David Harvey fala de urbanização, alienação e movimentos sociais

Pedro Sibahi
20 min readJul 7, 2015

Em tempos de crise econômica, David Harvey é um dos teóricos marxistas para o qual muitos jovens se voltam em busca de análises que possam explicar a realidade e apontar soluções para problemas concretos, especialmente no que diz respeito aos grandes centros urbanos. Renomado geógrafo britânico e auto intitulado “anticapitalista”, ele atualmente leciona antropologia na pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York.

Seu livro, “Paris, capital da modernidade”, acaba de ser lançado no Brasil pela editora Boitempo, que o trouxe ao país para uma série de debates intitulada “Cidades Rebeldes”, entre os dias 9 e 12 de junho de 2015. Durante essa visita, Harvey concedeu uma entrevista exclusiva na qual fala sobre as relações entre o capital, políticas de urbanização e manifestações.

O professor britânico fala de forma direta e informal, recheando seu discurso de exemplos práticos que conheceu ao redor do mundo. Nessa conversa ele ainda analisa a evolução dos movimentos de rua nos últimos anos e aponta questões que deveriam unificar movimentos sociais da esquerda tradicional com feministas e antirracistas.

O Brasil é um país muito grande e variado no que diz respeito à urbanização. Quando você fala das dinâmicas sociais nos espaços urbanos, normalmente defende a teoria de que os interesses do dinheiro, em especial o valor de troca (preço), têm determinado as relações nesses espaços. O senhor acredita que essa dinâmica se aplica tanto às grande metrópoles quanto às pequenas cidades do interior, levando em conta que a urbanização, por mais que seja um fenômeno global, ocorre em escalas muito diferentes?

Toda cidade é única, especial. Cada cidade tem um aspecto próprio, que pode ser uma forte minoria étnica, podem ser diferenças religiosas, em outros lugares você vai encontrar diferentes ideologias políticas. Como geógrafo, eu aprecio esta tremenda variedade de situações urbanas que podemos encontrar. O que também me impressiona é o que esses lugares tendem a ter em comum, e independente de onde você esteja, existe uma tendência em todas as cidade de serem capturadas pelo processo de acumulação de capital. Existe também uma grande diferença se o capital está sendo acumulado em um local distante ou se é o capital local que está crescendo. Assim que o capital começa a trabalhar, redefinindo qualquer cidade particular onde se torna dominante, ele começa a usar a renda da terra, o valor das propriedades e a ordenar a ocupação do território baseado em locais de alto valor versus locais de baixo valor. Você começa a ver caminhos similares aparecendo, não importa se você está em Shangai, Santiago, São Paulo ou Lagos. O que me interessa é por que a acumulação de capital em um nível global se envolve tanto nos processos urbanos e por que esse envolvimento aumento ao longo dos últimos anos ao invés de diminuir. Eu acabei de voltar de Istambul, onde há um boom imobiliário acontecendo, o que me lembra da China, que por sua vez me lembra de uma versão exagerada do que acontece em Nova York, que também me lembra uma versão exagerada do que acontece em praticamente toda cidade pela qual passei. Há um tipo de relação comum a tudo isso. Cada vez mais estamos construindo cidades nas quais as pessoas possam investir, ao invés de cidade nas quais as pessoas possam viver. Assim, o valor de troca está se tornando dominante, e cada vez mais dominante na medida em que a acumulação de capital encontra barreiras nas capacidades produtivas. Está diminuindo o número de oportunidades de investimento, então o aumento da urbanização e da reurbanização, que sempre existiu, mas relativamente local em escala menor, se tornou de importância global.

Este é um aspecto. Ao mesmo tempo há um processo ocorrendo no meio rural, que destrói todas as formas de economia alternativa, como a agricultura camponesa e similares, levando a um aumento da expulsão de grandes números de pessoas de suas terras, que acabam precisando se urbanizar, gostem elas ou não. Essas pessoas precisam criar sua própria cidade, seu espaço para viver. O grau no qual isso ocorre depende muito do estágio no qual estamos em cada lugar. Por exemplo, nos Estados Unidos estamos expulsando as pessoas da terra desde 1830, em um processo que terminou essencialmente em 1950. Também ouve essa grande migração de pessoas negras das cidades americanas do sul. Nos Estados Unidos esse processo não está mais ocorrendo porque acabou. Quando vou para lugares como a Índia, onde está ocorrendo com força, você as pessoas alimentando as cidades. O mesmo processo está acontecendo na China, pela América Latina você também vê esse movimento em grande medida, ele não está acabado. No Equador, na Bolívia ou em algumas parte do Brasil, ainda há grandes grupos populacionais sendo deslocados, e as cidades não são construídas para eles. Eles precisam construir as cidades por si mesmos, então você encontra grandes setores das cidades que foram construídos pela população que se deslocou para lá. Contudo, esse é um processo global, tanto com o capital quanto com o movimento populacional, isso depende tanto de onde você está quando do estágio no qual você se encontra. Esse processo geral está se movendo nesta direção.

