myosotidium

Rafael Pelvini
7 min readMay 18, 2019

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sentado no chão do banheiro, só percebi que se passara meia hora quando meus dedos pareciam prestes a rasgar de tão enrugados pela água quente. falava comigo mesmo, contava-me histórias, ensaiava discursos de mesa de bar, elaborava o epitáfio do meu túmulo e o que gostaria de ouvir quando meus olhos estivessem fechados. também fiquei imaginando como seria quebrar-se em mil pedaços e ser um monte de cacos de vidro pingados de orvalho, e chutaria a parede dez vezes, com força, até sangrar. fodido, caminhava pelas ruas com a impressão de ter esquecido as chaves de casa num banheiro qualquer e andava assim distraído pela arbitrariedade do mundo, decidindo a roupa suja que deveria vestir, qual porra poderia engolir, que cerveja quereria beber, o nome das putas que inventaria amar. já falei pra não fumar na cama toma café primeiro trezentos reais; mas nem transamos; e ela desmontou minha incredulidade com três risadas. estamos na minha casa e você dormiu comigo a noite toda; dormimos, não transamos; eu estava nua, trezentos reais. ela desceu os dedos pelas costas do meu corpo debruçado. fechei os olhos, apagando o cigarro numa lata de cerveja ao lado do colchão. ela desvia o corpo enrolado na toalha e acende um incenso. o aroma toma o quarto por uma torre fina de fumaça. suspirei. você continua indo na macumba?. umbanda, me corrigiu, virando e me encarando com olhos repreensivos. a toalha caiu e ela sorriu. continuei de bruços. acácia, anunciou ela, para evitar pesadelos, e deitou-se com o corpo jogado ao meu. é quase meio-dia. e vai dizer que você não dormirá mais um pouco?. vou é me afogar em memórias, tinha de ser acácia?, tinha de ser sua língua na minha pele?, joguei cartas esses dias e elas me falaram que você fica o dia inteiro comigo — por trezentos reais. mantive os olhos fechados, sentindo o corpo dela lentamente contra minhas costas, os lábios sussurrando em meus ouvidos, beijando minha orelha, “perfume de flor de lótus, perfume de meretriz, perfume de flor de cactos, perfume de flor de anis…”, cantando itamar assumpção com a qualidade dum radinho de pilha, me matando com memórias aleatórias e dedos em meu cóccix, acrescentando: “eu sou sua flor azul,

A pele dele, tão alva, e seus olhos, azuis translúcidos, me faziam perder a fé nas coisas que eram certas. Com seu atrevimento de moleque de fundão de sala, Lucas me forçava vender lascívia aos anjos e minha calma ao Diabo, escondido, como quem se esgueira pela madrugada com pinga e galinha morta nas mãos. “Escreve a sigla do seu nome na minha mochila, com corretivo, só a sigla, mesmo… Isso. Agora vem aqui”. E eu ia, sempre ia, porque desejo era sinônimo de obediência para mim. Sentados na cama que fora de meus pais, olho no olho, cara a cara, ele tirava minha roupa e eu tirava as dele, e nos vestíamos com a pele um do outro; eu tornava meu olhar no dele e o puro branco de sua pele era o tremor brando da minha; e ele, azul tão claro, era a verdade precisa dentro de mim. As tardes de quarta-feira, delírios do querer, seriam apenas isto, não fossem os ritos de D. Rosângela, minha vizinha: os tambores da velha começavam a bater e tomavam a rua, os vizinhos, minha casa, meus ouvidos e o corpo de Lucas. Nu, dançava e debochava da macumba, rindo da minha credulidade; e eu, temendo o dia do julgamento, jogava o travesseiro contra ele, acorrendo para a pia da cozinha e preparando a água do chá. “Camomila? E a cachaça?”. À época, camomila e cachaça se revoltavam em meu estômago, e eu fugia da mesa do jantar, dos meus pais e de meu irmão perfeitos para me esconder sob as cobertas e abraçar meu ventre em chamas. Nunca aprendi a nomear minhas dores; apenas nomeava minhas cores: sentir o outro em segredo me fez amar e odiar em segredo, então me analfabetizava de mim e tinha pleno descontrole de. Lembro de ouvir D. Rosângela proseando com mamãe, a voz fina e zombeteira, que cinco anos tentando parar de fumar não ajudaram a diminuir as cinzas em seu corpo. Assim, com essas palavras. E, “às vezes, à noite, minha vontade é de pegar os pratos e jogá-los nas paredes”. Acrescentou: “não me controlo”. Quando minha mãe, horrorizada, disse que ela estava louca, D. Rosângela riu, “e ainda comeria o vidro, caco por caco, até sangrar”. Fechei os ouvidos, desejando não absorver nem me identificar com aquilo que ouvira escondido.

