Pensamentos Incompletos
10 min readJan 6, 2022

O Nefando como Relação

Neste novo passo, estamos observando o mundo hesiódico de fora, como se pudéssemos conceber a totalidade das coisas, observando que esse mundo, às vezes é apenas um fragmento da totalidade [quando canta a sacralidade de um e apenas um espaço] e às vezes vai de encontro ao Ethos de Medéia quando considera, por exemplo, que o titã Perses, O Destruidor, é o mais sábio entre todos quando há quem o possa compreender. Não pretendo dizer que o Ethos de Medéia é a mais abrangente de todas as concepções possíveis, mas pretendo mostrar como ele faz um exercício de tentar enxergar as coisas desde uma perspectiva de fora da realidade estritamente humana.

O nosso desafio começa justamente pela possibilidade de conceber algo fora da realidade humana, visto que tudo que nos referimos parece estar “dentro” de uma capacidade e possibilidade humana, pela própria condição de ser humano. Mas, é estranhamente possível, visto que nossa consciência consegue traçar panoramas metafóricos para isso, uma espécie de sinestesia da linguagem, onde conseguimos ver os sons de uma mata perfumada, totalmente selvagem — se selvageria é como se chama o mundo fora dos padrões humanos médios atuais. Essa sinestesia nos faz voltar aos tempos onde éramos meramente animais [embora sejamos ainda, de certo modo] e nos faz ir além, num tempo onde contemplamos o comportamento peculiar e vivo de um microorganismo [ou mesmo de um macroorganismo] letal à vida humana, ao mesmo tempo em que concebemos seu valor e sua existência factual, crua [se crueza é o fato que nos expõe como um entre tantos], seu protagonismo próprio dentro da história cósmica. Percebemos que o Ser e o direito à ser não é uma mera concessão humana, quando há “corpos-objeto” dos quais dependemos [como árvores] e corpos que nos têm como meros “corpos-objeto” [como uma estrela, ou um vírus] a depender da perspectiva. Mesmo quando falamos de dependência ou independência, estamos falando de concepção humana e relação. Nossa visão sobre o mundo de fora oscila entre nossa capacidade sinestésica de conceber a magnitude cósmica e nossa condição diminuta individual, ao mesmo tempo que percebe seu lugar, sempre referindo ao seu próprio lugar no cosmo. Quando nos retiramos da somatória total, podemos perceber uma lacuna nas relações que desenharam a face do globo terrestre, ao mesmo tempo que percebemos como o universo pode continuar a Ser, e por excelência Ser indefinidamente, independente de nós se nossa capacidade de sobrevivência se exaurir. Essa percepção da capacidade de Ser da totalidade cósmica é a sinestesia linguística que iremos buscar por alguns tópicos. Neste tópico em específico, usaremos apenas um pouco dela para formar a imagem de nossa relação com as ditas “forças nefandas”.

{O teste segue é sobre a face do divino que não nos diz respeito • A divindade como não exclusiva ao homem e como não existe o profano em si [absoluta ausência do divino], ou ainda mais explícito, que não há o miasma em si [absoluta poluição anti-divina] fora dos interesses grupais ou situacionais}

Num texto anterior, ao tocar no assunto sobre a relação entre o espaço e o divino, deixei algumas explicações no ar.

Primeiramente, de que tipo de relação estamos tratando? A relação entre o espaço e o divino, no caso do divino fundar o espaço. Citei a seguinte abordagem de Proclo:

O locus mítico é um nível metafísico fundacional de todo espaço-tempo possível. Proclo [In Timaeum, I•161•1-5] define esse local como intervalo [diastêma], uma topografia de padrões dispostos na ânima do mundo onde a presença é estabelecida de acordo com a receptividade local [oikeiosis].

Explicando em pormenores #1:

Certamente há locais sagrados e sob a regência das divindades em maior ou menor grau de força presentificante, porém estas mesmas localidades físicas têm seu fundamento no mesmo nível metafísico que toda localidade exprimida, algumas apenas atenuadas em sua força segundo a pavimentação profana da clareira que antes era recorte divino.

  • Logo em seguida, deixei esclarecido que já não acredito que a diferença de presentificação dê-se apenas por “pavimentação” de um recorte divino, pois mesmo o esvaziamento do antropoceno pressupõe forças que, ao serem des-encadeadas [a abertura para elas é dada], enclausuram a percepção do nume afeito ao humano.