Para o senhor, as políticas públicas de urbanismo como transporte, educação, ocupação do solo (ou a ausência dessas políticas), têm influência sobre as dinâmicas da cidade — como por exemplo o surgimento de grandes manifestações de rua?

Eu acredito que o papel do Estado na urbanização mudou mais uma vez, e isso depende, é claro, de interesses ideológicos e de classe. Todo o tempo, o Estado teve a responsabilidade de criar ambientes nos quais as pessoas pudessem viver de uma forma que fosse ao menos tolerável. O Estado esteve envolvido em praticamente todas as formas social democratas de urbanização, o que em algum nível tenta suprir as necessidades da população. De modo crescente, o grande capital não aprecia essa situação, os ultra-ricos não gostaram das restrições que surgiram, o que nos levou ao que alguns chamam de revolução neoliberal, que é dizer: “Tire o planejamento do caminho, tire as restrições de uso do território, deixe o mercado tomar conta”. Fizeram isso usando o argumento de que um sistema de livre mercado faria um trabalho melhor em atender às necessidades da população do que algum tipo de planejamento urbano estatal que pudesse guiar o processo. É claro, se você olhar para os resultados desse processo, os ricos foram muito bem cuidados e estão vivendo em condomínio fechados privilegiados, vivendo fora dos escombros da cidade, onde todo o resto das pessoas gasta um tempo muito duro buscando lugares descentes para se viver. Vemos um conflito crescente entre essas duas cidades que estão emergindo e esse conflito se expressa pelo grande descontentamento com a qualidade de vida no meio urbano. Você vê o tipo de protestos que aconteceram aqui por volta de 2013, você tem um paralelo com o que aconteceu em Istambul no mesmo ano, que tem um paralelo com o que aconteceu antes em Londres e Estocolmo, em todo lugar. O tipo de urbanização que temos não está suprindo as necessidades das pessoas e propaga alienação em partes da população urbana, porque eles se sentem politicamente excluídos, economicamente privados de direitos, normalmente são despossuídos, despejados de terrenos com alto valor porque são esses os lugares que os ricos querem. Todo esse processo está aumentando as manifestações de descontentamento com relação à qualidade de vida no meio urbano.

É muito fácil pegar uma população alienada e apontar para a corrupção. Na verdade, a imprensa de direita manipula esse processo em um grau considerável porque isso alivia a pressão sobre o capital. É uma situação facilmente manipulável, o que significa que é uma situação politicamente muito perigosa.

No Brasil, desde 2013 assistimos o surgimento de um grande movimento político nas ruas — as chamadas jornadas de junho — que começaram com demandas específicas na cidade de São Paulo, com pautas ligadas à mobilidade urbana, tarifa zero, mas que logo deram lugar a uma massa mais expressiva de pessoas, que parecia menos preocupada com pautas progressistas e mais interessada demonstrar sua insatisfação com o governo, a corrupção e a política de forma geral. Em 2015 esse movimento despontou em grupos que pediam a intervenção militar e o impeachment da presidente, enquanto o Congresso, que é o mais conservador desde a ditadura, passou a dominar a política do país e as manifestações de rua em si perderam adesão.

Como o senhor analisa esse processo de ascensão e queda dos movimentos de rua no Brasil nos últimos anos?

