Daimônica Concretude [2]

Pensamentos Incompletos
11 min readAug 19, 2023

--

Άρτεμις

O último bloco fora cortado após a seguinte declaração de Aiakos Enyalios:

“Daimones existem em tantos números quantas são as possibilidades de abstração. Ou seja, virtualmente infinito. Digo, no que diz respeito a suas respectivas naturezas. A natureza de um Daimon é sempre uma abstração, certo? Quantas abstrações podemos conceber? Não vejo um número limite. Logo, em qualquer parte de uma realidade concebível haverá Daimones. Quantos deuses existem? Virtualmente infinitos.”

Acompanhando ponto a ponto da declaração de A. Enyalios poderíamos transmiti-la sob a seguinte sequência:

  • A natureza de um daimon é sempre uma abstração.
  • Um daimon e uma abstração são equivalentes, senão, idênticos [a abstração é sua natureza intrínseca].
  • Podemos conceber infindáveis abstrações. Se daimones e abstrações são equivalentes, é conceitualmente impossível enumerar a quantidade de daimones.
  • Há infindáveis daimones.

Como o propósito do presente texto não é fazer uma apologia ao politeísmo, não vamos colocar ênfase numa necessidade da existência de muitos deuses ou muitos daimones. Num outro texto, sobre Notas em Corbin, concluí que a questão sobre politeísmo versus monoteísmo pode ser uma não-questão dentro da abordagem panenteísta que aqui venho expor. Novamente, seguirei o caminho da questão e as necessidades que urgem dela.

Primeiras questões:

  • A natureza de um daimon é sempre uma abstração.
  • O que é tal abstração?

Como a declaração não me pertence, não posso teorizar como se soubesse de todas as concepções do autor. Porém, posso prosseguir dentro da minha interpretação do assunto, que será através de uma abordagem pampsiquista.

Primeiro de tudo, lanço mão da distinção de Olimpiodoro, no seu escrito “Vida de Platão”:

Deve ser entendido que há três divisões (diaphorai) de daimones, porque alguns são daimones por analogia (kat ‘analogian), outros por essência (kat’ ousian), e outros por relação (kata skhesin).

Agora, aqueles que são essencialmente daimônicos são realmente os padrões (gnmones) para aqueles que são analogicamente e relativamente assim, porque aqueles que são superiores aos daimones essenciais são daimônicos em um sentido analógico, enquanto aqueles que são inferiores a eles são [daimônicos] por relação [a eles].

[Os que são] analógicos são assim chamados porque, na medida em que estes são primários, possuem as fórmulas (logoi) dos daimones essenciais: em outras palavras, eles são daimones de uma forma causal (kat ‘aitian), porque o que possui [uma propriedade] causal é necessariamente anterior ao que [tem essa propriedade] existencialmente. O orador Isócrates também demonstra que estes [sc. Deuses] são chamados daimones, quando ele diz, ‘honrar o daimônico, sempre, e especialmente quando a cidade faz’; E Homero [diz] ‘[Athena voltou] para o meio dos outros daimones’ [Il. 1.222]; E Orfeu retrata Zeus como dizendo a seu próprio pai,”Endireite nossa raça, daimon glorioso”. Pois nestes casos, o nome ‘daimones’ é conferido ao divino.

As almas daqueles que viveram bem são chamadas de daimones pela relação – por exemplo, as almas da raça de ouro, que dependem de (skhetiks ekhousai) daimones, e que são eles próprios tratados como ‘daimones’. Assim, Hesíodo, também, diz sobre eles: “Eles são chamados santos daimones habitando sobre a terra (epikhthonioi), nobres, guardiões do mal, guardiões de humanos mortais”. Como dissemos, então, o nome ‘daimon’ é triplo.

Vou divergir de Olimpiodoro em alguns pontos, mas será por questão de concepção cosmológica, de modo a não causar ruptura arbitrária com os outros textos. Vamos começar do ponto mais anterior, que são os deuses. Ora, já disse que não apreendo os deuses como causa, no sentido de evento ou início temporal de um evento. Os fatos contingentes são todos eles abarcados pela Origem e, assim sendo, os deuses são fundacionais de todo evento em seus mais variados aspectos. Deuses são daimones não por causalidade (kat’ aitian), mas por fundação (kat’ arkhé). O que possui uma propriedade fundamentalmente ainda é necessariamente anterior ao que possui essa propriedade em seu vir-a-ser, porém essa anterioridade não se encontra no tempo e sim na base da existência em seu desenrolar [é a arquê do existir]. Deuses não são causa de um efeito, mas a base de toda causa, efeito e seus eventos intermediários. Nas palavras hesiódicas de JAA Torrano, a divindade é origem “tanto no sentido inaugural como no dirigente-constitutivo (da arkhé)” [Teogonia, pág.16].

