Pensamentos Incompletos
5 min readJan 4, 2022

Mythos: insignificância do significado unívoco

Para a narrativa arcaico-hesiódica, com sua morfologia policêntrica, as seguintes percepções são dadas:

  • Narrativas míticas não têm um só significado, se esse significado é outro nome para explicação formal da narrativa. Não há significado unívoco.
  • A explicação formal da narrativa sempre presume dar conta de uma, e apenas uma, via de interpretação do mito. Essa via pode classificada em física, psicológica, ética e estrutural [aquela que reúne elementos divinos e transitórios num fundamento comum].
  • O fato de buscar dar conta de apenas uma via não quer dizer que existe apenas uma via. Por definição desta abordagem, o mito é uma narrativa possível sobre uma forma de ação estruturante conjunta [o cosmo comum]. A interpretação busca observar uma das perspectivas possíveis e toma partido dela dentro de parâmetros razoáveis.
  • A interpretação não é de suma importância na cosmologia, dado que a narrativa cosmológica em seu próprio rito busca presentificar o Ser na narrativa total, em cada um de seus significados [classes interpretativas] possíveis.
  • Deuses não estão em classes que os definem, dado que as classes só são possíveis como caminhos de interpretação da fração observada de uma narrativa específica. Cada fração observada é um bloco temporal específico dentro de uma narrativa específica, que é a imagem hierarquizada obtida à partir de um jogo de forças se estruturando. Se tantas estruturas narrativas são possíveis, e só partem dos modos estruturais que um deus traçou para si neste meio de forças co-tensionadas, nenhuma classe haverá antes da narrativa que parte de um dos modos estruturais. Os deuses não se classificam senão como ação de sua própria natureza-vontade dentro de certa narrativa distribuída [pelo equilíbrio tensional]. Deuses classificam à si mesmos no ato de suas tensões narrativas. Nada classifica um deus senão sua própria natureza-vontade. A possibilidade de classificação por meio da percepção mortal é a possibilidade fundada na narrativa desvelada [o símbolo tem muitos caminhos de apreensão]. A percepção mortal dá-se sobre uma fração observada do símbolo, que é apenas uma imagem estática de uma narrativa transcorrida.

«Pragmaticamente:

• No que consiste os termos “deus da vegetação” ou “deus da luz” quando tentando explicar a «timē» — as honrarias e domínios em determinada narrativa — de um deus? De modo arcaico-policêntrico, não há em Dióniso a incumbência unívoca de deus da vegetação, por exemplo, algo que o recolha numa classe para então determinar seu domínio. Na definição arcaico-policêntrica, Dióniso é «causa sui» de tudo a seu próprio modo, engendrando mundos ao articular sua natureza-vontade com os outros deuses. Dióniso só poderia ser deus da vegetação dentro de uma de suas várias narrativas possíveis. E ainda, não seria deus da vegetação como se da ação vegetal o deus fosse derivado, mas ao contrário, o Ser vegetal só existiria por causa do seu fundamento no «cosmo comum» onde narrativas mundificantes são imbricadas. Essas narrativas são engendradas pelas forças co-tensionadas. Nesta tensão está imbricada a força de Dióniso. Neste caso, tudo que diga respeito à vegetação está sob a ação do deus, inclusive a decrepitude invernal. E mesmo isso, o engendrar a realidade vegetal, não é como uma função única do deus, não é uma incumbência unívoca.
O mesmo poderia ser dito, por exemplo, de Apolo. A ação de Apolo é tanto luz quanto a obscuridade, tanto a cura quanto a pestilência.

Hesiodicamente, quando se afirma o nume, se afirma ele em si, e tudo que dele venha é posteriormente afirmado.

Tratando-se do rito arcaico de desvelar esse fundamento do Ser [o mistério ou arrético], na teofania presenciada e presentificada pelo rito, o deus desvela-se em tantas narrativas possíveis que é inadequado dizer que uma narrativa subsume quem ele é.

Sendo cada narrativa a coleção de forças imbricadas, forças essas que vem de uma coleção de Numes não-enumeráveis, o símbolo [a imagem totalizante da narrativa transcorrida] não terá um significado unívoco.

É dessa superabundância de formas de explicar um mito — e de modo ainda mais intenso, o rito que desvela o Ser de modo epifânico — que chegamos à noção do indizível.

Para alguns, o arrético [a experiência do indizível divino] teria sua culminância num símbolo analisável, descritível num esquema final, unificante, abstrato [generalizante]. Ou mesmo num abismo de luz onde há apenas silêncio. Acabamos de perceber que não é assim na compreensão arcaico-hesiódica, pois o ponto originário é, na verdade, supra-dizível. E aquilo que está no centro de todo silêncio é o hiato que possibilita a reelaboração daquilo que é dito. O silêncio neste centro de forças co-tensionadas não evoca a impossibilidade de dizer, mas a condição mesmo de tudo que foi, que é e que será cantado.
Muito da concepção do símbolo como unívoco busca, por exemplo, um significado final do mito ou do rito — quando o cantar e o ouvir contínuo dos mitos, e a ação ritual antes mesmo do mito é fundada num centro superabundante, onde a reelaboração dos sentidos são sempre possíveis [embora balizados por certa dinâmica do mito e do rito].

O rito, nesse sentido, tem seu fundamento no «deleite recíproco» [evkharístisi • ευχαρίστηση], onde têm encontro o fundamento de todo o sentido cosmológico possível [o deus] e o ente transitório cujos termos [limites e conteúdos] são engendrados por força do fundamento. Neste deleite, o ente transitório experiencia seu fundamento, e o fundamento experiencia o modo de existência daquilo que é engendrado. Noutras palavras, o mortal vê a eternidade, e o eterno vê a transitoriedade. A hospitalidade de um para o outro e as trocas de re-conhecimento são a reciprocidade essencial de todo vínculo legítimo [na concepção de verdade enquanto não-esquecimento, des-velamento, a-letheia].

Rito é deleite recíproco e mito é enunciação do deleitável, nunca exaurido numa leitura, mas expresso de forma múltipla por sua força de múltiplo encadeamento. Esse é o sentido do supra-dizível.

O sujeito arcaico-hesiódico [ou ainda, o teísmo arcaico-policêntrico] não se vê atado à uma leitura estruturante do cosmo, dado que para ele as estruturas possíveis de elaboração cosmológia são por definição não-enumeráveis [e assim, não subsumidas à apenas um].

O termo de todo rito é o deleite recíproco, onde o significado unívoco [a interpretação subsumente, restritiva] é insignificante frente a experiência do presentificar.

  • Blocagem #5

Pedro V. M. Costa

Pensamentos Incompletos

A busca de me colocar como meu próprio oposto, purgando a necessidade de escrita acadêmica, mesclando ela com a poesia até que o versar vença. — Pedro Costa