A forma como eu olho para todo esse processo está no livro “Seventeen Contradictions and the End of Capitalism” [Dezessete contradições e o Fim do Capitalismo — futuro lançamento no Brasil pela Boitempo]. Eu falei em alienação universal. Alienação é um complicado estado de espírito que não tem uma agenda política particular ligada a expressões que venham desta alienação. Eu quero dizer que “se minhas relações sociais são intensamente alienadas eu posso tentar reconstruí-las de uma forma mais positiva ou apenas mandar tudo à merda, porque sinto raiva”. Isso é só raiva. Então, a alienação é uma base problemática sobre a qual se constrói política. Acredito que nos últimos 30 ou 40 anos assistimos à destruição das formas convencionais pelas quais a esquerda fazia política. O que aconteceu, no entanto, é que novas formas de se fazer política emergiram envolvendo processos muito mais anarquistas, autonomistas e anti-estatais, então a esquerda se deslocou nesse sentido, mas como eu sugeri antes, não há motivo para uma pessoa alienada tomar esta política como resposta. Eu presumo que esta pessoa esteja mais propensa a dizer “eu quero um militar forte que venha, coloque as coisas no lugar e faça o que precisa ser feito”. Então, se você olha para a política há essa grande questão: “Como que em 2013 vimos um grande movimento para a esquerda e agora em 2015 vemos um grande movimento para a direita, como isso pode acontecer?” Então voltamos à única forma pela qual uma coisa dessas pode acontecer, que eu penso ser uma alienação generalizada, um sentimento de privação de direitos, descontentamento com o processo político. É muito fácil pegar uma população alienada e apontar para a corrupção. Na verdade, a imprensa de direita manipula esse processo em um grau considerável porque isso alivia a pressão sobre o capital. É uma situação facilmente manipulável, o que significa que é uma situação politicamente muito perigosa.

Eu tento falar com a esquerda e dizer que há uma segmentação e fragmentação da política, temos que pensar sobre isso, elaborar bases de uma política alternativa de esquerda que atraia e mire nessa alienação generalizada da vida em grandes cidades. E se não tivermos um movimento amplo nesse sentido, haverá outras formas de expressão política, as quais não são exclusivas do Brasil. Você tem um movimento fascista forte na Grécia e se a esquerda do Syriza não for bem sucedida é quase certo que teremos uma guinada fascista. Nós já vemos países como Hungria formando governos essencialmente fascistas, que depuseram inteiramente qualquer possibilidade de esquerda. Mesmo na França vemos o crescimento de movimentos fascistas. Uma população alienada nas cidades é uma situação muito perigosa. A esquerda precisa acordar, ao invés de lutar entre si por pequenas questões, por conta deste grande perigo, e começar a fazer as coisas coletivamente para capturar o descontentamento urbano.

Em São Paulo há grupos que defendem o conceito de “direito à cidade”, que buscam construir espaços para as pessoas e não para o capital. Como você vê esses grupos? São alternativas para o modelo de cidade vigente?

Direito à cidade é o que eu chamo de um significante vazio. Quero dizer, todos querem ter direito à cidade. Isso não significa nada até você começar a definir o que é esse direito e para que. É um termo vago, não faz sentido falar genericamente em direito à cidade porque bilionários, financistas e empreiteiros tem direito à cidade. Mas há duas razões pelas quais eu gosto desse termo. Uma é que fala da questão da cidade como um conceito político, não apenas uma coisa. É sobre cidadania, pertencimento a determinado território ou espaço e se sou uma pessoa nesse espaço tenho o direito de dizer o que acontece nele. Atrai atenção para a questão política do que significa ser um cidadão. Muitas pessoas sentem falta de democracia em áreas urbanas e a ideia e cidadania política é muito importante. A segunda razão é que permite a vários grupos díspares, como movimentos de moradia, movimentos por transporte, educação, saúde, que tenham algo em comum. O que eles têm em comum é que atuam pelo interesse da população de baixa renda, que tem interesse em moradia, saúde e educação descentes. Então isso propicia um termo que serve de guarda-chuva para que várias organizações de juntem e digam: “como movimentos coletivos, nós, de vários setores separados, vamos nos unir porque representamos as pessoas em várias questões e colocamos tudo isso de forma uniforme em torno da questão do direito à cidade”. Esse guarda-chuva acaba unindo o que tende a ser um monte de grupos separados e distribuídos pela cidade. Essa política agora é bem representada pela prefeita de Barcelona, que veio de movimentos por moradia e articulou outros movimentos da cidade, e havia um forte elemento de direito à cidade na retórica dela que uniu diversas forças e agora temos que ver o que ela fez e o que pode fazer. Tivemos um prefeito progressista em Nova York, ele foi barrado por fortes interesses econômicos, ameaçaram cortam fontes de financiamento. Isso é um esforço de classe e a esquerda precisa reconhecer isso.

