Rodrigo Ribeiro Pinto
20 min readMay 2, 2016

A Mulher Que Matou Lee Morgan

Photo: Francis Wolff, 6 de abril de 1957

Lee Morgan, um inflamado e extremamente talentoso trompetista, morreu muito cedo. Sua ascendente carreira foi abreviada, aos 33 anos, numa noite fria de fevereiro, em 1972, em um bar de Manhattan chamado Slug’s. Ele foi morto a tiros por sua esposa Helen, de 46 anos. Naquele tempo, Morgan estava vivendo uma reviravolta. Por anos, ele travava uma séria batalha contra o vício em heroína e justamente naquele momento estava limpo e sóbrio.

Sua apresentação no Slug’s era o assunto do momento no mundo do jazz. A casa sempre estava lotada durante sua turnê. Sua aparência era boa, sua música impecável e ele parecia estar destinado a um futuro fantástico. Foi quando o inimaginável aconteceu.

Como pode ter acontecido? Como Helen Morgan, uma pessoa que todos sabiam que amava Lee mais do que ela mesma, matou seu companheiro de longa data? O que aconteceu no longo relacionamento, de uma década, que a levou a fazer algo tão devastador para Lee, para ela mesma e para o legado que ele deixou aos outros músicos, amigos e fãs que o amavam?

A única pessoa que pode responder essa pergunta é Helen Morgan (também conhecida como Helen More). Ela foi presa naquele 9 de fevereiro de 1972, ficou na cadeia um tempo e logo foi solta em liberdade condicional. Morou no Bronx, Mount Vernon e Yonkers, em Nova Iorque, até 1978, quando se mudou de volta para sua cidade natal, Wilmington, na Carolina do Norte, para ficar perto de sua mãe doente que acabou morrendo em 1980. Helen se envolveu na Igreja Metodista, cuidou de seus netos e ingressou na universidade local onde se formou.

Ninguém sabia sobre seu passado além de sua própria família. Ela nunca falava sobre o assunto. Mas ainda tinha amigos em Nova Iorque, como a cantora Etta Jones, com quem frequentemente conversava ao telefone a respeito dos velhos tempos. Mas quase ninguém, especialmente na cena do jazz, sabia onde ela estava e não se importavam com isso. Muitos expressavam desdém por ela, outros a chamavam de assassina de sangue frio.

Mas quão frio era seu sangue? Como ela se sentia sobre a tragédia? Como foi a sua vida? Qual foi a causa para ter cometido um crime com o qual teve de conviver pelo resto da vida? Como uma garota simples, da parte rural da Carolina do Norte, se meteu nisso tudo?

Ela falou sobre sua vida com Lee Morgan numa entrevista exclusiva em fevereiro de 1996, um mês antes de morrer por problemas cardíacos em um hospital de Wilmington. Sua saúde estava piorando ao longo dos anos e ela explicou que gostaria de fazer uma única entrevista para contar seu lado da história. Disse que estava cansada e sabia que não tinha muito tempo de vida.

Helen Morgan nasceu em 1926, no município de Brunswick, Carolina do Norte, em uma fazenda perto da cidade costeira de Wilmington. Quando tinha 13 anos, a menina formosa, bonita, eloquente e bronzeada teve seu primeiro filho. Um ano depois, ela teve mais um. Ambos foram criados pelos seus avós. Ela os deixou e se mudou para Wilmington com 15 anos, para viver com a mãe. Ela disse que, nessa época, se tornou “desiludida por homens” e não se envolveu com ninguém durante o período que esteve em Wilmington. Quando tinha 17 anos, começou a sair com um contrabandista local, de 39 anos.

Certa noite Helen o viu, por acidente, contando dinheiro. “Eu nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida”, ela disse, sorrindo. “Ele começou a gostar de mim e eu peguei gosto pelo dinheiro”.

