Um criminoso contumaz na imprensa
No último dia 10 de novembro, a Folha de São Paulo publicou uma coluna de Jair Bolsonaro intitulada “Aceitem a Democracia”. Não bastasse o tom imperativo do título, no texto ele apresenta sua visão reacionária do conceito de democracia e defende, mais uma vez, a anistia aos golpistas do 8 de Janeiro:
“Nada consegue conter a onda conservadora. Nem a censura, nem os cancelamentos, nem as perseguições policiais e as longas, arbitrárias e injustas prisões. A resistência da direita têm uma razão muito simples: nossas bandeiras, mesmo sob ataque dos veículos de comunicação, expressam anseios mais profundos da maioria da sociedade.”
Dias após a publicação da coluna, a Polícia Federal tornou pública a investigação que indiciou Bolsonaro, Braga Netto e outros 35 participantes — entre eles vinte e cinco militares, cinco generais e o ex-comandante da Marinha, Almirante Almir Garnier Santos — por tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de Golpe de Estado e organização criminosa. Segundo a PF, os indiciados planejaram, entre outras coisas, o sequestro e assassinato do presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva, do vice-presidente eleito Geraldo Alckmin e do então presidente do TSE e ministro do STF Alexandre de Moraes, além de um quarto alvo não identificado.
O relatório final foi entregue pela PF ao Procurador Geral da República Paulo Gonet, que vai decidir se apresenta as denúncias ao STF. Se condenado, Bolsonaro pode pegar quase 30 anos de prisão. Entre outros indiciados também estão o general Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o ex-ministro da Defesa general Paulo Sérgio Nogueira, Alexandre Ramagem, líder da ABIN no governo Bolsonaro e atual deputado federal pelo Rio de Janeiro, Valdemar da Costa Neto, presidente do PL e o ex-ministro da Justiça Anderson Torres.
Em reação, um Flávio Bolsonaro bastante franco deu o tom da defesa dos bolsonaristas: “Não é crime planejar matar alguém”. Jair e seus comparsas, no entanto, não são julgados pelo crime de homicídio. Como Rafael Mafei escreveu na Revista Piauí:
“O senador disse que “pensar em matar” alguém ou cogitar um golpe não é crime. Mas os radicais do Planalto fizeram bem mais do que isso. Bolsonaro não foi indiciado por ter confessado a Michelle, na intimidade do leito matrimonial, seu desejo secreto de destruir a democracia. Foi indiciado porque mobilizou todos os poderes de que dispunha — sobre seus seguidores, seus aliados e sobre o governo — para promover um golpe de Estado. Colocou militares de elite em treinamento e mobilizou apoiadores para criar um ambiente favorável a uma ruptura. Falhoumas sem dúvida agiu.”
James Hermínio Porto, mestre em Direito, em texto publicado na Jacobin Brasil, explica:
“O Código Penal (artigos 359-L e 359-M) tipifica como crime a tentativa de golpe de Estado e deposição de governo legitimamente constituído, por meio de violência ou grave ameaça. Atentemos ao verbo contido nos dispositivos legais: “tentar”. (…) “Tentar” é o único verbo possível para este tipo de crime, e não é pouca coisa. (…) Se os golpistas tivessem conquistado o poder, o ministro Alexandre de Moraes não seria o juiz, mas o preso. O acusado está na posição que está por ter falhado em ser carrasco.”
Em um chocante documento apreendido pela PF, denominado “Punhal Verde e Amarelo”, os golpistas discorreram o passo-a-passo do plano de assassinato dos líderes políticos, que incluía a participação de forças de operações especiais do exército — os “kids pretos”. A PF aponta o general de exército Mário Fernandes como autor do documento. Ainda segundo a PF, o plano do golpe teria sido impresso no Palácio do Planalto — sede do executivo — e depois levado até o ex-presidente Bolsonaro na residência oficial no Palácio do Alvorada. Dias depois, o plano foi discutido e aprovado na casa do candidato à vice de Bolsonaro, general Braga Netto. O depoimento do ex-ajudante de ordens de Jair, tenente-coronel Mauro Cid, além dos dados de localização dos celulares dos golpistas, corrobora com a tese de que o documento foi analisado e debatido tanto por Bolsonaro quanto por Braga Netto.
Dias após as reuniões, a suposta organização criminosa colocou em prática o plano do sequestro e assassinato de Alexandre de Moraes, com o monitoramento de funcionários da segurança pessoal do ministro. Os criminosos obtiveram chips de celular em nomes falsos, como tentativa de não serem indentificados. Dentre as armas que supostamente seriam utilizadas na operação constam uma metralhadora, um lança-granadas e um lançador de foguetes anti-tanque.