Nas cidades do interior do país, mesmo na capital, Brasília, as manifestações foram menores e tiveram menos repercussão. A urbanização maciça de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro seria um componente que define a dinâmica e o tamanho de mobilizações sociais na atualidade? Em outras palavras, as manifestações de rua estariam restritas às grandes metrópoles?

Não acho que sejam necessariamente restritas às grandes cidades, mas é nas grandes cidades que as contradições do capital aparecem de forma mais centralizada, e os conflitos aí são muito mais vivos, mais óbvios. Há muitas evidências de que é a depreciação relativa que deixa as pessoas com raiva. Depreciação relativa significa que vejo alguém do outro lado da rua e essa pessoa está indo muito, muito melhor do que eu. Eu vejo a diferença e porque o outro está indo tão melhor do que eu estou, sendo que eu trabalho tão durou quanto ele ou até mais duro. Em grandes cidades você vê isso muitas vezes até de forma dramática, e se isso está escondido em condomínios fechados, todo mundo sabe desses condomínios, que vivem pessoas nesses ambientes privilegiados e que não se tem acesso a isso. É daí quem vem muito da raiva. Por exemplo, eu li coisas muito interessantes sobre a Primavera Árabe quando estava no Cairo, na Praça Tahir, e uma das coisas que levou ao início daquela expressão de descontentamento da juventude de classe média, de repente todos começaram a sair de suas comunidades e integrar aquele movimento porque eles perceberam que não iriam a lugar algum, e isso já fazia 20 ou 30 anos. Com o governo Mubarak a alta classe média conseguiu muito dinheiro e construiu casas espetaculares, então a consciência da diferença é muito mais importante em grandes centros urbanos. Ao mesmo tempo muitos dos problemas da vida urbana estão concentrados em áreas como São Paulo, onde você tem congestionamento do trânsito, dificuldades de mobilidade, todas essas questões que não surgem em cidades menores da mesma maneira. A natureza dos problemas é mais intensa, mas também a natureza da diferença social e a forma como as pessoas lidam com essa diferença se tornam mais óbvias. Por exemplo, nós temos um grande problema em Nova York, que a infraestrutura de transporte está falhando. Mas se você perguntar aos mais ricos, que vivem em Long Island, se isso é um problema, eles vão dizer “não, eu vou de helicóptero”. Fazer essas pessoas levarem a sério o problema dos congestionamentos é muito difícil e eles não têm empatia pelas pessoas.

É o 1%…

Sim, é o 1%, que decide tanto em termos monetários, financiamentos a políticos e a imprensa, e é muito difícil ir contra eles.

No artigo de 2011, “Rebels on the Street: Wall Street meets its nemesis” (Rebeldes nas Ruas: Wall Street conhece seu nêmesis), você diz que o “partido de Wall Street corrompeu legalmente o congresso por meio da dependência covarde dos políticos de ambos os partidos em relação ao poder do seu dinheiro e ao acesso à mídia comercial que o controla”. Você acredita que hoje o Brasil vive essa realidade? Porque não temos um Occupy que se contraponha à esses interesses?

É sempre muito difícil para mim avaliar cada país que visito. Não posso falar com qualquer propriedade, o que posso dizer é sobre um aspecto universal, de um poder oligárquico que tem sido construído. A forma como esse poder é usado, politicamente, mas também na mídia e na produção de conhecimento. Não sei se acontece aqui, mas nas universidades nos Estados Unidos grandes dadores fazem grandes financiamentos para determinadas questões e não para outras. Eu por exemplo, nunca tive nenhum tipo de grande doação para fazer qualquer coisa, faço o que faço sem nenhum tipo de acesso fácil a recursos, enquanto os economistas de direita conseguem 25 mil dólares por meia hora de consultoria com grandes banqueiros. Sabemos como tudo é organizado, mas como e quando uma grande expressão de descontentamento vai surgir, não sei dizer. Também existe essa questão das fronteiras entre corrupção legal corrupção ilegal, é uma área muito intrincada. A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu na década de 1970 que gastar dinheiro nas eleições estava garantido pela liberdade de expressão. “Qualquer restrição no meu direito de doar qualquer quantia a campanhas políticas é uma restrição ao meu direito de liberdade de expressão, que é garantido pela Constituição”. Definiram legalmente a liberdade de expressão como “dinheiro falando”. Você não pode atacar alguém por fazer corrupção legal dentro do processo político através de grandes doações. O interessante é que todos os partidos precisam fazer isso. No passado você via que os fundos de investimento de Wall Street de tempos em tempos apoiavam os republicanos e também os democratas, mas sempre tinha muito dinheiro nas duas campanhas. Nas últimas eleições provavelmente foi a primeira vez na qual a maior parte do dinheiro foi para os republicanos e não para os democratas. Na verdade essa é uma situação saudável, porque pode levar a ideia de que os republicanos são financiados por grandes fortunas e se os democratas fizerem as coisas direito poderão ser financiados por uma grande base. O problema é que a televisão e a mídia [vão contra essa ideia]. É preciso regular a mídia, mas o Estado não vai fazer isso por que o Estado é governado por estes interesses.