Alguns meses depois eles se casaram. Dois anos mais tarde, seu marido morreu afogado e ela ficou viúva, com apenas 19 anos. Seu falecido esposo era nova-iorquino. Seus parentes viajaram para cuidar do funeral e a levaram para Nova Iorque quando terminaram o que tinham de fazer. Ela chegou em Nova Iorque, em 1945, com a intenção de ficar apenas duas semanas.

“Eu descobri que não podia viver com a familia dele. Eles vivam no centro da cidade, nos anos 50, na 52nd Street, entre a 9th e 10th. Eu comecei a me virar e arrumei um emprego. Conheci outras pessoas e comecei a frequentar os bares. O primeiro foi o Blue Rhythm, na 145th Street, em Sugar Hill. Uma banda com três integrantes — baterista, cantor e organista. Della, mas não lembro o seu sobrenome. Deixe-me ver, Etta Jones. Comecei a conhecer todas essas pessoas. Sempre me enturmava, porque eu era muito faladeira. E admito também que não era feia, eu conseguia me dar muito bem com eles. Era convidada para os encontros afterhours. Porque depois que fechavam os bares, era aí que você realmente ouvia a música. As jam sessions, você sabe. Eles iam para os bairros e tocavam de verdade”.

“Mas, sabe, é engraçado”, ela continuou, “Eu conheci a maioria dos jazzistas através de pessoas que não eram do mundo do jazz e sim do mundo das drogas. Agora, olha pra mim, eu era uma ‘quadradona’. Era assim que eles me chamavam. Isso aí. Eu não usava heroína. Porque era esse o barato. Eles chamavam de ‘cavalo’. Você sabe. Eu conhecia o pessoal. Quem eu conhecia eram os traficantes. Eu levava para eles porque eles sabiam que eu não usava. Eu conheci os traficantes indo nos lugares dos encontros afterhours”.

Era nesses lugares que ela teve a chance de conhecer e ouvir as conversas dos jazzistas. Os ouvia falar sobre suas vidas e frustrações. Helen estava convicta de que usavam drogas para esquecer de como os donos brancos dos bares estavam usando eles, especialmente aqueles que os faziam entrar pela porta dos fundos e os que não permitiam negros na platéia.

Ela viu como isso os afetava e como quando eles usavam heroína, envoltos pela segurança dos bares de afterhours, vocalizavam seu descontentamento de uma maneira que nunca fariam no mundo exterior.

Helen acreditava que eles tinham muitas conversas sobre os assuntos do mundo e o que estava acontecendo com os negros naquela época. Ela ficou impressionada com o intelecto e tristeza ao mesmo tempo. Sabia que todos estavam “machucados por dentro”. Ela disse que sentia pena deles porque no palco e em público mascaravam e atuavam como se tudo estivesse bem. Obviamente não era o caso.

Helen explicou que os músicos falavam de como os brancos estavam roubando suas músicas, pagando a eles quase nada e como os brancos estavam trazendo toda a heroína para o Harlem. Era uma situação triste e uma ilusão para as pessoas que não estavam sabendo o que acontecia.

Sra. Morgan, contudo, tinha uma visão. “Era como se os músicos estivessem vivendo a vida. Mas não de verdade. Você só estava indo com o movimento. A única hora que você realmente é você mesmo é quando está tocando, cantando e aí esquece tudo. Você vai e toca. Era um som tão triste. Você podia ouvir a melancolia na música se ouvisse com bastante atenção.”

Helen ganhou respeito dos músicos. Tanto que começou a convidá-los para seu apartamento, na 53th Street, não muito longe de Birdland. “A casa da Helen”, ela disse, “virou um lugar onde você podia ter uma refeição confortante”. Ela não permitia o uso de drogas. Era um refúgio e um porto seguro da vida penosa dos jazzistas. Foi lá, no seu apartamento em Manhattan, durante o começo dos anos 60, que ela conheceu o jovem Lee Morgan.

