A MIRAGEM DO ÔNIBUS

Pedro Limoeiro
7 min readSep 7, 2024

--

Existem dois significados para a miragem. Existe o fenômeno óptico causado pela reflexão da luz solar que atravessa diversas camadas do ar, formando uma imagem invertida de lugares distantes, geralmente um lago, mas também existe a miragem associada a algo que pertença ao campo imaginativo do ser humano posto sobre a realidade como uma imagem que você vê para nunca mais. É desse segundo que vem a origem dessa produção.

Eu sou um pobre coitado que anda de ônibus — como é o destino de qualquer trabalhador assalariado. Não importa se você gosta ou não, afinal, nem sobre isso o Estado me perguntou se eu queria participar. Nem para viver os meus pais queriam saber sobre o meu consentimento para com o assunto, por que eles perguntariam? A locomoção do pobre coitado não precisa ser direcionada ao campo de trabalho, pois também pode nos interligar com lugares maneiros da sua cidade, quer dizer, digo no meu contexto presente em que vivo, afinal, não sei como é a vida no interior de fato. O ônibus é um mundo a parte do tóxico, violento e dispersado mundo real, nele estão presentes as pessoas que você menos espera ver. Ele é um mundo misterioso sob 4 rodas que te movimenta do ponto X ao Y, carregando as mais variadas mentes pensantes, com seus problemas específicos, com seus gostos singulares, com seus traços físicos únicos. É verdade que um assalto é uma invasão do mundo exterior, mas no geral, o ônibus não me tende a ser um local violento, mas de transição física. Eu queria tanto explorar cada pensamento desses sem soar um invasor de mentes, apenas descobrir através do diálogo cada especifidade possível para enriquecer as minhas reflexões e imaginações. O que os ‘’outrem eu’’ pensam? Constantemente penso em anarquia, nos meus estudos, sobre o futuro e presente no mesmo curso do rio.

I — O Outrem Eu

Outrem Eu (Os Eus indefinidos que não participam da comunicação, mas são mencionados indiretamente) são pessoas assim como eu, mas que não estão comigo: pensam sobre o futuro e presente no mesmo curso do rio, alguns carregando mais ressentimento pelo passado, mas todos no mesmo curso do rio. A verdadeira graça do Outrem Eu é o Eu pensar no que tem de específico no pensamento de Outrem, mesmo a pessoa mais desinteressante pensa algo específico sobre o mundo, as coisas, o presente, o passado e o futuro. A Hannah pensa sobre o livro novo que ela comprou e o quanto está ansiosa para descobrir alguma coisa nova na mesma passada que pensa sobre os trabalhos da Universidade. Hannah é um Eu no seu barco do submundo de seus pensamentos e um Outrem Eu para quem está fora da comunicação, eu sou um Eu e um Outrem Eu (para os outros) e os outros são Eus e Outrem Eus e assim sucessivamente. Cada pessoa possui uma espécie de submundo pessoal no mundo restrito do ônibus e esse está dentro do mundo real. A quem interessa saber os limites do pensamento humano? A curiosidade humana é infinita, mas pensar além disso fará você enlouquecer. Você não enlouquece com o que sabe do mundo aberto, nem do ônibus e nem do submundo do Eu, mas em pensar no fim da estrada. Mesmo se existir um fim da estrada, não é interessante ao ser humano saber que ele existe.

O meu interesse com o Outrem Eu é bem específico: eu não fico satisfeito com algumas informações. Como eu queria ter a capacidade de entender uma pessoa o máximo que eu puder e compartilhar o meu terreno com a pessoa. Eis o apoio mútuo que nos conecta com as pessoas. O celular, as músicas que eu tenho baixadas, os jogos, livros digitais e o que tem fora do ônibus são insignificantes perante a profundidade do ser humano. Se quiséssemos ver o mundo real, eu não pegaria um ônibus, mas andaria de ponto X ao Y, porém, esse não é o caso. O meu propósito com o ônibus é outro. Sempre me consideravam alguém que viajava demais na maionese e no mundo da lua, mas eu nunca tive problema algum com maionese ou com ser um astronauta. O sonho dos autoritários é que eu não sonhe alto e diversificadamente para que eu seja um grande homem monolítico. Enganam-se quem acha que pode segurar nos meus braços!

II — Qual o meu fenômeno favorito do Outrem Eu?