Atualmente o financiamento de campanhas está sendo discutido no Brasil. Você acha que a proibição do financiamento privado pode ser uma saída? Acho que seria a solução, é uma coisa óbvia que deveria acontecer. Fiscalizar um político ou um processo político sem banir o dinheiro que financia esse processo é como pedir para a máfia se policiar.

Na Espanha, pela recente eleição nas prefeituras de Madrid e Barcelona, alguns analistas afirmam que os manifestantes do movimento “Podemos” perceberam que a única forma de modificar a política era entrando de vez no sistema. Como o senhor analisa essa experiência?

O jeito tradicional de fazer política passa por maus tempos, é claro que não desapareceu completamente, mas vai se tornando cada vez menos eficiente. Nos últimos 50 anos surgiram novas formas de fazer política, representadas por movimentos sociais de vários tipos. Muitos deles, como Occupy e mesmo os Fóruns Sociais Mundiais, são animados por muitos autônomos ou grupos que de alguma forma são anarquistas. Temos os zapatistas e a ideia de que se pode construir uma forma alternativa de poder político a despeito do Estado, com o qual não é preciso ter qualquer relação. Então, a esquerda explorou essas formas alternativas de fazer política, o que foi um caminho bastante fértil. Mas há um grande problema, que é como pegar todas essas atividades fragmentadas e transformar em uma grande expressão política.

O que vemos tanto no Syriza, na Grécia, e Podemos, na Espanha, é o reconhecimento por parte dessas forças de que também precisam de alguma representação no processo político. Agora vemos o Podemos, que não queria nada com o Estado, participando das eleições e indo relativamente bem, fiquei bastante impressionado com isso. Começamos a ver que deveríamos estar fazendo algo dentro dessa nova forma de fazer política, guiados por esse novo grupo de pessoas. Isso aconteceu em Madrid, em Barcelona. Eles foram eleitos e de repente há uma presença eleitoral, uma expressão eleitoral de uma nova forma de fazer politica. Agora também há uma relação muito tensa entre essa expressão política e a base aonde ela foi construída. Você vê isso muito claramente na negociação do débito grego pela qual passa o Syriza. Se fosse qualquer partido trabalhista comum, eles apenas negociariam com a oposição, diriam para sua base que não poderiam fazer mais nada por falta de opções, mas eles sabem que não podem fazer isso porque estariam acabados. Justamente porque subiram de 2% para 30%, eles cresceram com uma base política que não pode ser abandonada, e têm duas opções: eles negociam e estão mortos ou se mantém coesos às propostas que os elegeram e também terão problemas. Não vejo muita saída disso, a não ser que Europa veja que isso esteja acontecendo e que haverá consequências desastrosas. Há um lado universal nessa questão, por exemplo no Brasil, onde há movimentos sociais fortes, com longas histórias, como o MST e outros parecidos com o MST, obviamente eles entraram em uma situação mais difícil.

Havia uma relação forte desses movimentos com o PT, mas o partido não tem mais a mesma ligação com as suas bases.

Esse é um problema clássico. Acredito que o MST se dividiu e não apoia mais o Partido dos Trabalhadores. É uma situação bem complicada, na medida em que o PT não respondeu nem cultivou mais sua base política, significa que abandonou grandes segmentos da população, que podem facilmente ir para a direita. Imagino que já tenham ido, mas não sei exatamente qual a base dos novos movimentos de direita.