“Eu conheci Morgan atraves de Benny Green, o trombonista, com quem eu estava flertando na época. Benny sempre trazia ele junto. E eu o conheci e nós conversamos. Olhei para ele e por alguma razão meu coração bateu forte. Eu disse pra mim mesma “esse garoto…”

E eu olhei pra ele e não tinha um casaco. Eu perguntei pra porque ele não tinha um casaco. Só tinha uma jaqueta. Eu disse, “garoto, está zero grau lá fora e você só tem essa jaqueta. Cadê seu casaco?”. E ele me disse que não tinha um, porque o que tinha “estava na loja de penhores”. Ele penhorou o casaco para comprar drogas. Eu disse a ele, “então, vem comigo, eu vou pegar seu casaco!”. Ele disse, “você vai pegar meu casaco?”.

Eu disse, “sim, e não vou te dar o dinheiro! Porque você vai gastar tudo em drogas. Então nós vamos até lá pegar!”.

Helen disse que era muito frio para alguém sair sem um casaco. Quando perguntou para Lee onde estava seu trompete, ele disse que também estava penhorado. Helen perguntou como ele ia trabalhar se não tinha um instrumento.

“Como um carpinteiro vai trabalhar sem suas ferramentas?”, perguntou a ele e a qualquer jazzista que via em estado deplorável. Mas ela sentiu pena de Lee Morgan, Helen pegou seu trompete e seu casaco da loja. Depois disso, ela disse, “Lee Morgan grudou em mim.”

Lee se mudou com para casa de Helen e ela “tomou controle total sobre Morgan”. Ela o alimentou, cuidou, mimou e começou a colocar sua carreira em ordem de volta. Helen começou a tentar colocar ele na cena novamente. Ela descobriu que Lee não estava trabalhando tanto, muito porque a maioria das pessoas sabiam das suas desaparições e seu vício em drogas. Ele não estava trabalhando muito, exceto pelos sábados da Jazzmobile, gravações da Blue Note e outros bicos.

Helen lembrou do tempo em que um jazzista muito conhecido faleceu e pediram para que Lee tocasse no funeral. Lee falou para Helen que não poderia tocar porque não tinha sapato. Tudo o que ele tinha eram pantufas. Eles riram quando ele falou que um de seus colegas havia comentado, “porra, Morgan, todos os filhos de Deus tem sapatos!”.

Todos queriam contratá-lo. Não era porque ele não tinha condições de se apresentar. Eles apenas se preocupavam com o fato de Lee não aparecer. Helen virou uma força estabilizadora de Lee, de acordo com ela, mas não conseguiu que ele largasse as drogas completamente. Quando Lee se mudou com ela, trouxe um amigo chamado Gary. Ela o chamava de “parasita”. Sra. Morgan disse que Gary não a suportava e que fez de tudo para causar conflitos entre ela e Lee.

Ela descobriu que deixar os malandros, folgados, fãs e drogados longe de Lee Morgan seria algo que ela teria de lidar pelo resto de suas vidas. Ela saiu do apartamento e se mudou para um outro lugar. Foi nesse período que sua persistência começou a dar resultado. Lee começou a montar uma banda e a se preparar para trabalhar novamente. Helen disse que a maioria dos donos de bares não podiam contar com ele. Alguns se “queimaram” no passado quando anunciaram Lee Morgan a semana toda e ele não aparecia para tocar.

“Se ele não ganhasse o dinheiro para poder se drogar, ele simplesmente não aparecia”, ela disse, “não havia nada na cabeça dele além de se drogar. Isso o fazia se sentir normal. Ele me disse uma vez. Ele falou que Art Blakey foi a pessoa que fez a sua cabeça. Art fez a cabeça de muitos deles. Lee me falou que perguntou a Art por quanto tempo a onda iria durar? E Art respondeu: ‘para sempre!’. Eu não estou dizendo que Art fez com que ele usasse. Só estou dizendo que ele era a influência. Fazendo ele se sentir tão bem. Entende. Eu nunca gostei de Art porque ele levou muita gente para a heroína. Todos eles estavam nessa. Eles estavam um lixo. Lamentável! Lamentável! Ah! Mas eles vinham até minha casa e eles eram bem vindos. A não ser se estivessem muito sujos. Eu os deixava entrar porque eram pessoas e eram um mistério para mim. Nunca consegui entender como alguma coisa faria alguém, no inverno gelado, zero grau, tirar seu casaco e vendê-lo. Uma vez, Gary e eu estávamos conversando e ele me perguntou porque eu nunca tinha experimentado heroína. Ele disse ‘bem, você perdeu a essência’.

