Colaboração entre professores

Pedro P. Bittencourt
9 min readJun 25, 2019

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Estava com 21 anos quando pisei pela primeira vez numa sala de aula como professor. Era uma turma de terceira série do ensino médio e a primeira aula daquela manhã seria de química. Cheguei uns 15 minutos atrasado na escola porque não tinha uma noção exata de quanto tempo o ônibus levaria pra passar perto de minha casa naquele horário, tampouco a duração da viagem. Pode-se dizer que a primeira impressão não foi boa¹.

Neste primeiro emprego, eu possuía uma carga horária de 21 aulas semanais: lecionava Ciências para o 9º ano do Ensino Fundamental e Física e Química para as três séries do Ensino Médio, três aulas para cada uma dessas turmas e em cada uma dessas disciplinas. No contraturno, trabalhava como professor plantonista de física noutra escola de ensino médio, que possuía também turmas de curso pré-vestibular. Além da faculdade noturna.

Ou seja, sendo um ainda graduando em Física e marinheiro de primeira viagem na atividade docente, o desafio à minha frente era gigantesco. Bem como a responsabilidade e o medo de errar.

Spoiler: saí dessa escola ainda no primeiro semestre.

Naturalmente, havia uma gama diversa de dificuldades com as quais eu precisava aprender a lidar: preparar a aula, pensar na lousa, elaborar exemplos, treinar a fala e o discurso, prever algumas dúvidas dos estudantes, analisar estratégias de intervenção, selecionar atividades, cuidar da disciplina (e de eventuais ausências dela) etc.

Isso tudo enquanto eu ainda estivesse somente dentro de uma área relativamente confortável, o meu Maravilhoso Mundo da Física, mundo este cujos ares eu respirava incessantemente há pelo menos 4 anos, me preparando para esses momentos, discutindo casos e situações com professores e colegas.

Mas lá estava eu, dando aulas de Ciências (algo generalista, que englobava biologia, física e química) e de Química. Não tinha o menor preparo pra isso². Apenas transmitia o que pude aprender no ensino médio e em algumas disciplinas da universidade. O que se apresentava no livro-texto. O que era solicitado pelas questões modelo ENEM & Grandes Vestibulares daqueles materiais didáticos. Eram somente conteúdos. Não havia uma didática apropriada, nunca uma reflexão aprofundada, as ideias realmente interessantes, instigantes e engajadoras. Eu estava tateando o solo enquanto andava sobre ele, sentindo os buracos no chão e tentando parecer o mais seguro possível.

Uma mistura de fracasso iminente com desespero. Você consegue sentir o cheiro daí?

Nessa época eu recorria ao Orkut. Antes da proliferação do facebook, essa era a rede social mais utilizada por nós, luso-tupiniquins³. Havia muitas comunidades dedicadas à ciência e à troca de experiências. Eu passava muito tempo ali fazendo perguntas sobre química orgânica, velocidade de reações, cinético-química e o que mais você puder encontrar no índice de um livro de ensino médio. Sou muito grato a todas as pessoas que colaboraram comigo de forma paciente, esclarecendo pontos duvidosos e fornecendo material pra pesquisa.

O planejamento da aula precisava ser feito da forma mais minuciosa possível. Eu precisava pensar e prever muitas possibilidades. Citar muitos exemplos. Preparar uma lousa impecável.

Não estou dizendo que o mesmo não era feito em relação às aulas de física. O problema, no caso de ciências e química, ocorria quando qualquer pergunta fugia minimamente do roteiro. Em algumas vezes eu até sabia o que responder. Mas não eram boas respostas. Não eram as respostas que um professor deveria dar. Pareciam muito mais com respostas que estudantes dão: não são incorretas, possuem embasamento e razoável argumentação. Mas ainda estão incompletas. Deixam lacunas e margem para interpretações equivocadas.

Então eu fazia o que meus professores e minhas professoras da universidade sugeriam: “diga ao estudante que não possui condições de fornecer uma resposta apropriada no momento, mas que fará o possível para trazer uma solução no próximo encontro, ou o quanto antes for possível”. Inclusive, é sempre saudável transferir ao aluno, também, uma parcela dessa responsabilidade:

Jovem, eu não sei exatamente como responder a essa sua pergunta; vamos pesquisar o tema e conversar um pouco mais na próxima aula?

Admitir o desconhecimento é, também, uma forma de conhecimento.

Contudo, uma angústia ainda pairava no ar: onde obter ajuda?