Voltando à questão do urbano e das metrópoles, hoje há duas questões em torno do uso do espaço que estimulam muitos debates públicos acalorados e movimentos sociais em diferentes regiões do Brasil: Moradia e Transporte. Na sua opinião, esses são os elementos centrais nos movimentos sociais hoje, como eles se relacionam?

Acredito que nessa questão está subentendido o problema do acesso ao trabalho e a oportunidades. O aumento de áreas de alto valor dentro das cidades tem expulsado as populações de baixa renda, essas populações estão cada vez mais separadas da onde estão as oportunidades de trabalho e são obrigadas a gastar longos períodos no transporte. A eficiência da rede de transporte público se torna uma questão para essa população, mas é uma questão para todas as classes. Temo essa tensão de como melhorar o transporte para essa população que está sendo cada vez mais expulsa da cidade para as periferias e sem acesso adequado ao transporte. É uma questão séria em muitas partes do mundo. Eu acabei de voltar de Istambul, eles realocaram a população de baixa renda em boas casas, mas a 40 quilômetros do centro da cidade, onde não há oportunidades de trabalho. Eles levam ao menos duas horas até a cidade e mais duas horas para voltar, que tipo de vida é essa? Muitas pessoas não conseguem tolerar ou lidar com essa vida, ou conseguir dinheiro, e sofrem a execução da hipoteca dessas casas, se tornam moradores de rua e voltam para as cidades nessa condição. Esse é um tipo maluco de processo, é o tipo de consequência que você tem quando permite o livre mercado para moradias e para o uso do solo, para determinar qual tipo de moradia deve ser construída em cada local. Populações de baixa renda vivendo em locais de alto valor é uma questão sobre a qual Engels já escreveu em 1872, o que acontece é que essas populações sofrem uma pressão imensa para fora da terra. Legalmente, pelo Estado, com pedidos de reintegração de posse ou declarando as áreas como insalubres, e normalmente são, ou mesmo ilegalmente, por meio de incêndios. Por trás desse processo não está simplesmente a questão de moradia e transporte, mas o problema do trabalho e acesso a condições razoáveis de emprego. Também há a dimensão de que o tipo de emprego disponível para grandes segmentos da sociedade em geral é de zeladoria, serviços braçais, serviços gerais, que não pagam muito. Muitas vezes são empregados em setores públicos e o Estado paga pouco. Dependendo de onde você está o Estado foi privado de fundos por conta de políticas de austeridade e baixou os impostos para todos, então não há dinheiro para se pagar bem por esses serviços. Esses trabalhadores não tem dinheiro para comprar casas descentes, para garantir a educação dos filhos, todas essas questões. É uma política maluca, e ao mesmo tempo constroem-se condomínios que vão abrigar pessoas super-ricas, com piscinas e academias no alto. Nós deveríamos ir até o topo desses prédios e colocar uma grande bandeira dizendo “isto é insano”. Se você olhar para as cidades do Golfo Pérsico, por exemplo, Dubai, lá ocorre um tipo completamente insano de urbanização, que não tem nada a ver com construir moradias descentes para a massa da população.

Você publicou um comentário sobre o livro “Seventeen Contradictions and the End of Capitalism”, no qual afirma que é anti-capitalista, acima de tudo, por uma questão racional, e que atualmente fazer algo por motivos racionais é incomum e até mesmo classificado como uma falha. Você escreve ainda que o capitalismo se mantém graças à irracionalidade, como o consumo desenfreado de bens inúteis e a construção de megacidades como em Dubai. A irracionalidade está ditando todas as esferas da vida?

O capitalismo sempre teve um forte lado especulativo muito forte, com o sonho de grandes riquezas a serem feitas, e isso tem levado muitas pessoas a determinadas atitudes. No passado havia muitas opções e você poderia argumentar que isso garantia certos benefícios às populações, mas agora, francamente ultrapassou todos os limites. O consumo dos super-ricos é ridículo, e uma boa parte disso é desperdício. Por exemplo, os presentes de natal nos Estados Unidos que são simplesmente jogados no lixo. Você precisa ir encontrar um presente para todo mundo, o que significa procurar algo sem sentido para dar para todas as pessoas que conhece, é para isso que o sistema evoluiu. Eu comecei a falar que isso era insano e as pessoas me acusaram de insano, mas eu tenho que dizer que sou um ser pensante e perfeitamente racional, mas é o sistema e suas justificativas que são insanas, mas normalmente você não pode nem ao menos dizer isso na imprensa.