Finalmente, no dia 15 de dezembro de 2022, os “kids pretos” se comunicaram através de um aplicativo de mensagens, organizando a tentativa de sequestro de Moraes. Na operação — intitulada “Copa 2022” — os golpistas se posicionaram em locais estratégicos do trajeto diário do ministro, entre eles seu apartamento funcional e o STF. Utilizando codinomes, eles trocaram mensagens afirmando estar a postos para dar sequência à operação, mas às 21h57 porém, o plano foi abortado, possivelmente pelo adiamento da sessão do STF da qual participaria o alvo do crime. Nas mensagens interceptadas pela PF, alguém identificado com “Áustria” disse: “Tô perto da posição. Vai cancelar o jogo?”. Ao que o interlocutor, identificado “teixeiralafaiete230”, responde: “Abortar… Áustria, volta para local de desembarque… Os militares, entretanto, esqueceram-se de alterar os próprios nomes no aplicativo, abrindo caminho para a identificação pela PF.
Além de Moraes, Lula também foi alvo de monitoramento ilegal que contou inclusive com a participação do policial federal Wladimir Soares, que fazia parte de sua equipe de segurança. Os suspeitos tinham informações sobre trajetos diários e as armas que os seguranças do presidente eleito portavam.
A PF também encontrou um documento relevante na mesa de um assessor de Braga Netto: a “Minuta do Golpe”, texto que detalha, ponto a ponto, os instrumentos jurídicos que serviriam de base para o golpe e que teria sido apresentada a Bolsonaro por seu Assessor para Assuntos Internacionais Filipe Martins e pelo advogado Amauri Saad. O ex-presidente teria feito alterações no texto, conforme confirmou Mauro Cid em delação, e apresentou algumas versões aos chefes das Forças Armadas. A minuta descreve os dispositivos institucionais e o verniz de legalidade que pretendiam dar à intentona.
A minuta visava — entre outras ações golpistas — anular as eleições de 2022, prorrogar seus próprios mandatos, substituir todos os membros do TSE, organizar novas eleições, preparar as tropas para ações diretas e anular atos considerados arbitrários pelo STF, além de abordar temas como o enquadramento jurídico do decreto 142, a convocação dos Conselhos da República e da Defesa, a mobilização de juristas e formadores de opinião pública e a interrupção do processo de transição. O objetivo era impedir, a todo o custo, que Lula assumisse a presidência: “ladrão não sobe a rampa”.
Um adendo importante sobre o artigo 142: diferentes juristas ligados ao bolsonarismo fizeram uma interpretação do artigo como se os militares tivessem um suposto poder moderador sobre os demais poderes da república. O jurista Ives Gandra Martins é um dos notórios apoiadores dessa teoria e teve importante papel na sua disseminação. Especialistas — os eticamente responsáveis — discordam frontalmente dessa tese, cuja interpretação exótica já foi julgada inconstitucional pelo STF.
Um outro documento encontrado pela PF versava sobre o que seria um “Gabinete Institucional de Gestão da Crise”, a ser chefiado pelos generais Augusto Heleno e Braga Netto. Vale recordar que no Golpe Civil-Militar de 1964 os golpistas também prometiam “restabelecer o processo democrático”. O que se seguiu foram 21 anos de ditadura, graves violações de Direitos Humanos e perseguições políticas.
A PF acredita que Bolsonaro era o líder da organização criminosa que planejou e praticou atos que pretendiam dar um golpe de Estado e abolir o Estado Democrático de Direito. As provas da participação de Bolsonaro e Braga Netto são fartas: em trocas de mensagens com o ex-comandante do exército, Mauro Cid admite que Bolsonaro não apenas sabia do plano como teve autoria intelectual sobre o mesmo: “Ele enxugou o decreto… Aqueles considerandos que o senhor viu, ele enxugou e fez um decreto muito mais resumido.” A informação foi confirmada pelos então comandantes do Exército e da Aeronáutica, que se disseram contrários à intentona. Já o comandante da Marinha Almirante Almir Garnier foi um efusivo apoiador.
A Intentona Bolsonarista ainda tentou cooptar o chefe do Comando de Operações Terrestres, general Theophilo, que anuiu ao golpe. Mas a negativa de dois dos três comandantes das forças é vista pela PF como o fator crucial para a não concretização do plano. Não esqueçamos, porém, que constitucionalmente, não bastava apenas aos chefes das forças recusarem o golpe, mas sim prender Bolsonaro.
