, intelectualmente a universidade de Oxford também se assemelhava a de Paris, sendo a faculdade de Teologia a mais importante. Somente durante o século XIII foram criados os cursos de Medicina e Direito civil e canônico.

Outra característica marcante da universidade de Oxford é o seu caráter nacional, sendo a maioria de seus estudantes ingleses.

“[…] era uma universidade dinâmica, próspera, muito autônoma, com instituições solidas que exerciam um papel importante na sociedade politica e eclesiástica inglesa pois dali já saíam, naquele momento, uma boa parte tanto dos bispos ingleses quanto dos homens de lei do entourage do rei.”

Já a universidade de Cambridge surgiu por meio da dispersão dos estudantes e mestres de Oxford que se estabeleceram ali. Seguia os mesmos moldes da universidade de Oxford, embora suas escolas fossem tão antigas quanto.

Conclusão

As transformações culturais, politicas, econômicas e sociais dos séculos XII e XIII proporcionaram uma grande mudança de mentalidade na população europeia ocidental. Mudança esta, que acabou culminando com a criação das escolas e posteriormente das universidades. A criação e expansão das universidades na Europa possibilitaram a disseminação do raciocínio lógico e crítico, que nos séculos seguintes influenciaram o Renascimento e o Iluminismo. Por fim, concluímos que as universidades foram uma das realizações mais importantes da Idade Média, influenciando e modificando toda uma forma de raciocínio da Europa e posteriormente do mundo.

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