No mesmo texto, você diz que para ser anticapitalista não é necessário ser antirracista, antinacionalista, feminista ou pró lgbt, e vice-versa. Você dá a entender que antes de colocar o anticapitalismo nas agendas, movimentos anti-racistas, feministas ou anti-imperialistas precisam fazer a pergunta certa. Qual é essa pergunta?

Eu tento definir um número de questões a partir da forma que o capitalismo é organizado. É muito importante que essas perguntas sejam feitas em seus próprios termos. Fazê-las em seus próprios termos significa entender a natureza do capital. O capital passou a ser muito habilidoso em afastar as pessoas dessas questões. O capitalismo é muito mais simpático aos esforços pelos direitos dos homossexuais, ao multiculturalismo e em algum grau, a certos níveis de feminismo, porque ele não vê como ameaças maiores a sua dominação. Especialmente se esses esforços são mantidos o tempo todo de forma amena. Por exemplo, se olharmos para os Estados Unidos, a politica que dominou as eleições nos últimos 30 anos não é contra o aborto, direitos desse tipo, que nunca foram questões anticapitalistas. Agora começamos a discutir a desigualdade, que chega perto do que realmente é o capitalismo e a distribuição da riqueza na sociedade. Começamos a chegar à esquina do anticapitalismo.

Para ser claro, eu apoio os direitos LGBT, apoio as feministas, apoio militantes antirracismo, mas vejo muito bem em Baltimore, a cidade para onde me mudei em 1969, apenas um ano depois de uma grande erupção na cidade, que era basicamente uma forma de revolução contra o racismo. Apenas algumas semanas atrás Baltimore fez a mesma coisa. Você se pergunta qual a continuidade, se eles fizeram algo contra o racismo em 1969, por que ele continua lá? Não é só porque as pessoas são racistas, na verdade existe um processo que constrói a desigualdade social em torno de diferenças raciais, de diferenças de gênero, que na verdade está perpetuando o racismo por outras vias. De uma maneira engraçada para mim, o que aconteceu em 1969 e em 2015 em Baltimore é uma continuidade da forma como uma configuração baseada na classe, dirigida pela acumulação de capital acaba fragmentando sua oposição de uma maneira que as erupções que ocorreram tanto em 1969 quanto em 2015 não são contra o capital, mas contra instituições sociais, o aparato estatal militarizado. Estas são perguntas muito importantes para mim. Muitos de meus colegas são envolvidos com a militância feminista e antirracista e ficam bravos comigo por apontar essa continuidade e a falha em indicar o que é o capitalismo. Eu me pergunto: depois de tantos anos de esforços nos Estados Unidos, onde estão os ganhos? Muito bem, os gays podem casar, o que é importante e significante, mas para responder estas perguntas o capital pode ser bastante flexível e progressista, particularmente o grande capital. Isso não é problema para a maior parte das pessoas em Wall Street. Agora, tente regular os impostos, a riqueza e o poder desse grupo, é uma questão totalmente diferente. E eu conheço muitas pessoas em Baltimore que não são anticapitalistas. O movimento antirracista em Baltimore e em muitos lugares dos Estados Unidos quer garantir o acesso ao sistema capitalista. Eles querem se beneficiar do capitalismo, da onde são excluídos. Nos incluir no capitalismo não é lidar de fato com o capitalismo. O mesmo vale para muitas feministas que são pró-capitalistas. Dito isso, acredito que é necessário analisar a coalizão mais profícua que pode ser construída em uma frente anticapitalista, incorporando o que é o feminismo ou o movimento pelos direitos LGBT. Eu vi um belo exemplo disso na Turquia, onde o HDP (Partido Popular Democrata), que é um partido essencialmente curdo, formou uma coalizão com feministas, LGBTs, e efetivamente impediram que um ditador chegasse ao poder. Acho que esse é o tipo de coalização que precisa ser feita, como Malcom X e Martim Luther King fizeram ao aproximar as lutas antirracistas e anticapitalistas nos anos 1960, e acredito que não é por acaso que ambos terminaram mortos quando começaram a articular essa política.

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