AS PESSOAS! Nada é mais espontâneo que o fenômeno das pessoas que você viu ou verá no mundo restrito do ônibus, mas que acabam virando uma miragem da sua vida. Porém, não é isso que eleva o meu interesse, mas sim porque, principalmente em grandes capitais, você tem uma chance gigantesca de nunca mais cruzar com essa pessoa X, então tudo que você descobre sobre a miragem acaba por te marcar, virando uma memória singular. Lembro-me de conhecer uma ruiva no ônibus que eu pegava para matar aula (Naútico da massa), o ônibus estava lotado, eu estava sentado e ela em pé olhando para frente, então eu pensei como um adolescente qualquer mesmo: e se eu tentar flertar? Bom, passei um spray de mel na minha língua, endireitei meu olhar cansado das longas madrugadas e eu tentei dar aquele olhar de flerte tradicional: ela riu. Eu realmente passei uma vergonha impressionante, quer dizer, o sentimento que ficou na minha mente foi esse, afinal, não me achava muita coisa. Quando ela sentou do meu lado para tentar conversar eu não conseguia nem olhar no olho da pessoa, eu era uma pessoa muito tímida e com pouca interatividade social. Foi humilhante. Humilhante foi. Sinceramente, já não lembro muito da conversa que eu tive com aquela pessoa, mas eu nunca esqueci a aparência: cabelo ruivo ‘’um pouco pontudo’’, usava piercing nos lábios, brinco e estava indo para a praia. Lembro-me que conversamos sobre a banda que eu estava interessado na época que era Pink Floyd, falamos da brevidade da vida, sabe? E se existir reencarnação, será que eu viveria muito melhor do que eu estava vivendo naquele período? Talvez o Espiritismo me dê essa resposta, mas não conheço a doutrina que Allan Kardec escreveu séculos atrás. Perguntei sobre o que ela queria fazer da vida e me disse: ‘’filosofia’’. Na época eu falei que ela ia passar fome, mas acabei apanhando filosoficamente e antropologicamente ao mesmo tempo. O primeiro porque ela me indagou qual era o tipo de vida que eu estava levando… Respondi: Não sei, eu só caminho por aí. Eu não sabia responder. A partir desse questionamento, foi aí que comecei a me interessar pela filosofia e pela análise da sociedade sob esse viés. O segundo porque a partir do questionamento de como você vive, o campo se elevou a como o coletivo vive, então tive um papo maneiro onde falei sobre a origem humana desde os primórdios, o nascimento da agricultura até a atual sociedade capitalista, bom, na época eu era liberal e não compreendia os males da sociedade capitalista e defendia que era o único modelo realmente decente. Fui retrucado mostrando que somos desumanizados pelo mercado e hoje somos mera mercadoria, que o consumismo afetava a sociedade e eu recusava isso de toda forma. Bom, cada um seguiu sua vida. Eu fui vagabundear na praia e ela para o seu estudo. A mina me disse que eu era leigo e hoje não posso discordar. A miragem de ontem iria se amarrar no concreto de hoje.

Enfim, veja como dessa brincadeira toda eu consegui saciar minha breve curiosidade do Outrem Eu e aprender coisas novas… DO NADA. Acabei amostrando parte do submundo do meu Eu e hoje tenho doces memórias dessa miragem do ônibus que nunca mais cheguei a encontrar, eu me pergunto se eu não vejo mais a miragem pela mudança de aparência ou porque nunca mais se cruzamos mesmo. Acho que não importa, a graça que vi em minha vida sempre foi a minha curiosidade de explorar, mas azar meu foi o fechamento das grandes minas de carvão do submundo do Outrem Eu ruivo, que não foi culpa minha, mas foi uma armada do destino para que isso ocorresse. Eu não tinha celular porque estava quebrado e acabei não pegando um contato com a pessoa. Tudo isso é pura idiotice minha, mas na minha cabeça foi algo incrível, um verdadeiro fenômeno para o adolescente do 9o ano preguiçoso que amava matar aula.

Todos esses anos estive pensando nesse fenômeno. A pessoa sumiu da minha vida! Talvez seja tudo uma miragem do ônibus que você só pode experimentar uma vez, mas se for esperto, pode levar para a vida toda ou algum período. Quando se pensa mais para esse lado que as decisões de hoje são sempre as mais impactantes, você decide que chegou a hora de se livrar das correntes da ociosidade e oferecer uma resposta à altura. Foi bem isso que aconteceu comigo, lembro-me que era tão fechado a qualquer interatividade social que não fosse por amigos de infância ou por algum subgrupo que me adotou para fazer parte do mesmo, eu seria um solitário hoje. Porém, a partir dessa grande miragem, ficou provado que temos o poder de mudar e ser mudado, de reescrever o caminho e reescreverem o seu caminho, de sermos ativos durante o presente para que altere o futuro predestinado. Coisas simples como essa passam despercebido pelo pensamento, mas a melhor atitude sempre é agora.

Quando eu estiver velho, talvez eu não lembre mais nem que era uma pessoa ruiva, mas agradeço por toda a sua paixão efervescente pelo meu Eu, grande miragem do Naútico!

--

--

Pedro Limoeiro
Pedro Limoeiro

Written by Pedro Limoeiro

Sou um anarquista e eu gosto de metal, isso é tudo que precisa saber

No responses yet