Não era Síndrome do Impostor

Pedro P. Bittencourt
10 min readJun 11, 2019

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No dia 7 de abril de 2017, saiu o primeiro episódio de meu podcast, EnSigno: Como vim parar aqui?. O podcast nasceu a partir da vontade de falar a respeito de coisas que me cercam: escola, educação, ensino, as frustrações do dia a dia. Pretendia evoluir junto com os temas, quem sabe aprendendo coisas novas, fazendo pesquisa aqui e ali, conversando com colegas, entrevistando especialistas. Resumindo: inovar no formato a cada episódio.

No dia 15 de outubro do mesmo ano, saiu o décimo e, até então, último episódio.

Eu havia definido uma meta: um episódio a cada dez dias. Não é semanal, coisa demais pra fazer. Não é quinzenal, muito tempo sem episódio. Dez dias. Três programas por mês. Factível, certo? O tempo me mostrou que, mais uma vez, eu estava errado.

Acho que minha culpa foi ter “roubado no jogo”. O primeiro episódio se baseou em um texto pronto, que escrevi para uma disciplina da pós-graduação — pós-graduação, essa, que abandonei, mas ainda não é o momento para falar a respeito. O segundo episódio também possuía texto pronto, escrito alguns meses antes do início do podcast. O terceiro e o quarto episódios, adivinhe: baseados em escritos anteriores, apenas dei uma revisada, acrescentei coisas, retirei outras. Meu ponto de vista: eu não tinha real dimensão do tempo que era necessário para produzir um programa completo, da gestão de ideias à finalização do áudio.

E não é só porque eu demoro demais pra gerir a ideia. O maior problema é ficar refém dos dias ruins.

Esse texto é pra falar da minha relação com dias ruins.

Eu quero muito voltar a escrever. A me comunicar. Falar coisas, contar causos, pensar a educação e a profissão. Mas eu não tenho dias bons. Eu dependo dos dias bons. Não há método de trabalho, não há rotina. Me apoio e dependo dos momentos de inspiração. Aquele “ahá”. Pelo qual eu fico ansiando. E me culpando, depois, quando ele não aparece. Procrastino. Crio outras desculpas externas: é o trabalho, é o cansaço, é o calor, são as provas, as correções, as listas inúteis. Olho pela janela: o dia está bonito. É sábado e faz sol. Não tenho compromissos, ao menos nada urgente. A roupa está no varal e a casa foi faxinada. Todas as condições necessárias e suficientes estão dadas.

Então, por que, car***o, eu não consigo escrever?

Talvez a resposta imediata seja: não há o que ser escrito. Não há uma mensagem. Apenas o desejo de pertencer a algo. Outra resposta, menos pessimista, pode se referir à ausência do método, como já mencionado. Sinto que estou emburrecendo com o tempo; não leio mais, não converso mais, não estudo mais. Assim, fica fácil sucumbir à mediocridade. Estou me tornando meu pior pesadelo: um homem burro e parado no tempo. Me tornei simplório. Rasteiro. Sem um horizonte claro de crescimento. Vazio.

Mas a ideia inicial não era afogar nesse pessimismo, então voltemos ao tema.

Durante muito tempo, planejei retomar a segunda temporada iniciando com uma conversa sobre a Síndrome do Impostor. A referência aí é óbvia: eu me sinto um farsante, que inicia seus projetos mas não os conclui. Porém, uma rápida pesquisa mostra que estou errado: não é disso que a síndrome se trata. Mas eu já volto a falar a respeito.

E aí bate uma espécie de desespero, pois nem isso eu sou. Não há um nome para o que eu tenho. Sou um impostor até para carregar o crachá de portador dessa síndrome! No final das contas, eu apenas me sinto derrotado. Sem nomes mais polidos ou condições psicológicas catalogadas. Eu não me sinto inseguro quanto ao meu sucesso simplesmente porque não atingi nada disso. Vivo a mesma vida mediana que iniciei há quase uma década. Nada diferente aconteceu neste período, nenhum crescimento profissional foi adquirido. Estacionei no acostamento dessa estrada, abri uma pequena loja de bugigangas e, vez ou outra, vejo pessoas passarem, rumo a algum lugar que, talvez, nem elas saibam direito qual é. Mas elas estão indo.

Será que vale a pena falar sobre isso? Seria essa a maneira correta de iniciar uma temporada? Há alguém interessado em ouvir as lamúrias de um millenial no auge de seus trinta e poucos anos, insatisfeito com a situação atual de sua carreira? Meus colegas de profissão manifestam a mesma angústia? Existe outra maneira de encarar esse problema?

Me parece um bom ponto de partida. Investigar o que é essa síndrome, verificar como ela se manifesta em professores e profissionais da educação, conversar com colegas que estejam se sentido de modo semelhante ou que encontraram alternativas para escapar desse cíclo vicioso e oferecer algo próximo de uma resposta, no sentido de abrir possibilidades ao invés de fechar com uma solução pronta e única.

