Análise do filme “Ilha do Medo”, de Martin Scorsese, a partir do conceito de projeção

Pensar Psicanálise
8 min readJun 22, 2022

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Ilha do Medo, Martin Scorsese (2010)

CONTÉM SPOILERS

É difícil negar o quão genial é o filme Ilha do Medo de Martin Scorsese, estrelado por Leonardo DiCaprio, não apenas pelos seus aspectos artísticos bem elaborados, mas sim pela quantidade de análises e observações psicológicas que pode ser feita, entrelaçando todos os pontos e aspectos que faz de seu enredo um dos mais complexos e deliciosos de assistir. Ilha do Medo (Shutter Island, no original) é situado na década de 50, na qual a fuga de uma perigosa paciente prisioneira de um hospital-penitenciária psiquiátrica, localizado em uma ilha isolada, leva o policial Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) e seu parceiro a investigarem o seu desaparecimento nesta ilha. No entanto, quanto mais Teddy absorve-se neste caso, mais ele precisa iniciar o processo de enfrentar seus próprios medos.

Utilizando alguns dos principais conceitos da Psicanálise, dentre eles o de projeção, podemos entender de imediato todo o sofrimento psíquico enfrentado pelo personagem. Ao finalizar o filme, entendemos que Teddy Daniels é, na verdade, um paciente desse hospital, já internado há 2 anos, sem a apresentação de alguma melhora, que se recolheu a instituição após sofrer o grande trauma de ter matado sua esposa devido a mesma ter afogado seus três filhos em um lago. Devido ao trauma e de não aceitar a realidade que foi instalada, este paciente — cujo nome real é Andrew Laeddis — dissociou e criou, portanto, uma nova identidade — Teddy Daniels — acusando Laeddis do então assassinato de sua esposa. Por não apresentar melhora, os médicos e conselheiros do hospital decidem por utilizar da Psicodrama para dar voz aos seus delírios para quem sabe, por fim, conseguir que Laeddis elabore seu sofrimento.

Já no início do filme, há a cena em que os dois policiais estão em um barco, indo em direção a ilha, sendo envolvido por uma neblina, caracterizando assim o inconsciente e toda a dificuldade em enxergar aquilo que está lá reprimido. Retomando o que foi dito, Laeddis, envolto de todo seu sofrimento e dificuldade em aceitar o real compartilhado que lhe foi instaurado, de maneira a tentar preservar a integridade de sua psique, dissociou: criou uma outra identidade, na qual ele seria o herói, e projetou na sua “identidade verdadeira” toda a culpa de seu sofrimento. Segundo a Psicanálise, projeção é um mecanismo de defesa primário, no qual o indivíduo expulsa de si e localiza no outro, seja um objeto ou pessoa, aquilo que ele recusa ou desconhece em si mesmo. Aqui, portanto, Laeddis deslocou para o outro toda a culpa que estava nele, que não era capaz de aceitar em si mesmo. Só que o outro, no entanto, era a sua verdadeira identidade — aquela que ele não aceitava em si, ou seja, sua Sombra.

A partir da dissociação entre o ego e a realidade, deixou-se o ego sob os domínios do Id, devido a perturbação na relação libidinal com a realidade; num segundo momento, a nova realidade é, então, edificada a partir dos impulsos de desejo do Id, pois é sentida uma intolerável frustração do desejo por parte da realidade. Talvez suas necessidades idílicas no momento eram utilizar da violência, apesar de negar, para buscar e matar o assassino da esposa. Podemos apenas supor que Andrew Laeddis estava em um movimento psicótico paranoide. Sendo assim, como forma de exemplificar, Freud aponta que

“Nas psicoses, (…) o apartar-se da realidade é levado a cabo por duas espécies de vias: ou porque o reprimido inconsciente se tornou excessivamente forte, de modo a dominar o consciente que se liga a realidade, ou porque a realidade se tornou tão intoleravelmente angustiante que o Ego ameaçado se lança nos braços das forças instintuais inconscientes, em uma revolta desesperada” (FREUD, 1996 [1886~1889])

Ilha do Medo, Martin Scorsese (2010)

Durante o filme, por várias vezes Teddy teve sonhos, delírios e alucinações de sua esposa relacionados ao fogo e a água: no qual o fogo estava sempre relacionado aos delírios e fantasias sendo projetadas; enquanto que a água simbolizava o inconsciente: cada vez mais uma aproximação da realidade. Nestes delírios e alucinações, sua esposa aparecia sempre molhada e/ou envolta pelo fogo ou cinzas, com o mesmo padrão de afirmações (“Laeddis ainda está aqui”; “Eu falei para você não vir aqui, falei que este seria seu fim”; “Você tem que matá-lo”), isto é, afirmações de seu próprio inconsciente projetadas em Dolores acusando Laeddis.

Outro aspecto interessante é o personagem George Noyce, um paciente da instituição que Teddy dizia ter conhecido. Na conversa que eles tiveram perto do fim do filme, Noyce disse a Teddy: “Você não pode descobrir a verdade e matar Laeddis ao mesmo tempo. Você tem que escolher, não entende?”. Podemos considerar esta como um dos diálogos mais importantes para o entendimento do filme e da situação em que o personagem se encontra. A questão neste diálogo está vinculada a dualidade Ego e Realidade, isto é, a verdade que ele tanto anseia por encontrar é o real do qual ele rompeu, logo o grande conflito gira em torno de se integrar ou não a realidade: ou ele finalmente a descobre ou ele mata Andrew Laeddis e continua vivendo em suas fantasias.