Explicando em pormenores #2:

Locus mítico é apenas um outro modo de falar d’O lugar espiritual onde os mitos acontecem. Na leitura que tomo como ponto de partida neste projeto, chamada de arcaico-hesiódica [quando diz respeito à interpretação dada por JAA Torrano sobre a Teogonia como digressão poética de uma forma de experienciar o Ser, e que comento aqui] ou de arcaico-policêntrica [quando trata especificamente da estrutura avistada nessa interpretação de Torrano], os mitos são uma realidade estrutural. Isso quer dizer que a estrutura dos poemas mitológicos busca exprimir as maneiras de estruturação da existência cósmica, o cosmo comum que é a coleção de tudo que adequadamente existe {no passado, no presente ou no futuro [como possibilidade razoável]}, chamada de Ser na linguagem abstrata que recorremos. Por extensão, mythos é cosmologia. Os mitos exprimem a estrutura do cosmo, como ela é encadeada ou elaborada continuamente através das forças fundamentais. As forças fundamentais são a dynamis, o desempenho [atividade do] divino. Cada força fundamental parte de um centro fundante, que em Hesíodo é chamado genericamente de theos. A coleção não-enumerável desses centros é chamada Theoi, onde o plural na palavra busca emular a superabundância e a inumerabilidade dos centros fundantes. Nem theos, nem Theoi, nesse caso, busca denotar um corpo enumerável [seja ele único e só ou contável em múltiplos], mas trata-se de um modo propriamente helênico de se referir à esses centros. Traduzimos theos como deus e Theoi como deuses. Uso essas palavras no diminutivo para mostrar a condição diminuta do caráter coisificante dessas classificações frente à dignidade das identidades dos centros fundantes. Em outras palavras, a palavra “deus” diz ainda pouco sobre a dignidade do divino quando compreendida como uma classe de coisas abstratas. Por isso o substantivo próprio tem mais centralidade que o substantivo comum nessa linguagem, pois [o nome-nume] é a resposta para a pergunta sobre o centro fundante [o deus].

Nessa mesma abordagem arcaico-hesiódica, o fundamento das coisas mesmo não está num «o quê», num coisificar, mas num «quem», buscando um sujeito quando se busca a substância de algo.

  • Sobre o Espaço-Tempo:
  1. Reforçarei apenas o que já foi dito aqui para um esclarecimento e retrospectiva do que é o espaço-tempo em Hesíodo.
  2. Espaço e tempo abstratos, como contagem e magnitude, não têm termos próprios substantivos em Hesíodo, porque são vários, uma miríade não-enumerável de mundos próprios peculiar a cada deus — a coleção infinita de narrativas próprias de cada deus, onde cada um diz de si mesmo como causa de tudo que diga respeito a si mesmo; e onde tudo diz respeito à si mesmo, porque cada tempo é o mundo peculiar de cada deus.
  3. E o espaço nada mais é do que a corporificação dos eventos adequadamente possíveis dos tempos se encadeando.
  4. Cada modo de temporalidade é o mundo peculiar de cada deus. Cada espaço factual, aqui e agora, é a corporificação desses modos se encadeando.
  5. Cada instante é um encadeamento diferente onde o mundo transitório interage com os mundos adequadamente possíveis.
  6. Só podem haver mundos adequadamente possíveis por conta do encadeamento dos mundos de cada deus. Essa “adequação” é a tīmē, a distribuição recíproca de desempenho entre os deuses, de acordo com suas tensões se encadeando.
  7. O mundo adequadamente possível só pode existir por conta dessa guerra primordial [teomaquia], que não é primordial enquanto tempo passado, mas enquanto coesão tensional, marco-zero de toda tensão e que engendra o instante à partir do momento em que é recombinada.
  8. A configuração do marco-zero é recombinada a todo instante, dado que cada instante é cada combinação adequadamente possível das forças em guerra.
  9. O tempo abstrato, como movimento linear, é delineado pelo espaço, que é a corporificação [a base geométrica e tátil] sobre instantes combinados num conjunto construído para que a percepção de magnitudes [nosso modo de cognição abstrato e transitório] possa inteligir.
  10. A existência de cada ente mortal sendo, por definição, transitória para seu estado [pois a psiquê (alma) em processo de corporificação não é perdida no vácuo, mas passa por experiências dimensionais diferentes num processo de recombinação], terá também um modo de cognição que entende os processos como transitórios — ou seja, entenderá os processos de recombinação de uma forma linear, ponto após ponto.
  • O Espaço-Tempo é fruto das atividades entrelaçadas dos deuses. Os mitos exprimem a estrutura do cosmo, como ela é encadeada ou elaborada continuamente através das forças fundamentais dos deuses.

Dado a retrospectiva e o recurso à compreensão da totalidade cósmica, podemos partir para a afirmação do Ethos de Medéia:

  • O Nefando não é em-si, fora de uma relação. Não há miasma de uma perspectiva do divino.

O miasma é o encontro de sabores pungentes com doces. É desarmônico, a depender do paladar e do prato pretendido. É relacional.