Não sei se conseguirei. Mas acho que posso fechar a loja de presentes na beira da estrada e começar a caminhar por aí. Quem sabe eu consiga uma carona com alguém, trocando transporte por boas histórias.

Já ouvi diversos produtores de conteúdo falando a respeito da Síndrome do Impostor. Também vi profissionais de diferentes áreas de atuação tratando do mesmo tema. Em todas essas falas, rapidamente pensei: rapaz, eu tenho isso aí! Me sinto um impostor! Eu sou uma fraude, também.

Então fiz o que qualquer pessoa faria: pesquisei o que, de fato, tal síndrome representa.

E descobri assim que, evidentemente, esse não é meu caso.

Me permita fazer, aqui, algumas citações. Me permita, também, a liberdade de citar fontes, talvez, não tão confiáveis assim. Afinal, não pretendo desenvolver uma ideia acadêmica. Só quero mostrar um argumento.

De acordo com a Wikipedia, também chamada de A Fonte Mais Confiável de Toda a Rede:

As pessoas que sofrem este tipo de síndrome, de forma permanente, temporária ou frequente, parecem incapazes de internalizar os seus feitos na vida. Não importando o nível de sucesso alcançado em sua área de estudo ou trabalho, ou quaisquer que sejam as provas externas de suas competências, essas pessoas permanecem convencidas de que não merecem o sucesso alcançado e que de fato são nada menos do que fraudes.

Nas palavras de Daniela Carasco em artigo publicado no Huffington Post Brasil em abril de 2014:

As vítimas da síndrome são pessoas que jamais creditam seu sucesso à inteligência, competência ou habilidade pessoal. ‘Elas se convencem de que os elogios e reconhecimento de outros em relação à sua conquista não são merecidos, atribuindo suas realizações à sorte, a algum encanto repentino, contatos ou outros fatores externos’, explica a psicóloga americana Valerie Young, autora do livro ‘Os pensamentos secretos das mulheres de sucesso’.

Nesta mesma matéria, a autora descreve “7 sinais de que você é uma das vítimas da síndrome do impostor”. De forma resumida, seriam eles:

1. Vício em trabalho (ou)
2. o oposto disto, ou seja, desapego ao trabalho
3. Discrição absoluta
4. Aprovação através de carisma
5. Procrastinação
6. Nunca finalizar projetos e
7. Autossabotagem

Poderíamos seguir adiante com outras fontes de pesquisa. Mas acho que já é o suficiente para demonstrar dois argumentos:

Primeiro ponto: eu não sou uma mulher de sucesso, provavelmente nunca serei. Apesar de parecer piada machistoide, é na verdade um dado importante: mulheres aparentemente sofrem de tal síndrome com maior frequência do que homens, o que é historicamente fácil de ser percebido, tendo em vista que enfrentaram maiores dificuldades em serem aceitas e reconhecidas no mercado de trabalho, que dirá serem entendidas como competentes. Como explicado por Eduardo Cotrim Ferreira e Mariana Azevedo Alves em trabalho de conclusão de curso em Ciências Contábeis:

O conceito de Síndrome do Impostor foi desenvolvido a partir do estudo no qual mulheres que ocupavam espaços de sucesso profissional e acadêmico foram estudadas e, a partir da análise de resultados, as autoras perceberam que a amostra estudada apresentava, em sua maioria, sentimento de que estavam enganando aos outros com relação ao seu nível de inteligência e consideravam-se impostoras em suas realizações, seja por acreditarem que seu sucesso deveu-se ao fato de encontrarem-se em um momento oportuno em determinada situação, seja pelo excesso de esforço de sua parte para alcançar a posição ocupada, em detrimento de sua própria competência e habilidade. Assim, as autoras verificaram que essas pessoas, acometidas pela síndrome, duvidam da própria capacidade intelectual, relegando suas conquistas às mais diversas justificativas que não sua inteligência.

Segundo ponto, e mais importante: eu não reconheço a maior parte desses sintomas. Com exceção dos três últimos, procrastinar, não finalizar coisas e me autossabotar, o restante pareceria um exagero de adequação. Quase como uma pessoa que busca sintomas de doenças no google e vê-se doente em todas os casos relatados.

Como pudemos observar, essa síndrome parece indicar pessoas bem sucedidas mas inseguras quanto a isto. Pessoas que sentem, à todo momento, que seu sucesso será colocado à prova. Em algum momento perceberão que ela é uma fraude, que não é merecedora de suas conquistas e, eventualmente, será relegada ao fracasso iminente. Impostores, pois ocupam um lugar que não é seu.

Eu me vejo num cenário oposto: eu não acho que tenho sucesso algum e acredito que tenho a competência mínima e suficiente apenas para fazer exatamente o que se espera que eu estivesse fazendo. Eu sou um impostor da síndrome do impostor. Uma fraude da fraude. Será que existe nome pra isso?