Passam-se alguns anos, estou mais confortável dando minhas aulas de física e de matemática². Abandonei a ideia errada de trabalhar com ensino de química — cogitei uma segunda graduação nessa área, mas desisti do plano tão rápido quanto nego convites para sair de casa — e coloquei em minha cabeça que não tenho competência adequada para lecionar ciências biológicas. Estando concentrado no meu “mundinho dos números”, ficou mais fácil pensar em novas metodologias, realizar pesquisas mais focadas e testar algumas estratégias que pareciam promissoras. Trabalhando também com muitos plantões de dúvidas, sendo colocado à prova o tempo todo — porque os alunos aparecem com dúvidas aleatórias de temas também aleatórios — adquiri uma razoável habilidade para detectar, de forma suficientemente rápida, o tipo de dúvida que o estudante está manifestando naquele momento e qual parece ser a abordagem mais apropriada para a situação.

Deste modo, tive a oportunidade de oferecer ajuda em determinadas situações para colegas que, por um motivo ou outro, viram em mim uma possível solução para um problema detectado— porque eu já havia falado a respeito daquele tema central da dúvida em nossas conversas cotidianas, porque eu parecia entender do assunto ou porque eu era, simplesmente, a pessoa mais próxima a quem recorrer naquele momento.

Não é uma questão de ser o especialista. É apenas uma questão de ser alguém que pode oferecer contribuições que ajudem a visualizar melhor o quadro completo que se desenha. Dois cenários, em minhas experiências, são os mais comuns:

  1. colegas de Ensino Fundamental I necessitando de colaborações para trabalhar conceitos matemáticos;
  2. colegas de Ensino Fundamental II necessitando de colaborações para trabalhar conceitos físicos.

Minha proposta com esse texto é defender o seguinte argumento: professores não têm o costume de pedir ajuda. Estando isolados dentro da sala de aula, sendo assim a autoridade máxina dentro deste terreno, acreditamos que precisamos resolver, nós mesmos, os nossos problemas. Pode ser que não queiramos mostrar fraqueza ao pedir ajuda, ou manifestar desconhecimento numa parcela de nossa área de atuação, demonstrando assim uma possível incompetência, passível portanto de uma revisão de nosso trabalho. Dentre uma série de outras razões.

Digo isto porque, bem, eu penso assim.

Entretanto, admito uma série de fragilidades nessa linha de raciocínio. Vejamos alguns pontos:

Minhas conversas a respeito de estratégias para elaborar situações de ensino-aprendizagem em matemática ocorrem, em sua maioria, com colegas do Ensino Fundamental I (1º a 5º ano, que atende geralmente a faixa etária dos 6 aos 10 anos de idade). Tais colegas possuem, predominantemente, graduação em pedagogia, sem formação de especialista, portanto⁴. O mesmo acontece quando algum colega licenciado em matemática ou ciências biológicas atribui aulas de física no Ensino Fundamental II (6º a 9º ano, atendendo alunos, em sua maioria, entre os 11 e os 14 anos de idade). São professores e professoras que não estão atuando dentro de sua área de formação ou que possuem lacunas conceituais nessas áreas — geralmente devido a um descompasso entre aquilo que se oferece na universidade e o que a prática docente requer. Não questiono o fato desses profissionais estarem em áreas diferentes porque o Brasil parece carecer de professores⁵ e porque os professores certamente carecem de trabalho — novamente, eu me encaixo neste perfil. Esse me parece ser o cenário mais delicado e difícil de solucionar. E não acredito que eu possua a competência necessária para elaborar melhor essa ideia.

Eu deveria, sim, procurar professores especialistas ao trabalhar com temas que não domino por não possuir aquela formação específica e exigida para tal. Afinal, a responsabilidade, dentro de sala de aula, é minha. Posso não ter a formação adequada, mas possuo o dever de entregar a meus alunos o melhor de mim, buscando com eles a construção de um corpo coeso de conhecimentos.

Também deveria pedir ajuda a meus colegas quando não domino determinada técnica dentro da minha área de atuação porque demanda ferramentas que não aprendi — por exemplo: editar um vídeo para exibí-lo em sala de aula, realizar um experimento científico nunca testado antes, confeccionar uma galinha em EVA para enfeitar as paredes da escola na festa junina etc. Só que não quero pedir ajuda, sou autossuficiente: deixa vomigo, toca po pai. Pareço, assim, incapaz de perceber que socializar experiências me torna um professor melhor. Prezando por minha autonomia, me torno, paradoxalmente, menos autônomo.