Diante da recusa, os apoiadores do golpe produziram uma “Carta ao Povo Brasileiro”, cujo objetivo era pressionar o Alto Comando que não aderiu ao golpe e incendiar ainda mais os golpistas que acampavam em frente a diversos quartéis pelo país:
“…estamos atentos a tudo que está acontecendo e que vem provocando insegurança jurídica e instabilidade política e social no país. Os integrantes da Força Terrestre sempre estarão prontos para cumprir suas missões. Os Soldados de Caxias estão dispostos a enfrentar as adversidades… O Exército nunca abandonou o povo e nunca o fará! Nossa nação entrega os maiores índices de confiança às Forças Armadas e sabe que seus militares não a abandonarão. Lutaremos sem temor pela Pátria amada e, assim, “verás que um filho teu não foge à luta”.
Muitos dias de silêncio após a derrota nas urnas, Jair disse aos apoiadores em frente ao Palácio do Planalto: “Tenho certeza que uma das minhas funções constitucionais é ser o Chefe Supremo das Forças Armadas. Eu sempre disse que as Forças Armadas são o último obstáculo para o socialismo. As Forças, tenho certeza, estão unidas e devem, assim como eu, lealdade ao nosso povo e respeito à Constituição, mas hoje elas estão em uma encruzilhada… Quem decide o meu futuro são vocês! Quem decide para onde vão as Forças Armadas são vocês… Nada está perdido. Ponto final. Dou a minha vida pela minha pátria. Quando eu falo em vida é a vida física.”
Fatos e provas parecem transformar, cada vez mais, as palavras de Jair em pó. Mesmo assim, o homem que, segundo a PF, planejou um golpe de Estado que envolvia o assassinato de figuras públicas democraticamente eleitas, ainda tentou esquivar-se em sua coluna na Folha: “A moda agora é nos acusar de inimigos da democracia. Mas quem tem dificuldade em aceita-la é a esquerda, estes se apresentam como salvadores da democracia, uma democracia que pisoteiam quando podem.”
O furor golpista de Jair começou bem antes das eleições de 2022. Desde 2018, ele já organizava ataques às urnas eletrônicas, mentia ao dizer ter havido fraude no primeiro turno e fazia ataques sistemáticos à lisura e à higidez do processo eleitoral.
Em 2022, ele torrou mais de R$ 300 bilhões em benesses a políticos aliados e, vale recordar, no dia da votação mobilizou a Polícia Rodoviária Federal, comandada por Silvinei Vasques, para impedir que eleitores do Nordeste, tradicional reduto petista, votassem. Tudo para tentar ser eleito. Não conseguiu!
E como não conseguiu, colocou — ou tentou colocar — em ação o seu “plano B”. Os acampamentos ganharam fôlego e se tornaram verdadeiras incubadoras de crimes. No dia 12 de dezembro, dia da diplomação de Lula, os golpistas iniciaram um quebra-quebra generalizado em Brasília, com ataques à sede da PF e a tentativa de explodir um caminhão-tanque cheio de combustível nas imediações do aeroporto da cidade.
A PF acredita que a tentativa de golpe comandada por Bolsonaro não terminou com a operação frustrada de sequestrar e matar as autoridades, mas culminaram finalmente na intentona do 08 de janeiro. A corporação trata os inquéritos das milícias digitais, das joias sauditas, da falsificação do certificado de vacinação e, por fim, da tentativa de golpe, como inter-relacionados.
O inquérito das milícias digitais, identificou um núcleo de divulgação de notícias falsas contra as urnas. Os casos das joias e do certificado de vacinação desvelaram a tentativa de Jair reunir meios e fundos para se manter nos EUA, numa espécie de fuga preventiva, até que o golpe se consumasse.
A atuação de Mauro Cid na falsificação do certificado o levaram para a prisão. As joias que o ex-presidente tentou tomar para si foram avaliadas em mais de R$ 5 milhões. Segundo a PF, estavam envolvidos nas tentativas de venda e recompra das joias o advogado pessoal do presidente Frederick Wassef, Mauro Cid e seu pai, o general da reserva Mauro Lourena Cid, cuja descoberta da participação na trama foi vital para que o acordo de delação premiada fosse firmado pelo filho com a PF meses depois.
