Afinal, quanto o Corinthians deve?

Pensando em Preto e Branco
7 min readMay 6, 2022

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Saiu o balanço de 2021 do Corinthians e os números bateram com o que havia sido adiantado pelo Globo Esporte no último dia 12. Algumas informações são destaque, como o aumento nas receitas, o pagamento de parte dos direitos de imagem pendentes, e bom crescimento na arrecadação com patrocínios e licenciamentos. Mas, um item do documento gerou debate: a dívida do clube.

Na apresentação feita aos órgãos fiscalizadores do clube, a diretoria afirmou que a dívida do Corinthians foi reduzida em cerca de 4%: de R$ 949,2 milhões em 2020 para R$ 912 milhões em 2021. Mas em análises e comentários da imprensa e de especialistas, outros números surgem em contraponto ao apresentado pela gestão Duílio.

No critério utilizado pelo Globo Esporte há anos para analisar as finanças de vários clubes, por exemplo, a dívida corinthiana subiu, chegando a R$ 1,011 bilhão. Já no UOL, que recorreu a um especialista para analisar o balanço do clube, o número foi outro: R$ 973 milhões. Mas, por que essas divergências? A imprensa persegue o Corinthians? Age de má-fé para manchar o trabalho do clube? Distorce os números de propósito por cliques e engajamento?

Na verdade, não. Nada disso. Vamos entender melhor essa questão?

O conceito de dívida

Um dos pontos mais importantes sobre esse assunto é que, contabilmente falando, existem várias formas de se calcular a dívida de uma empresa. Tudo depende de quais números do balanço vão ser considerados no cálculo. Parece estranho, mas segundo Cesar Grafietti, economista e sócio da consultoria Convocados, é normal.

“Essa questão é sempre controversa. Existem algumas formas de se calcular dívida. Por exemplo, teoricamente todos os passivos são dívida, mas normalmente eu faço algumas exclusões, pois nem todos os passivos tem pagamento em dinheiro”

Não é como se o mundo da contabilidade fosse um vale-tudo; não é. Ele tem normas, que são reguladas por diversos órgãos. Um deles é o Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade (International Accounting Standards Board — IASB), que emite as IFRS (International Financial Reporting Standards). Outro é o Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), grupo formado por membros de diversas entidades, incluindo o Conselho Federal de Contabilidade, e que dentre outras tarefas ajuda a internalizas as normas do IFRS para a realidade brasileira.

Mesmo assim, a contabilidade permite interpretar os mesmos números de maneiras diferentes, sem que haja qualquer ilegalidade. E é exatamente esse o caso das divergências em torno dos números da dívida do Corinthians. Bruno Goldstein, administrador formado pela USP e que recentemente viralizou no Twitter com uma análise do último balanço corinthiano, explica:

“No caso do Corinthians, alguns analistas podem enxergar as receitas/despesas com transferências de atletas como algo ‘operacional’, ou seja, que faz parte do dia a dia do clube e que devem ser consideradas quase como recorrentes. Outros analistas preferem separar esse tipo de receita/despesa, já que é algo mais imprevisível. É realmente subjetivo”

É normal, portanto, que os números apresentados pela gestão corinthiana não sejam considerados absolutos. Eles são, na verdade, uma das formas de se calcular a dívida do clube — mas não a única. Vamos falar mais disso agora.

Várias versões para uma conta só

Na matéria da UOL, citada anteriormente, o departamento financeiro do Corinthians explicou qual o método usado pelo clube para chegar aos R$ 912 milhões: a soma dos passivos circulante e não-circulante, menos o ativo circulante e as receitas a realizar. Mas o que significa isso?

Toda dívida e obrigação financeira de uma empresa é um passivo. Salários, impostos, fornecedores, empréstimos, manutenção de infraestrutura. Ele pode ser circulante, ou seja, uma obrigação que precisa ser liquidada, paga, em até 12 meses, ou não-circulante, quando o prazo é maior.

E o ativo? É tudo que a empresa possui de bem ou direito e que pode ser convertido em dinheiro. Quando é circulante, significa que essa liquidação pode ser feita em até 12 meses, e nisso se inclui o dinheiro em caixa. Já as receitas a realizar são aquelas previstas para longo prazo — e é aqui que reside a primeira controvérsia do cálculo. Gustavo Freitas, contador formado pela UFU, explica:

“O Corinthians subtraiu do seu passivo as receitas a realizar, ou seja, uma receita que o clube obteve, que já foi lançada, mas ainda não foi recebida. Ou seja, ela ainda não entrou no caixa. Mas o Corinthians descontou esse valor do passivo mesmo assim, e dessa forma chegou nos R$ 912 milhões divulgados”

Segundo Gustavo, trata-se de uma conta perigosa, pois uma receita a realizar não é dinheiro certo, necessariamente. O provisionamento, ou seja, o registro dessa receita no balanço, deve ser feito, mas é um dinheiro do qual o clube não dispõe, logo não deveria ser descontado de um passivo que efetivamente já existe. Grafietti completa o pensamento:

“No caso do Corinthians, há R$ 24 milhões da Taunsa, que sabemos que está em atraso. Mas eles reduziram o valor da dívida. Quanto outros problemas pode haver ali? Existe uma frase célebre em análise financeira: a dívida é certa; o ativo é incerto”

O Globo Esporte, por sua vez, em análise que contempla critérios usados há anos pelo jornalista Rodrigo Capelo, especializado em finanças do esporte, considera outros números. Ao invés de subtrair o ativo circulante do passivo, como o Corinthians fez, a reportagem subtraiu o dinheiro disponível em caixa. Apenas uma mudança no cálculo, e a dívida subiu para R$ 1,011 bilhão.

