Web3 e o Estado de Direito

Pedro Helmold
5 min readDec 3, 2021

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Descentralização.

A lei é sobre disputa entre pessoas ou entidades sob uma autoridade legal. É como costumamos resolver conflitos em sociedade. Utilizamos um terceiro, a autoridade legal, o estado burocrático, como elemento de resolução de conflitos.

A ordenamento jurídico é a estrutura dessas disputas, ou seja, quais são as regras e como elas são aplicadas.

O estado de direito impõe que as entidades legais, quaisquer que sejam, não estarão acima do ordenamento. No entanto, há diversos grupos de interesse que manobram suas demandas com maior ou menos flexibilidade a depender da magnitude da sua influência. Ou seja, sob a lei, temos plena igualdade formal, apenas.

O estado de direito supostamente horizontaliza as relações possivelmente conflituosas entre as entidades legais, sob as mesmas regras.

Em um mundo ideal do estado de direito, ninguém está acima da lei.

O que é a Web3

É sobre segurança e descentralização. Recentemente, escrevi um artigo explicando de forma resumida do que se trata.

Basicamente, é a internet descentralizada. Nela, não há servidores centrais e nada existe em um único local físico. É como um computador global que existe de forma difusa e além de qualquer autoridade ou soberania.

Nela, protocolos descentralizados cumprem funções tipicamente realizadas por entidades centralizadas e presentes sob um ordenamento jurídico tradicional.

Em Defi, finanças descentralizadas cumprem o papel tradicional de instituições como bancos, por exemplo. É possível emprestar dinheiro ou contrair empréstimos, tudo a partir de contratos inteligentes.

Em protocolos de leilão digital, por exemplo, é possível organizar a venda de ativos digitais ao maior comprador. Esses ativos digitais podem ou não terem contrapartidas (valor de uso) ou estarem atrelados a ativos tangíveis (representações virtuais, ou sintéticas, de ativos reais).

No Bitcoin, por exemplo, é possível fazer a custódia de todos os seus ativos sem a necessidade de um banco. Afinal, guardar bitcoins não requer a menor infraestrutura, ao contrário de bancos que guardam ativos tangíveis (a exemplo do ouro). Aliás, vale lembrar que boa parte do dinheiro que bancos “guardam” são apenas dinheiro digital, uma vez que boa % do dinheiro existente é intangível.

A segurança de um protocolo como o Bitcoin, baseado em blockchain, neste caso, é no sentido de apenas mudar as regras do ordenamento na base do consenso e sobre ser menos sensível a ataques de qualquer outra entidade, incluindo as autoridades e demais agentes da sociedade.

Explico. Uma vez que o código, ou seja, as regras, são mudados a partir de regras pré-existentes também em código e de um consenso amplo da própria rede (mineradores), este passa a ser um próprio estado de direito “privado”, baseado em código. Ao invés de rule of law, temos o rule of code.

Code is law: o código é lei

Na Web3, o código, ou seja, a programação, é a lei. O código não pode ser questionado, a não ser a partir de suas próprias regras. O protocolo é o “senhor” dos conflitos e a utilização dos mesmos é feita de forma voluntária por seus usuários.

Não há como mudar a emissão (ou seja, a oferta “monetária”) de Bitcoins no protocolo ou reverter um contrato inteligente, por exemplo. Para tal, seria necessário um consenso amplo dos participantes. Essa mudança, se feita, deve estar no interesse de todos os participantes, ou quase.

A ordem legal que predomina na Web3 é a fuga do alcance da jurisdição legal tradicional, uma vez que o código é lei. Afinal, a rede não exclui ninguém que não tenha interesse de participar nela. A participação é voluntária e suas regras são baseadas em preceitos lógicos, escritos a partir de programação.

É como se um dos principais objetivos da Web3 fosse justamente a manutenção do estado de direito. No entanto, trata-se do estado de direito do código, da programação, acima de qualquer questionamento superveniente.

Sob o código, ocorre a verdadeira horizontalização, ou seja, não há ingerência de grupos de interesse (ao menos na teoria). Portanto, para aqueles conflitos de caráter mais objetivo, trata-se de uma instância que traz enorme segurança jurídica para determinados contratos.

A insegurança costuma estar na possibilidade de um protocolo sofrer um ciber-ataque, que não são incomuns. No entanto, determinados protocolos se destacam por seu histórico de segurança e código “inquestionável”, como é o caso do Bitcoin.

Somos governados pela lei ou por entidades legais?

Seja a autoridade policial, legisladores, estados nação, corporações, grupos de interesse… é o ordenamento jurídico que governa sobre a sociedade ou são os interesses de determinados grupos?

Acredito que muitos concordam que a lei não é a mesma para todos e que as interpretações são frequentemente flexibilizadas em nome de objetivos maiores, mesmo que “legítimos ou justos”.

A tese de Dworkin, por exemplo, é importantíssima ao constitucionalismo moderno. No entanto, quando se trata de dirimir questões objetivas, talvez a teoria dos princípios seja menos preferível pela maioria das pessoas do que simplesmente a lei do código em determinado protocolo descentralizado.

É possível encontrar diversos casos onde entidades particulares preferem a composição de um tribunal de arbitragem, por exemplo. Seria a Web3 uma possível solução para determinados conflitos?

Tendo a acreditar que sim. Determinadas relações são muito melhor administradas sob a égide do código como lei.

O futuro da Web3 é indeterminado

A Web3 vê o ordenamento tradicional como ineficiente e procura evitá-lo. Seus pensadores são céticos quanto ao ordenamento jurídico tradicional e sua capacidade de solucionar conflitos de forma eficiente. Podemos citar alguns, como Vlad Zamfir, Nick Szabo, Wood e Antonopoulos, por exemplo.

No entanto, isso significa que sob um ponto de vista normativo tradicional, a Web3 é algo incompatível com o status quo. Dessa forma, seria possível criar tal compatibilidade? Caso positivo, como fazer isso?

O ponto de vista normativo entende o estado de direito não apenas como um sistema incapaz de ser subjugado por outra autoridade. Nessa definição, a Web3 seria um estado de direito incapaz de solucionar determinadas demandas.

Seriam, portanto, estados de direito diferentes, onde o único princípio legal da Web3 é a incapacidade de ser subjugado a outra autoridade ou grupo de interesse. A Web3 não administra conflitos para além da objetividade do código, a priori.

É necessário uma tese mais sólida para a Web3

A Web3 está sob enorme fragilidade regulatória e riscos diversos sob as autoridades tradicionais. O seus desenvolvimento depende em grande medida de capital “tradicional”, ou seja, capital não disponível a mercados marginalizados.

Ou seja, dependendo de como o ordenamento tradicional lidar com este “concorrente”, haverá mudanças significativas nos resultados que o avanço da Web3 trará.

Tais resultados também impactarão todo o estado de direito em escala global, não apenas na Web3, uma vez que trata-se de uma ferramenta que possibilita inovações sem precedentes para a organização das sociedades, seus interesses, sua governança (a exemplo das DAOs).

Haverá muito impacto relativo a estruturação da governança da ordem legal na Web3. De um jeito ou de outro, não há como “desinventar” tal ferramenta.

Querendo ou não, a ordem tradicional terá de lidar com estruturas além do seu alcance e que têm obtido êxito em conquistar muitos adeptos.

É questão de tempo até alguma forma de adoção em massa dessa tecnologia.

Não podemos deixar essa oportunidade passar.

Referência: Palestra de Vlad Zamfir: “Web3 and the Rule of Law”.

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Pedro Helmold

Micro-empresário, entusiasta Web3, graduando em direito na UFF. Estudando pro CNPI-P.