A trama golpista de Jair culminou na tentativa de tomada de poder de 08 de janeiro. Os eventos em Brasília marcaram um ataque direto às instituições democráticas do Brasil. A mobilização dos manifestantes — que culminou com a invasão da sede dos Três Poderes da República — foi amplamente planejada através de redes sociais e aplicativos de mensagens. Termos como “festa da Selma” eram usados para se referir aos ataques, e havia convocações explícitas para ações violentas. Muitos dos participantes chegaram a Brasília em ônibus fretados por apoiadores e empresários ligados ao movimento. Outros 5.000 estariam acampados em frente ao Quartel-General do Exército. Deste acampamento saíram os autores do atentado terrorista que pretendia explodir o caminhão-tanque no aeroporto de Brasília. A bomba foi descoberta pelo motorista, que avisou a polícia. Os criminosos admitiram que planejaram o atentado no acampamento.
Estima-se que cerca de 3.900 pessoas participaram do atentado, sendo que 103 ônibus foram contratados para transportar os manifestantes. Os atos começaram por volta das 14h. Multidões se concentraram na Esplanada dos Ministérios e avançaram rumo ao Congresso Nacional, ao Palácio do Planalto e ao STF, causando destruição massiva. As forças de segurança presentes não conseguiram conter os manifestantes, gerando críticas sobre a resposta policial e falhas no esquema de segurança. Ficou evidente a conivência das forças policiais com os terroristas.
Por volta das 18h, forças federais começaram a retomar o controle, e mais de 300 pessoas foram presas ainda naquele dia. No dia seguinte, a contagem subiu para mais de 1.400. A PF identificou a participação de militares das forças especiais do exército na tentativa fracassada de golpe. Horas depois, o comandante do exército general Arruda diria para o chefe da Polícia Militar do DF, que tinha ordens para prender os criminosos: “Acho que minha tropa é um pouco maior que a sua”, em evidente defesa dos golpistas. Em certo momento, chegou a posicionar sua tropa contra a PM. No dia seguinte, mais prisões foram feitas e os terroristas foram transferidos até a sede da PF em Brasília.
Questionado a respeito, Jair disse:
“Quem vai dar golpe com um general da reserva e 4 oficiais superiores? Pelo amor de Deus… Cadê a tropa? Cadê as Forças Armadas? Não fique botando chifre em cabeça de cavalo”.
Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, por sua vez, contemporizou: “Há uma narrativa disseminada contra o presidente Jair Bolsonaro e que carece de provas.”. O herdeiro do bolsonarismo e visto como provável candidato a presidente em 2026 talvez não tenha lido o relatório final de mais de 800 páginas da PF sobre inquérito. Visto e vendido como moderado, ele é recordista de demonstrações de desprezo pela vida, especificamente nos casos das Operações Escudo e Verão.
Marcelo Semer, doutor em Direito Penal e desembargador de Justiça em São Paulo, escreveu sobre a postura da imprensa sobre Bolsonaro, ainda em fevereiro deste ano:
“Jornais e TVs foram os primeiros a se engalanar de forma acrítica com os arbítrios da Lava Jato e saudaram, como prova do vigor da democracia, a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com base em delações. Agora, quando a acusação contra Jair Bolsonaro se refere a crimes contra a democracia em si mesma, fruto de seus próprios discursos e reuniões, a grande mídia ressalta prudência, insinua vingança e questiona frontalmente a legalidade dos atos do STF.”
A Folha pode usar o argumento da diversidade de opinião, a favor da decisão de ceder o espaço a Jair. Dirá que o plano de golpe ainda não havia sido tornado público na data da publicação da coluna, e portanto, a crítica à sua divulgação não se justificaria. O golpismo de Bolsonaro, contudo, não era desconhecido. Tampouco seu desprezo pelos Direitos Humanos e pela vida.
Ele já disse duas vezes que só não estuprava uma colega parlamentar por que ela não mereceria. Homenageou, ao votar a favor do impeachment de Dilma Rousseff, o notório torturador Brilhante Ustra. Já defendeu o assassinato de Fernando Henrique Cardoso e uma guerra civil. Repetiu várias vezes que: “o erro da ditadura foi torturar e não matar” e que era a favor da tortura. Em resposta aos casos de desaparecimento político, declarou que “quem procura osso é cachorro”. Durante a eleição de 2018, prometeu “fuzilar a petralhada” e banir os “marginais vermelhos” da pátria.