Os daimones por relação são bem evidentes para os membros de culto aos Orixás como os egunguns e mortos poderosos que adentram nas linhas de trabalho de determinada divindade. O mesmo ocorre no Cultus Deorum romano, com o culto de mortos poderosos e ancestrais de uma família ou clã, assim como encontramos cultos aos mortos nos primórdios do culto helênico, que deu origem ao culto aos heróis. São almas que “viveram bem”. O fato de ter vivido bem não se baseia numa série de condutas universalmente fixas, mas de seguirem preceitos particulares de cada culto. Esses preceitos particulares são agenciamentos existenciais, ou seja, naturalizam no modo de vida do cultuante o paradigma correspondente. Tanto a existência de daimones deste tipo, quanto a própria existência de daimones em si, que são os assim chamados daimones existencialmente (kat’ ousian), ou ainda as almas que alcançam a bem-aventurança de ser um daimon por relação (kat’ skhesin) necessitarão de uma explicação mais detalhada, pois tratam de um modo existência da consciência fora de um corpo humano, seja no pós vida ou mesmo apartado da necessidade de uma vida corpórea. Até então, nada havia dito sobre a existência de uma vida destacada do corpo, ou ainda, da natureza da consciência dentro dessa perspectiva cosmológica – e acontece justamente que uma teoria e uma prática envolvendo a consciência é matéria fundamental no estudo e principalmente na prática da religião (tendo como horizonte a ortopraxia).

Como o trabalho aqui não é de defesa dessas teses, já amplamente debatidas e em fase de construção dentro da academia, farei apenas o trabalho de exposição possível do pampsiquismo dentro da perspectiva teológica no que se trata de daimones ou espíritos num geral. Um dos motivos para não ser defesa de tese é que, como disse, este espaço busca apenas construir reflexões sobre alguns apontamentos tradicionais dentro das religiosidades tradicionais, principalmente as de ascendência mediterrânea. A partir dessas reflexões são construídas pontes possíveis entre as atuais descobertas ou pesquisas acadêmicas e as respectivas tradições supracitadas. Não havendo ainda a necessidade defender qualquer tese, não serão defendidas teses e, quando for necessário, o espaço adequado será recorrido para tal.

Comecemos pois com o Pampsiquismo. Esta é uma posição filosófica multifacetada, tendo vários campos dignos de atenção, todos concordando no ponto em que se diz que a consciência é um atributo fundamental dos objetos contingentes, ou da matéria, ou dos eventos materialmente realizados. Uma definição múltipla da matéria também gera uma discussão múltipla e por conveniência da coesão, recorremos ao termo mais amplo possível que é consciência permeando todo evento materialmente realizado. Qual a necessidade de estender o domínio da consciência para tão longe? Essa necessidade surge quando se ergue o problema difícil da consciência e também do fisicalismo. Assim como o problema dos fatos contingentes sem fundamento nos levou à uma solução não-contingente que é Deus (ou Divindade, ou o Eterno, ou Deuses, etc), assim, do mesmo modo o problema da existência de experiências conscientes que não se satisfazem na explicação bio-fisicalista agora é respondido com uma forma mais ampla e não-fisicalista de consciência, que seria a Consciência como atributo de todos os objetos contingentes, o pampsiquismo. Recorro mais especificamente ao panexperiencialismo, por ser mais simples e não transpor tantas limitações. O panexperiencialismo diria que todos os objetos contingentes expressam algum tipo de experiência que chamaríamos de consciência, mas diferente do pancognitivismo que considera que todos os objetos tenham pensamentos aos moldes humanos, concedemos apenas que ali onde há um objeto contingente há também consciência.