Eu deveria procurar auxílio de outros professores quando não conheço boas estratégias para abordar um determinado tema em minhas aulas, porque sempre fiz de um único jeito e nunca tive ninguém com quem conversar a respeito que me dissesse outras formas que poderiam funcionar. Estou desatualizado. Mas pedir ajuda pode significar uma demonstração de incompetência. E nessa situação de mal possuir aulas a serem atribuídas, não posso me dar a esse luxo.

Por último, preciso reconhecer que eu não consigo fazer todas as coisas sozinho. Elaborei uma proposta que cresceu descontroladamente e agora não posso segurar as pontas sozinho — grêmio estudantil, monitoria discente, jornal do colégio, sarau cultural, produção coletiva e colaborativa de material de estudos, etc? Preciso pedir ajuda para meus colegas senão o projeto corre o risco de ser finalizado e, com isto, diminui-se minha credibilidade com os alunos. Observe aí, mais uma vez, o paradoxo: eu ainda não “falhei” com o projeto, mas o medo de demonstrar esse possível fracasso acelera sua derrocada.

Não era mais fácil ter pedido ajuda antes?

Apesar dos pontos levantados, continuo “defendendo” os motivos pelos quais não pedimos ajuda. A fragmentação escolar e sua divisão por disciplinas nos tornou isolados. As áreas de conhecimento não se conversam. A minha matéria, naquele momento, parece ser a mais importante dentre todos os outros conhecimentos que estão sendo trabalhados pelos outros professores. Eu tenho as minhas provas para corrigir, os meus trabalhos para ler, as minhas atividades para planejar. Não possuo tempo para colaborar com outros, não sei como colaborar com outros. Assim como eles parecem também não terem essa disponibilidade para mim. Então estamos, sim, sozinhos em nossos mundos, precisando encarar nossas próprias broncas e arcar com as consequências.

Em algum momento eu vou me dar conta de que sou apenas um ser humano e preciso de outros seres para serem humanos comigo.

E você, colega, pra onde corre quando precisa de auxílio?

[1] Fun fact: alguma coisa acontece em meu primeiro dia de trabalho. Tive contratempos em, pelo menos, três outras ocasiões, que consiga me recordar neste momento: atrasei mais uma vez na primeira aula de outra escola (a partir dessa situação recorrente passei a estudar melhor o trajeto previamente, o que parece muito evidente e imbecil, se pudermos ser honestos), errei o caminho noutra (eu não sei me orientar nem com um mapa na mão) e, pasmem, tive um certo desarranjo intestinal justo no dia de minha aula inaugural em uma terceira— fui trabalhar munido de duas cuecas sobressalentes e um rolo de papel higiênico na mochila (mas cheguei no horário).

[2] Esse é um tema muito maior do que a proposta deste texto. Indo direto ao ponto: eu deveria dar aulas, apenas, de física. Essa é a minha graduação e minha especialização. No ponto atual de minha carreira, após uma década lecionando na educação básica, estou mais confortável com o trabalho de matemática, também. Mas isto não aconteceu da noite para o dia: eu precisei pesquisar muito para aprender a trabalhar direito. E continuo pesquisando de forma incessante. Apesar de acreditar que o mais correto é realizar especializações formais (cursos de extensão, mestrado, doutorado), compactuo também com a ideia de que posso, sim, realizar especializações informais, com minhas próprias pesquisas, de forma séria e sistemática. Mas, novamente, essa é uma ideia que foge do escopo da discussão atual, além de ser contestável e, de certa forma, polêmica.

[3] Inclusive: orkut > facebook.

[4] Você pode dizer, neste momento: nem você, Pedro, possui essa formação de especialista, uma vez que é graduado em Física e leciona Matemática! Com base no exposto no item anterior ao acima exposto: concordo. Entretanto, trabalhando exclusivamente nesta área, eu respiro física e matemática, cotidianamente, não precisando concentrar esforços em outra coisa. Professores do Ensino Fundamental I, em contrapartida, trabalham com todas as áreas do conhecimento, não podendo dedicar atenção a um ou outro assunto em particular. Excetuando-se aqueles que tiveram a oportunidade de passar por processos de formação continuada, realizando especializações nessas áreas de conhecimento, o descompasso é grande e o desafio maior ainda.

[5] Em artigo publicado no Jornal de Políticas Educacionais (NuPE — UFPR), o professor José Marcelino de Rezende Pinto argumenta que “com exceção da disciplina de física, existem professores habilitados em número mais do que suficiente para assumir as turmas existentes, concluindo-se que se trata essencialmente de um problema de falta de atratividade da carreira docente”.

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Pedro P. Bittencourt

professor da educação básica. às vezes produzo conteúdo para a internet | pedrobittencourt.com.br