Durante a pandemia da Covid-19, Jair se soltou. No dia 20 de março de 2020, comparou a Covid à uma “gripezinha”. Seis dias depois, disse: “Brasileiro pula em esgoto e não acontece nada…”. A certa altura, quando o Brasil tinha 2.500 mortos, Bolsonaro declarou: “Não sou coveiro, tá?”. Oito dias depois, em 28 de abril: “E daí, lamento. Quer que eu faça o que?”. Nesse intervalo de tempo, o número de mortos saltou para mais de 5.000. Jair continuou destilando seu desprezo pela vida. Em 02 de junho, 31.000 mortos: “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. Meses depois, em 10 de novembro e com 163.000 mortos, pediu pro Brasil deixar de ser um “país de maricas”. Em 17 de dezembro, e com 185.000 mortos, fez declaração anti-vacina: ““Se tomar vacina e virar jacaré não tenho nada a ver com isso”. Continuou em janeiro, com o número de mortos em 215.000, sobre a vacina coronavac: “Não está comprovada cientificamente”. Em março, continuou o ataque: “Vai comprar vacina só se for na casa da sua mãe” e “chega de frescura e mimimi”. O número de mortos estava em mais de 260.000. Dois meses depois, quando a contagem chegou a 435.000, disse: “tem alguns idiotas que ficam até hoje em casa”. Em junho, declarou: “Nunca vi ninguém morrer por tomar hidroxicloroquina” e “Quem pegou o vírus está imunizado”. Os mortos chegavam a 500.000. Em setembro: “covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou semanas” Em janeiro de 2022, foi sincero quando perguntado dos mais 600.000 mortos pela pandemia de covid-19 no país: “Lamento profundamente, mas é um número insignificante”. Essas declarações exibem as vísceras do fascismo no pensamento ideológico bolsonarista. O Brasil é o segundo país com mais mortos pela covid no mundo, mais de 700 mil.
O relatório final da CPI da Covid estima que cerca de 400 mil mortes por COVID-19 no Brasil poderiam ter sido evitadas caso medidas adequadas de saúde pública fossem implementadas durante a gestão de Jair Bolsonaro. Essas mortes são atribuídas a diversas ações e omissões, como o atraso na compra de vacinas, a promoção de tratamentos ineficazes como a cloroquina, a falta de uma liderança central na crise, e a disseminação de desinformação sobre a pandemia, incluindo críticas ao uso de máscaras e o incentivo à “imunidade de rebanho” natural. O impacto da má gestão foi mais grave entre populações vulneráveis, como indígenas e pessoas de baixa renda. Além disso, o desestímulo à vacinação e o atraso na adesão às vacinas resultaram em aproximadamente 145 mil mortes evitáveis somente por questões relacionadas à imunização tardia. A CPI da Covid trouxe à tona o fato de que Bolsonaro ignorou pelo menos 100 tentativas de comunicação de empresas farmacêuticas que negociavam o fornecimento dos imunizantes. O relatório sugeriu o indiciamento de Bolsonaro pelos crimes de epidemia com resultado morte, infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento particular, emprego irregular de verbas públicas e prevaricação, de acordo com o código penal brasileiro; pelos crimes contra a humanidade nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos, de acordo com o Tratado de Roma; e ainda de dois outros crimes de responsabilidade.
Ainda assim, no último dia 29 de novembro, dias depois o inquérito do golpe ter se tornado público, uma vez mais a imprensa emprestou seu espaço para suas declarações em defesa de anistia aos golpistas: “Eu apelo aos ministros do STF, por favor, vamos partir para uma anistia”, implorou.
“Para pacificarmos o Brasil, alguém tem que ceder. Quem tem que ceder? O senhor Alexandre de Moraes. Em 1979, foi anistiado quem matou, soltou bomba, quem roubou, sequestrou avião… Vamos pacificar? Zera o jogo daqui para frente… Se tivesse uma palavra do Lula ou do Alexandre de Moraes no tocante à anistia, estava tudo resolvido. Não querem pacificar? Pacifica!”
A publicação da coluna de Jair derruba qualquer máscara de apreço à democracia que veste a imprensa. A postura reiterada de condescendência com o ex-presidente, mesmo depois dos diversos crimes cometidos, é prova cabal disso. Embora a liberdade de expressão seja um pilar fundamental em qualquer democracia, ela não deve ser usada para perpetuar discursos que ameaçam direitos básicos. Ao dar voz a um ex-presidente que não apenas fomentou uma visão antidemocrática e reacionária, mas também cometeu atos que resultaram em crimes contra a humanidade, a imprensa contribui para o enfraquecimento da democracia e dos Direitos Humanos como um todo.
Pedro de Castro é formado em Relações Internacionais pela PUC / MG