Por que questionar a consciência como disparos de neurônios num cérebro complexo? Não é uma resposta adequada? Pesquisadores da própria neurociência começam a assumir que não é uma resposta completa, sendo adequada apenas para o campo cognitivo-comportamental primário (reação a eventos e pensamentos gerados), mas não da própria experiência como um todo, tanto quanto as cadeias de causa e efeito da contingência são suficientes para a física comum, mas não são explicação satisfatória da existência em seu sentido profundo. O embaraçoso da consciência é que temos experiências em primeira pessoa e não apenas interações robóticas com os eventos, não somos os esperados zumbis filosóficos que se explica pelo fisicalismo corrente. Nós não reagimos de forma apática, sendo o pathos uma questão aparentemente não resolvida. Tudo bem haver uma reação mecânica ao cortar parte do corpo, mas por quê experienciar a dor? Tudo bem reproduzir, mas por quê a experiência do prazer no ato reprodutivo? Por que essa experiência determinou nossos hábitos reprodutivos e até mesmo a nossa anatomia? Por que não reagimos apenas segundo a necessidade natural? Por que a experiência subjetiva tornou-se tão determinante? Por que a experiência existe? Por que objetos constituídos de cadeias de carbono e reações eletroquímicas expressam existência com este terceiro elemento totalmente alienígena chamado experiência?

A resposta do panexperiencialismo é que a experiência é um atributo fundamental da matéria, restando saber qual seria o nível material onde isso surge. A resposta que dou aqui entra em consconância com a definição de nível mais básico do que é material, que seria todo evento materialmente realizado. Estar materialmente realizado indica estar dentro do agrupamento dos eventos contingentes e materialmente realizados – todo evento se realiza dentro desse agrupamento, mostrando seu vir-a-ser desde o momento em que vem a ser na cadeia de eventos cotingentes. Deste modo, um animal vivo só tem sua vida no decorrer dos eventos que vive, que são eventos materialmente realizados. E mesmo depois de morto, sua matéria transcorre dentro do curso dos eventos materialmente realizados, embora não mais na forma esperada para um animal vivo, sendo chamado agora de animal morto, de carcaça, de ossos, de adubo, de solo, de nutriente, etc. O mesmo vale para todo ente, chamado de objeto, que se realiza nos transcurso de um evento. Portanto, a experiência seria um atributo potencial de todo evento materialmente realizado.

Vê-se que consciência aqui não tem o mesmo sentido para todos os entes. Entre estudiosos que entram na seara da filosofia da consciência, são conhecidas experiências mentais como o Argumento do Quarto Chinês, a questão de "Como é Ser um Morcego?", entre outros exercícios mentais que questionam nosso lugar como únicos seres que experienciam o mundo e de nossa experiência como o único tipo possível (provando isso temos corvos, abelhas, árvores, etc).

Voltando aos eventos materialmente realizados, nossa explicação para sua existência é estar suportado por um fundamento concreto não-contingente, o Ser supremo chamado convenientemente de Deus (Theótes), obviamente não no mesmo sentido que é dado pelo teísmo clássico. Do mesmo modo, a experiência partilhada desses eventos está fundada numa consciência não-contingente que é atributo da Divindade.

Aqui cabe o parêntese numa série de asserções feitas num artigo de neurociência que assim diz:

(1) Todas as coisas ressoam de alguma forma; (2) em muitas circunstâncias, as coisas que ressoam em proximidade começarão a ressoar em conjunto à mesma frequência, atingindo uma ressonância partilhada; (3) tomamos o pampsiquismo, a noção de que toda a matéria está associada a, pelo menos, algum grau de mente/subjetividade/consciência, como o nosso ponto de partida metafísico e não nos demoramos muito a explicar porque chegamos a esta posição, uma vez que esse debate é abordado noutro local; (4) a obtenção de uma ressonância partilhada é o que leva as entidades micro-conscientes a combinarem-se em entidades macro-conscientes, muitas vezes com uma transição de fase na velocidade da partilha de informação resultante dessa ressonância partilhada.

– The Easy Part of the Hard Problem: A Resonance Theory of Consciousness | Tam Hunt & Jonathan W. Schooler

É deste modo que eles resolvem um problema conhecido na filosofia da consciência como O Problema da Combinação, que consiste em saber como as entidades em nível micro começaram ou começam a combinar-se, ou ainda, por que princípio físico essa combinação acontece. É um solução muito elegante que guia-se por conhecimentos de ressonância e sua interação com conteúdos ou eventos da experiência. Minha asserção passa longe de falar de combinações microfísicas da consciência, mas concorda com a combinação por ressonância de eventos experienciais, ou seja, que há variedades de ressonâncias entre os eventos experienciais e que esses se combinam e se separam formando aglomerados de consciência, seja de forma coesa e unitária, gerando individuação, seja fragmentária e esparsa, gerando por outro lado as dissonâncias de experiência.