Há, portanto, uma sombra, uma representação, que paira em sua psique, proveniente da ruptura que seu ego teve com o real. Laeddis não conseguiu elaborar o luto do trauma que passou, especialmente por se culpar pelas mortes dos filhos indiretamente e pela morte da esposa diretamente — fato responsável pelo rompimento com a realidade. Caracterizado então como Melancolia, a não elaboração desse luto fez com que a sombra do objeto esposa recaísse sob seu próprio ego, já fragilizado. Assim, Andrew passou a se relacionar com a realidade a partir disso, ou seja, projetando nela seus delírios partindo das fantasias a respeito do assassino da sua esposa, resultando na criação de uma outra realidade.

Vale lembrar que não é apenas em Andrew Laeddis que Teddy projeta a culpa que está em sua psique. A paciente prisioneira no qual ele e seu parceiro vão investigar a fuga também é fruto disto. Em seus delírios e alucinações, Rachel Solando é uma paciente cujo crime foi ter assassinado seus três filhos. Desde o início, quando Teddy toma conhecimento do crime, ele se sente enfurecido e com aversão a mulher, dizendo até mesmo que esses tipos de pessoas deveriam ser mandados para a cadeira elétrica. Em contraponto, Dr. Cawley — um dos médicos do hospital — argumenta ferozmente que o maior problema de Rachel é que ela não consegue aceitar o que ela fez, passando a viver inteiramente em um mundo de fantasias, sem se confrontar com a realidade. Assim, vemos que Teddy projeta em Rachel a imagem de sua esposa e a raiva que sente em relação a ela — uma raiva que talvez ele entenda que não poderia sentir, por amá-la demais.

Outros pontos principais que corroboram com as interpretações acima é a importância do personagem Chuck e o próprio nome do filme no original, Shutter Island.

Com o decorrer do filme descobrimos que Chuck, parceiro de Teddy, é na verdade Dr. Sheeran, o psiquiatra responsável pelo paciente Andrew Laeddis. Em suas fantasias, Sheeran é o novo parceiro de Teddy, chamado Chuck, no qual este encontrava-se sempre presente e ao lado de Teddy. Ao ver todo o desenrolar deste personagem, notamos que Sheeran apresenta-se ao lado de Andrew a funcionar como um ego auxiliar, estando sempre à disposição do mesmo, sem o confrontar, dando o máximo de apoio possível e o levando a uma reflexão interna sobre todo o seu caso — caracterizando, assim, o reforçamento egóico. Tal processo acontece no momento em que o paciente — de forma geral — está com suas estruturas egóicas fragilizadas, não conseguindo mediar a relação entre o meio externo e interno e, até mesmo, de suas instâncias mentais. O (psicólogo) psiquiatra envolvido funciona, portanto, como um ego externo, auxiliando o paciente nesta mediação.

Por fim, como conclusão da análise, o nome no original: Shutter Island. Segundo a definição da palavra no inglês, shutter é todo objeto possível de ser manipulado, de forma a permitir a passagem maior ou menor da luz. Para entendermos sua relação com o conteúdo do filme, podemos pensar na razão a qual foi necessário que Laeddis encenasse, por meio da psicodrama, a realidade que havia criado para si. Ele precisava de algum modo elaborar seus sofrimentos e angustias ao entrar em contato com o real do qual ele rompeu, reprimindo todos os vestígios desta realidade.

Em seu inconsciente havia várias representações-coisas dolorosas, buscando um alivio através da possível vinda a consciência para elaborar esse conteúdo. Por meio de pequenos “escapes” — como se estivesse abrindo aos poucos uma persiana para deixar entrar a luz solar — essas representações foram tomando formas nas projeções, único modo que seu ego encontrou de tentar lidar com essas vindas à consciência. Em vários momentos, especialmente durante a grande tempestade que se desenrola durante todo filme, Teddy se vê cercado de vários flashes de luz, provindos de relâmpagos: uma das formas de sinalizar que as representações-coisas em seu inconsciente estavam vindo à tona, procurando uma forma de se fixarem a uma representação-palavra — que no caso do filme foi o psicodrama, como uma maneira de elaborar este trauma.

Segundo o que foi exposto acima, podemos supor que o personagem Teddy Daniels estava em um provável movimento psicótico paranoide, devido a este trauma. Ao final do filme, Andrew Laeddis pergunta se seria melhor viver como um monstro ou morrer como um homem bom, antes de ser levado para ser lobotomizado. Por fim, ele realmente entrou em contato com o real compartilhado do qual havia se dissociado, entretanto, ainda assim, ele optou por fisicamente retirar de sua mente qualquer lembrança do ocorrido, pois apesar de ter entrado em contato, não aceitou a realidade com a qual se deparou.

Referências

FREUD, S. Publicações Pré-psicanalíticas e Esboços Inéditos (1886~1889). Volume I. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.

FREUD, S. Neurose e Psicose (1924). In: ______. O Ego e o Id e outros trabalhos (1923~1925). Volume XIX. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.

FREUD, S. O Ego e o Id (1923). In: ______. O Ego e o Id e outros trabalhos (1923~1925). Volume XIX. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise Laplanche e Pontalis (1992). Tradução Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes.

(Texto escrito em 2017)

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