Em seu podcast Boa Noite Internet, Cris Dias, também conhecido como Patrono da Internet ou O Primeiro Brasileiro do Twitter, trata deste mesmo tema que estamos conversando hoje. E a proposta dele é bastante coerente, afinal, se até Cris Dias, que trabalhou na IBM e no Facebook, em cargos de alta importância e prestígio, sentiu-se um impostor em diversos momentos, haveria então alguém capaz de escapar deste problema? Em sua conversa com Nathália Ceneviva, levada ao ar em março deste ano, Cristiano conta seus maiores pesadelos, geralmente envolvendo perder o emprego, a credibilidade, fazer merda e finalmente tornar-se um nada na vida, algo que, aparentemente, ele acredita estar fadado a ser. Ele conta, inclusive, como se livrou de um pesadelo recorrente, associado à sensação de sentir-se uma fraude no meio de gente que tanto admirava: mencionando essa tal de síndrome do impostor em uma reunião com a firma lotada e verificando que vários desses profissionais admiráveis anotavam os termos em seus caderninhos, provavelmente para pesquisar melhor a respeito desta condição. Ou seja, concluiu Cristiano, se até esses caras picas às vezes se sentem uma fraude, provavelmente eu seja, sim, competente.

O programa foi ao ar um dia após eu completar 32 anos. E eu precisei interromper por uns instantes minha faxina pra pensar nos rumos que minha vida está tomando. Na verdade eu continuo pensando nisso porque ainda não sou capaz de ver os rumos que minha vida está tomando.

Essa conversa rapidamente me fez lembrar de outro podcast. No episódio 154 de Mamilos, gravado ao vivo na Casa TPM em junho de 2018, as palestrantes discutiram o tema “Você não é seu trabalho”. Este programa, especificamente, precisei ouvir duas vezes. A segunda audição foi feita com o bloco de notas do celular aberto praticamente o tempo todo, para que eu pudesse lembrar as ideias que surgiram enquanto ouvia o episódio. Termos como hiperprodutividade, expectativas, entrega, prazer no que se faz, realização, viver no tempo que sobra, crescimento, escolha, vocação, sacerdócio… e que me parecem ser, também, discussão para outro texto.

Mas aqui, pra mim, a relação é evidente: me sinto um impostor não por ter medo de que descobrirão, a qualquer momento, que não possuo competência para exercer meu cargo. Me sinto um impostor porque, a qualquer momento, perceberão que eu não exerço mais o meu cargo. Eu não faço as coisas que deveria fazer. Deixei de ser professor, dentro da concepção que entendo como tal, há muito tempo. Dar aulas deixou de ser divertido e prazeroso, eu não demonstro mais minha vocação em sala, aparentemente me transformei em um preenchedor de papel e repetidor de apostila.

Eu não sou uma fraude, mas o meu trabalho é. E eu não sei como sair dessa.

O mesmo pode ser dito a respeito de projetos que iniciei e não dei continuidade. Chega a ser engraçada a história de produção do episódio #11 do podcast. Ainda na primeira temporada, no auge de minha empolgação com o fato de estar, finalmente, me tornando podcaster, comecei a escrever um roteiro para, no meio do caminho, perceber que ele não fazia o menor sentido. A ideia inicial era falsa.

Quanto mais eu pesquisava a respeito dessa síndrome, conforme lia e ouvia relatos, após perguntar para profissionais da área da saúde se isto é, de fato, um problema real ou modismo dos tempos modernos, mais chegava à conclusão de que minha sensação de sofrer deste problema era, apenas, uma sensação. O que eu sinto cotidianamente deve receber outro nome: cansaço, fadiga, desalento. Não sei.

No fundo, a sensação que me acompanha, às vezes, é a de que eu não deveria estar fazendo certas coisas paralelas à função de professor. Eu não deveria gravar podcast, fazer vídeo pro youtube, escrever textos no medium etc porque eu não sou um “produtor de conteúdo”, como se diz hoje em dia. E, no caso de eu começar a fazer essas coisas, elas deveriam continuar sendo feitas, porque, senão, eu não poderia ser considerado podcaster, youtuber ou escritor. Eu deveria, então, me concentrar apenas em ser professor.

É muito difícil, pra mim, aceitar que esse pensamento é uma bobagem. Eu sei que ele é uma bobagem porque

primeiro, ninguém me cobra pra fazer nenhuma dessas coisas, eu não tenho qualquer responsabilidade com esses projetos. Eles podem começar a qualquer momento, morrer a qualquer momento, renascer a qualquer momento e assim por diante

e, segundo, ser professor é bem diferente de ser “aulista”. Gosto de pensar que praticamente a maioria das coisas que já produzi na internet está relacionada com o ensino, e o podcast parece ser a maior prova disso. Parece que todo o meu cotidiano gira em torno dessa profissão que, no final das contas é, de fato, uma demonstração de sacerdócio. Por um lado, isso me enche de orgulho. Por outro, me deixa cansado e angustiado.

E você, caro colega, também se sente assim?

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Pedro P. Bittencourt

professor da educação básica. às vezes produzo conteúdo para a internet | pedrobittencourt.com.br