De forma didática, de que forma isto estaria de acordo com a teologia pagã no que diz respeito aos daimones e almas? Estes seriam tipos de consciência experienciando sua realização no transcurso de eventos contingentes. O desabrochar de uma flor, um corpo humano, cordilheiras, marés, profundezas oceânicas, estrelas, todos seriam panoramas, eventos e sujeitos de experiência em algum nível ou tipo. A Divindade estaria nas raízes dessas experiências, como protótipo da consciência e base de todo transcurso experiencial, não sendo comparável com o saber humano e nem com a ignorância do animal dormente, mas estando presente em todos os eventos.

A alma pré ou pós-morte não possui nenhuma diferenciação, pois não sabe antes ou depois, assim como num sono, o tipo de conhecimento que tem os vivos. Mas sabe ela que tem um tipo de experiencia peculiar a si mesma, como no sono com sonhos, onde o conhecimento é de outra ordem. Diria que o sonho da alma pré e pós-morte, sua experiência do mundo, está próxima das experiências de quase-morte ou de visões beatíficas, permeadas de símbolos que exibem de forma unitária ou holística (totalizante) os saberes que transcorre sob sua existência, estando ela em ressonância com as raízes da experiência (da consciência dentro dos termos do pampsiquismo). Do mesmo modo que nenhuma propriedade material se perde no vácuo, mas passa de um estado para outro, assim também a psiquê (chamarei assim daqui em diante) não é perdida no vácuo, mas entra em ressonância com o modo de existência que lhe cabe após a morte, permeando a natureza circundante e, quiçá, individuando-se em ressonâncias locais ou supra-locais – no caso de aproximar-se das raízes da Consciência, que é a Consciência Concreta Não-Contingente (Deuses).

Nas escalas de proximidade com as raízes não contingentes da Psiquê, a psiquê desgarrada de seu evento vivo torna-se ela mesma o motor contingente de eventos contingentes (tanto quanto objetos contigentes causam eventos cotingentes). Como disse outrora, causalidade contingente não dispensa fundamentação não-contingente. Em outras palavras, o fato de que uma planta nasce após o germinar de uma semente (sua causa contingente) não elimina o fato de que o evento de sua vida depende de um fundamento para o existir (Deus, Ser Concreto Não-Contingente), tanto quanto sua interação com o meio dependerá de uma base experiencial (psiquê) contingente e de uma base não-contingente, que é a mente daimônica do deus.

Aqui mudaremos as palavras de Aiakos Enyalios de modo a expressar do modo exposto:

Daimones existem em tantos números quantas são as possibilidades de experiência psíquica. Ou seja, virtualmente infinito. Digo, no que diz respeito a suas respectivas naturezas. A natureza de um Daimon é sempre uma experiência psíquica, certo? Quantos eventos experienciais podemos conceber? Não vejo um número limite. Logo, em qualquer parte de uma realidade concebível haverá Daimones. Quantos deuses existem? Virtualmente infinitos.

  • A natureza de um daimon é sempre uma experiência psíquica.
  • Um daimon e uma psiquê são equivalentes, senão, idênticos [a experiência psíquica é sua natureza intrínseca].
  • Podemos conceber infindáveis experiências psíquicas. Se daimones e psiquês são equivalentes, é conceitualmente impossível enumerar a quantidade de daimones.
  • Há infindáveis daimones.

Como lemos em Olimpiodoro, há uma distinção tradicional na teologia pagã entre os três gêneros de seres daimônicos, do modo que não podemos nem concordar de pronto com a ideia de que daimones e psiquês são idênticas, nem descartá-las de pronto. No próximo texto, trataremos das distinções e dos exemplos de daimones na literatura que indicam essa forma de animismo, aqui apoiada no panexperiencialismo.

#Pensamentos Incompletos | Daimônica Concretude II

  • Pedro V. M. Costa

--

--

Pensamentos Incompletos

A busca de me colocar como meu próprio oposto, purgando a necessidade de escrita acadêmica, mesclando ela com a poesia até que o versar vença. — Pedro Costa