O miasma é o nome comum na comunidade helênica atual para uma condição inadequada para se colocar frente ao divino. Ou ainda, para a atmosfera tátil de um espírito desagradável ao humano — em complicados termos abstrato-filosóficos de Torrano, é a paradoxal parousia daquilo que nega a existência do ser vivo. É paradoxal para o ser referenciado em específico, pois parousia significa chegada, vinda oficial, presença de fato. Então seria a presença de fato do Não-Ser. Mas como aquilo que não-é pode se fazer presente? Simples. Pois é negação apenas ao ser em específico, numa condição em específico. Não é uma negação geral da existência porque, bem, é a presença de alguém que existe, mas que nega ou desintegra o corpo de outro. Assim como o sabor pungente pode sobrepor o doce, ou combinando-se com o doce não chega a um resultado suave pretendido [como alho e mel]. A mesma força desagregante que nega um ente [como forças da putrefação num corpo] pode gerar vida noutro ente [como o adubo e sua função nutritiva num determinado corpo vegetal].

#Justiça e o Nefando Relacional
Justamente por não existir negação absoluta e, consequentemente, justiça absoluta eviterna, deslocada de seu contexto da fração-de-tempo e de comunidade de seres [ou ainda, balizada pela convenção da comunidade, como pode ser pensado no hábito abstrato], que o Ethos de Medéia é evocado. As palavras de Epicuro sobre a justiça e a ética resumiriam bem a idéia aqui proposta:

“A justiça não tem existência por si própria, mas sempre se encontra nas relações recíprocas, em qualquer tempo e lugar em que exista um pacto de não produzir nem sofrer dano. Entre os animais que não puderam fazer pactos para não provocar nem sofrer danos, não existe justo nem injusto; e o mesmo sucede entre povos que não puderam ou não quiseram concluir pactos para não prejudicar nem ser prejudicados. (…) Das normas prescritas como justas, o que é considerado útil nas necessidades da convivência recíproca tem o caráter do justo, embora no fim não seja igual para todos os casos. Se, pelo contrário, se estabelece uma lei que depois não se revela conforme a utilidade da convivência recíproca, então já não conserva o caráter do justo.”

Dito isto sobre a condição relativa do nefando [o Não-Ser, o aziago], chegamos ao ponto em que a tal pavimentação profana existe enquanto relação. O divino, enquanto conceito arcaico-hesiódico de coleção dos centros fundamentais [Theoi], abarca tudo através de sua ação conjunta. Ou seja, o divino abarca a tudo. As forças do antropoceno, esse tempo em que vivemos onde tudo é impactado pela ação humana e pode colocar a própria sobrevivência numa condição precária, estão pressupostas na existência divina. O antropoceno é um dos cenários adequadamente possíveis na interação entre o transitório e o fundamento divino.

Tanto a relativização do nefando quanto da pavimentação profana estabelece que não há receptividade ao divino [oikeiosis, nas palavras de Proclo] numa única hierarquia absoluta, mas apenas uma receptividade enquanto forma adequada de interação entre um ente e seu fundamento. E essa forma adequada sempre dependerá da modalidade de interação com a própria realidade — assim como há diferenciação de modalidade nutricional [receptividade] entre animais carniceiros e não-carniceiros com a putrefação. Ou ainda, numa linguagem ritual, há diferenciação de modalidades de culto entre os ritos cabíricos [como aos Dáctilos Ideus e seu uso de lã negra, sangue e ferro] e as formas ascéticas pitagóricas [com seu tabu à tecidos escuros e ritos cruentos].

  • Em resumo, nenhum tabu, com suas noções de nefando e miasma, exprime a totalidade de negações ou privações do sagrado. Tabus são modalidades de relação com o divino.

{Este texto é um teste de clareza conceitual. Os textos anteriores buscam dar base para esse texto e para os próximos. Todos os textos se referem uns aos outros recursivamente, para que a clareza se mostre como um campo de múltiplos centros de elucidação}

{Cada bloco começa um tanto quanto denso, buscando a luz avistada em frestas, numa caminhada em direção à uma clareira • Os pormenores nos quais explico alguma vista densa são a proximidade da luz que atravessa as folhagens}

#Errata: o conceito de Tabu necessitará de revisão, dado que há percepções no Ethos de Medéia, por exemplo, quanto à efetividade dos laços formados entre os entes e o divino. Ou seja, o nefando e o miasma são relativizados, mas para isso são determinadas as modalidades de relação. Ou seja, não são conceitos relativizados como se não existissem, mas para mostrar os contextos onde existem. Cada contexto de Tabu diz respeito à uma modalidade de relação, que diz respeito à uma condição na qual o ente se coloca para interagir com o divino. Depois de estabelecida essa condição, ela determinará os encadeamentos de laços formados, ou seja, serão o paradigma [condição ontológica] sob o qual o ente colocará sua atualização constante.

O nefando e o profano não tem existência subsumente de tudo em si, mas têm existência criterial. A carniça não é ausência de divino [pois só é possível dado a um fundamento]. Porém, carniça não é suportável para determinados estômagos.

  • Blocagem #6

Pedro V. M. Costa

Pensamentos Incompletos

A busca de me colocar como meu próprio oposto, purgando a necessidade de escrita acadêmica, mesclando ela com a poesia até que o versar vença. — Pedro Costa