É uma medida parecida com a qual Grafietti compartilha, sendo que ele possui, a meu ver, o cálculo mais pragmático dos três que conheci:

“Eu excluo do passivo tudo aquilo que não é pago em dinheiro, como os registros de dívidas potenciais ou receitas futuras — pois em ambos os casos são valores que não sabemos se existirão de fato, são apenas registros nesse momento; também excluo os adiantamentos, que costumam ser pagos com presença em campo; e o valor presente em ‘Outros Passivos’, que normalmente tem menor impacto no caixa. Então, dos ativos, eu deduzo apenas o Caixa, porque é o único ativo sobre o qual há certeza. Todos os outros podem ser recebidos ou não”

É esse cálculo que foi exibido na matéria do UOL, e que chegou ao valor de R$ 973 milhões para a dívida corinthiana. Na prática, é como se ele considerasse dívida apenas o passivo que pode ser pago em dinheiro, subtraindo apenas o dinheiro que o clube efetivamente tem em caixa.

Sobre a conta corinthiana

Mas a conta apresentada pelo Corinthians é errada? Para Bruno Goldstein e Cesar Grafietti, não necessariamente. Bruno pondera:

“Não é raro termos, nessa área, dificuldades para entender qual a conta que determinada empresa fez para chegar em um número divulgado. É claro que um clube de futebol poderia fazer um esforço para aumentar a transparência, mas essas interpretações de demonstrações contábeis são muito individuais”

Grafietti completa:

“[O cálculo do Corinthians] é uma forma de enxergar a dívida. Pouco usual, antiquado, mas válido. E é inócuo, inclusive porque falar de dívida apenas pelo número absoluto é inócuo. A dívida precisa vir comparada com alguma coisa, que no caso dos clubes de futebol são as receitas. E para isso a conta do clube é inútil, porque nela já há o impacto das receitas, é como se usássemos o valor positivo do cálculo duas vezes.”

Gustavo Freitas concorda que a conta do Corinthians é válida, pontuando ainda que independente dessa escolha do financeiro do Corinthians, o aumento das receitas do clube é algo importante e deve ser levado em consideração:

“Mesmo que parte dessas receitas ainda não tenha entrado em caixa, o aumento em si é bom. Pois isso pode significar aumento na capacidade de pagamento do clube. Mas os números parecem mostrar que a situação financeira do Corinthians mudou muito pouco, ainda”

E a auditoria? E a KPMG?

Essa é uma outra questão que normalmente fica confusa na cabeça do torcedor, que via de regra entende que o fato de o balanço ser auditado significa que aqueles números são absolutos e inquestionáveis. Isso não é uma verdade, conforme explica Grafietti:

“A auditoria apenas valida os números que foram calculados pelo clube, e tem o papel de dizer se estão corretas ou não. A forma como o clube interpreta os números é de responsabilidade dele, do clube”

O mesmo ocorre com as consultorias contratadas esse ano, exaustivamente citadas desde então pelo Corinthians como evidências de que os rumos do clube estão mudando — a ponto de o próprio torcedor assumir e repetir esse discurso. Mas, o que elas fazem de fato no clube? A presença delas no Corinthians representa alguma validação dos números que o financeiro alvinegro apresenta? Grafietti pondera:

“Falar em consultorias é um bom escudo para os clubes hoje em dia. Pois parece que a presenças delas autoriza todas as tomadas de decisão. É necessário entender o papel e a influência da consultoria no clube. No Corinthians, por exemplo, até onde sei a KPMG está apenas reorganizando as dívidas, e a Falconi revendo processos internos para reduzir custos. Caberia ao clube, no caso, vir a público para deixar claro qual o papel de cada uma”

Conclusão

Algumas conclusões ficam após todas essas explicações. Uma delas é a de que, definitivamente, a imprensa não cumpre um mau papel ao analisar as contas do Corinthians, indo além do jornalismo declaratório e apenas divulgar a palavra do clube.

Afinal, foi possível mostrar aqui que o assunto “dívida do Corinthians” é complexo e, até por isso, permite mais debate do que o clube faz parecer. Por isso, fiz o possível para tentar deixar as explicações o mais didáticas que pude, evitando ao máximo a linguagem contábil e o economiquês. O torcedor corinthiano precisa conhecer seu clube, para saber o que cobrar.

E por último, mas não menos importante: fica a conclusão de que, de fato, o Corinthians está escolhendo usar em seus balanços um cálculo de dívida que lhe permite exibir uma maior redução do índice do que outros cálculos, mais conservadores, permitiriam. Sabemos que é uma escolha legal e válida, mas é a melhor para o clube?

O mercado faz suas contas, independente do que o clube diz. De nada importa o Corinthians dizer que deve R$ 912 milhões se o cálculo mais fiel à realidade diz outra coisa. Por que assumir o risco de ver suas interpretações contábeis descredibilizadas e reclassificadas por aí?

Certamente, o futuro vai se encarregar de mostrar se o caminho seguido pela diretoria corinthiana foi o melhor. E nós vamos estar aqui pra repercutir.

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Um espaço para compartilhar ideias e opiniões sobre o Sport Club Corinthians Paulista. Mantido por Daniel Keppler e Arthur Kartalian

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