Mas eu não me controlava.

Rosângela foi nossa segunda vizinha. Falava com os olhos arregalados e a voz cadente, algo cantada. Era mórbida de tão gorda e cinza de tão escura e, à primeira tarde de tambores, a garotada da rua apelidou-a de velha macumbeira, Deus me livre. A fumaça dos incensos saía dos fundos da casa dela e chegava até a minha, separadas apenas por um muro baixo; e eu acorria para a cozinha, esquentando água para o chá, o perfume inundando minhas narinas. “Quem te ensinou todo esse medo?”, perguntava Lucas, me abraçando por trás e beijando meu pescoço. Me benzia, “quem te ensinou a não ter medo?”.

“A velha macumbeira nem sonha com o que fazemos aqui, relaxa”, e ele pegava o copo americano de papai e enchia até metade com a cachaça do alambique nos fundos, entrando novamente na cozinha enquanto dançava aos tambores de D. Rosângela, a pele clara e o corpo macio reluzindo sob seus pelos dourados, o rosto tão maroto, quase serpentino, me fitando e me dançando e me hipnotizando, pá! O copo vazio sobre a pia. “Vem”, chamava, a língua nos lábios; e eu ia, de novo: sempre ia.

Quando nos despedimos e abri o portão, D. Rosângela estava na calçada, fumando um cigarro feito à mão. O cheiro, meu deus, o cheiro era horrível, e horrorizado era meu rosto. Lucas nem ligou, tocou na minha mão como faziam os garotos e subiu a rua sem olhar para trás. Eu não soube o que fazer — se fechava o portão, se acenava para as costas de Lucas, se desejava boa tarde à velha. Optei por esta última e ganhei meio sorriso em retorno, uma baforada de cigarro, um olhar anuente… Concordando, concordando com o quê?

“Achei que a senhora estava parando de fumar”.

“É? E como sabe que quero parar?”.

Porque sou um fofoqueiro que ouve conversas às escondidas e, na realidade, sou a bicha amedrontada que dá o cu pra um garoto contra a parede ao lado da sua e ouve seus tambores e morre de medo de você contar aos meus pais — se eu ouço sua macumba, você ouve meus gemidos, sei que ouve.

Mas eu era só silêncio.

“É um vício no proibido”, disse ela, jogando a guimba no chão e pisando em cima.

e, sendo flor azul, sou única pra você. única e inexistente. por dez ou trezentos reais, você está atado em mim, porque quem mais vai passar o café enquanto você fica sentado no meu banheiro, gastando minha água, minha energia, meu tempo — minha língua?. gemi, sentindo os dedos dela, ainda no escuro, ainda de olhos fechados, ainda longe, ainda adolescente, ainda ainda. dentre lábios, anunciei … você tem aroma de adolescência,

Corri pela noite, as lágrimas sangrando o rosto. Ele havia partido, voltado para a cidade dele, me dado o chute. Parei, em choque, quando vi a cuia de barro na esquina de casa, a galinha morta, a farofa, a pinga. “Toma”, ouvia Lucas no meu ouvido, “bebe a pinga, não vai te fazer mal”. Quase vomitei. Um barulho de portão e — que rufem os tambores — D. Rosângela estava lá, acendendo outro cigarro de palha. Não sei qual foi meu combustível, se a primeira vez que o mundo me tornava em ódio, se meu segredo azul com a velha cinzenta ou se a macumba da esquina, mas, a passos decididos, ralhei com ela na rua escura: “foi para mim? Foi para nós?”. D. Rosângela riu pra dentro, algo fanha; tossiu, estendeu o braço e era como se um tapa alcançasse a minha pele — ela passou o cigarro para mim. Naquela noite, fazendo do tabaco, de Lucas e de mim mesmo um único segredo, D. Rosângela se tornou Rosângela.

mas não é minha flor azul. a flor que não existe me deixou uns vinte anos atrás; e ela tem aroma de incensos de acácia, de chás de camomila, de cachaças de má qualidade e de muito, muito tabaco.

Soube depois que Lucas casou-se, teve um casamento lindo na fazenda e dois filhos de olhos igualmente azuis. De Rosângela nunca mais soube.

a moça ri baixinho e, captura um breve momento de meus olhos abertos, gira meu corpo e diz: “vem”. saciando um solitário segredo, movendo o corpo cansado, eu ia, eu sempre ia.

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