Autopsicografia behaviorista em prosa ou O oxímoro da serenata
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.“Autopsicografia” - Fernando Pessoa
Conviver com seus eventos privados não é tarefa fácil. Ninguém disse que era, ninguém diz nada sobre isso fora da comunidade verbal restrita da psicologia. Pelas minhas lentes, tem sido esvaziante lidar com tantos eventos ordinários de uma vida. Acho que ainda se fala menos disso, sobre como o ordinário é de fato ordinário.
Tenho percebido um problema sério em mim — que de verdade não é meu . Não tenho coragem de enfrentar uma rotina. Eu não sei o que de fato se passa, eu não teria precisão nos eventos privados, eu me sentiria culpado de compreender o que isso realmente significa ao olhar público, mas a verdade é que eu não consigo usar de eufemismos para descrever: eu sou preguiçoso.
Eu sou muito preguiçoso. Também sei que pouco combina comigo a posição de internalista, então vou dizer que a operação motivadora que quase sempre está presente é a que aumenta extratosfericamente os reforçadores imediatos. Em outros termos, isso quer dizer que dificilmente fico sob controle de regras por muito tempo, dificilmente vou trocar o fácil pelo custoso, que o custo de resposta baixo sempre vai vencer o alto a despeito de qualquer que seja o reforçador do outro lado.
E eu odeio isso. Como um bom fusionado ou como alguém que fica sob controle das próprias respostas ao fazer um entendimento sobre si, eu passo a me odiar, como se eu fosse aquilo que faço — de verdade, deixo de fazer. Eu deixo de ir à musculação, eu deixo de sair de casa, eu deixo de pegar ônibus, eu deixo de falar com as pessoas e vou deixando e deixando. Vou empobrecendo os meus reforçadores, vou diminuindo minhas operações motivadoras, passo a estar privado de tudo, mas em um nível em que a saciação é tão custosa que não parece apetitivo emitir tais respostas. A anedonia vai se tornando mais transparente.
Então, no psiquiatra, eu desabo fácil contando uma ontogênese bem da ordinária. Sou vítima de uma entrevista SCID — isquid pros íntimos — e me atiram uma Serenata (50mg) após o almoço, embora o Dr. tenha dito após o café e de verdade é quando eu lembrar.
A serenata começa a tocar, embora a melodia seja bem melancólica, meio broxante, dá um peso na cabeça — parece mesmo que meu cérebro deu uma engordada de serotonina. Os dias vão passando e a serenata parece ser mais uma prova do quão falida é a hipótese serotoninérgica, porque eu não tô bem.
O que devia ser uma sexta normal, das minhas de ficar em casa e isso não costumava me doer em nada, passa a ser uma tarefa difícil, que urge um escapismo de mim, urge uma droga que transforme um ambiente, um barulho, umas conversas, umas risadas, uma punheta, umas pessoas, um calor, um dinheiro. Essa droga definitivamente não é a sertralina.
Penso que o Fernando Pessoa mente quando diz que poetas mentem. Embora isso não seja uma poesia e nem eu esteja sob controle dessa poesia por completo, é mentira que eu consiga vir aqui só fingir. Passo meses e anos sem escrever, mas quando estou transtornado é que sinto a necessidade de ter o escapismo expresso aqui. Escrever esse texto é em parte esquiva experiencial e em parte extremamente entrando em contato consigo (comigo). É um oxímoro que toca ao som da serenata de 50 miligramas.