A Origem da Família por Engels, e a monogamia em divergência com o ideal de amor romântico.
Recentemente, me peguei pensando sobre como a construção social de alguns conceitos e instituições limita a nossa visão crítica, as nossas filosofias pessoais, e a profundidade do entendimento que temos da sociedade em que vivemos. E, bom, isso me motivou a trazer esse tema. Antes de começar, gostaria de pedir a você, leitor, que fizesse um exercício rápido de imaginação : imagine uma família.
Feito isso, me arrisco a dizer que, a grande maioria de vocês imaginou uma família através do padrão mais comum que nós temos hoje na nossa sociedade : Uma figura paterna, uma materna, provavelmente um ou dois filhos, e talvez até um cachorro de estimação.
E não há problema algum nisso. Você não está errado de imaginar dessa forma, afinal, é a primeira impressão que o conceito atual de família nos dá. Seja pelo costume de reproduzir o que estamos habituados a observar nos nossos círculos sociais (conhecimento empírico), ou pela própria experiência pessoal à qual fomos expostos enquanto crescíamos.
Para quebrar esse costume de imaginar apenas o que a pequena parcela do mundo em que vivemos nos mostra, é necessário ir além. Buscar a origem do conceito de família, quais as suas estruturas, e como evoluiu através dos séculos, para formar o que temos hoje. E é exatamente isso que Friedrich Engels faz em “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”. Nessa obra, Engels, ao se basear no livro “Ancient Society”, de Lewis Morgan, disseca a formação histórica dessas três instituições, pois acredita que a origem e a evolução individual de cada uma delas está intimamente ligada às outras.
Analisando etimologicamente a palavra “família”, já é possível observar alguma disparidade com a contemporaneidade. A palavra tem origem no latim, familia, e significa o conjunto de propriedades de um indivíduo (incluindo servos, escravos e criados). É interessante refletir sobre como a origem da palavra já traz, em sua essência, a identidade da propriedade privada, sendo que, nesse caso, a propriedade é o direito à vida de outras pessoas.
E para Engels? Bom, para ele, a família segue algumas estruturas de evolução até chegar na monogamia. Começando pelo matrimônio em grupos, a forma mais primitiva, na qual cada mulher pertencia igualmente a todos os homens, e cada homem pertencia igualmente a todas as mulheres. Desta forma, os filhos eram considerados comuns entre todos, mesmo quando eram originários de relações entre pessoas distintas. Após isso, o matrimônio em grupos evolui para a organização da família punaluana. Na família punaluana, surge a indicação dos graus de parentesco, pois nessa organização, não poderia haver união sexual entre pais e filhos, ou irmãs e irmãos.
Com essas crescentes proibições de casamento, a tendência era o matrimônio por grupos dar espaço a outra ramificação, a família sindiásmica. Nesse estágio, um homem vive com uma mulher, mas mantém seus direitos à poligamia e à infidelidade. Por outro lado, exigia-se a mais rigorosa fidelidade por parte da mulher, sendo o adultério cruelmente castigado. E desta forma, segundo Engels, a opressão às mulheres se torna uma construção social. Através, principalmente, da divisão por classes. Enquanto o homem era responsável pelas atividades relacionadas à alimentação, pecuária e agricultura, a mulher ficava com as tarefas domésticas. Assim, os direitos do homem à recém criada propriedade privada eram mais amplos, e o glamour social adquirido pelo mesmo, maior.
Como conclusão, nasce a família monogâmica, com base no predomínio do homem. Após a supressão dos direitos femininos através da divisão do trabalho, o direito se torna paterno, criando a necessidade de procriar filhos cuja paternidade seja indiscutível, pois, esses filhos, devido ao direito paterno, serão herdeiros diretos dos bens do pai. O homem mantém seus direitos à infidelidade, e a mulher passa a ser castigada mais cruelmente ao cometer adultério.
Isso nos leva à Europa do Século XII, no período conhecido como Baixa Idade Média, onde os primeiros indícios do amor cortês estavam surgindo. Por amor cortês, entende-se o tipo de amor que idealiza a pessoa amada, elevando-a a um plano quase divino, sem defeitos, com a intenção de pura e simples devoção, isto é, a completa submissão e fidelidade incondicional para com a mulher amada.
Existe a ideia de que esse tipo de amor surgiu como um “jogo amoroso”, entre os jovens cavaleiros que cortejavam as damas, e os senhores que eram casados com elas, criando assim, essa atmosfera de devoção para com a dama. Desta forma, os jovens almejavam o padrão social no qual os senhores estavam inseridos. Independentemente disso, creio que a reflexão do contexto seja muito válida.
Na Europa do século XII, numa sociedade que estrangulava os direitos das mulheres, com a ascensão da monogamia e do direito paterno como instrumentos de opressão ao sexo feminino, a arte surge como um contraponto, como uma ideia divergente. O amor cortês se levanta como uma alternativa às instituições sociais vigentes, a recém-nascida vanguarda romântica trazia ideais subversivos.
Mesmo sem querer, mesmo que de forma imperfeita, sem soluções concretas, talvez até impraticável e idealizada, o amor cortês fazia a sua contribuição para a construção social de família que temos hoje. E isso nunca falha em me impressionar, em me fazer enxergar como as construções históricas tem importância no mundo em que vivemos hoje. E talvez esse seja o papel da arte como criação humana, imitar a vida, influenciar o mundo, nos ensinar o senso crítico e a interpretação, ou simplesmente contribuir para a nossa construção imaginária do que é o conceito de família.