Eu disse, ‘não, meu bem, eu não perdi essência nenhuma. Vendo você eu só vejo a essência. Vendo você eu vejo essência o bastante para saber que não quero! Ele me olhou e disse, ‘acho que você está certa. Você está certa’”.

De acordo com Helen, Lee era um drogado completo, no começo dos anos 60 ele teve seus dentes quebrados e havia um aparelho solto na sua boca por anos. Hele disse para ele se arrumar, para ver se ela conseguia arranjar alguma apresentação para ele. Ela o convenceu de que ele poderia tocar novamente se ele não usasse tanta heroína. Lee Morgan se internou em um hospital no Bronx para vencer seu vício. Isso significava que não haveria mais Gary. Ela nunca mais viu Gary.

Sra. Morgan encontrou um novo apartamento no Bronx quando Lee saiu da reabilitação. Foi naquele apartamento que ela foi capaz de ajudar Morgan a se levantar novamente. Helen conseguiu convencer a maioria dos donos de bares que ela, pessoalmente, ia fazer com que Lee honrasse seus compromissos. Ficou extremamente orgulhosa de tê-lo trazido de volta a vida.

“Eu nunca vou esquecer”, ela disse, “o DJ do programa negro era Ed Williams e ele estava do meu lado. Fez uma homenagem a Morgan. Algumas pessoas me disseram que ele mencionou meu nome. Ele disse, ‘apesar de tudo o que aconteceu, não podemos deixar a Helen fora disso’. Ele disse, ‘porque Morgan estava morto para nós antes de Helen aparecer na cena. E ela o trouxe de volta para nós, 5, 6, 7, 8 anos, entende? Ela nos trouxe ele de volta’”.

Sra. Morgan fez com que ele se vestisse bem de novo e que cuidasse de si mesmo. Sempre quando saía ou pegava a estrada, ela ia com ele. Lee gostava de vestir camisa e gravada e manter seus sapatos engraxados, então ela fazia com que tudo isso estivesse pronto antes das apresentações. Helen passava suas camisas porque ele não gostava de como faziam nas lavanderias. Os dois eram vistos juntos sempre, em diversos eventos sociais. Foi em um desses eventos que ela conheceu pela primeira vez o lendário trompetista Miles Davis, que era um antigo amigo de Lee. Helen disse que ele era “nojento”.

“Quando o conheci”, ela lembrou, “ele disse ‘oi’. Eu disse, ‘oi’. E ele disse, ‘e quem você deveria ser mesmo?’. Eu disse, ‘eu deveria ser… eu sou… eu não deveria ser… eu sou Helen Morgan!’. ‘Ah, você é a mulher do Lee Morgan, então?’. E eu disse, ‘sim!’. E ele respondeu: ‘acho que você sabe quem eu sou?’. Eu disse, ‘eu não tenho que saber quem é você!’. E ele riu, sabe. Ele disse, ‘vejo que você tem uma lingua afiada’. E as palavras que ele disse foram assim, ‘eu não mexo com umas vadias de boca grande’. Essa era uma das suas palavras favoritas. E eu disse, ‘bem, eu não me considero assim. Mas, você sabe, não temos nada para dizer um ao outro mesmo porque eu não toco trompete, eu não posso falar sobre música com você, entende’”.

A primeira banda de Lee Morgan, de acordo com Helen, após sua reabilitação, foi um jovem e impressionante quinteto, muito energético ao vivo e inovador, no auge do post-bop, na cena funky soul jazz do fim dos anos 60 e começo dos anos 70. Era conhecido como um grupo que se aventurava em algumas tendências de vanguarda, mas sempre mantendo a essência do soul, do funk e do balanço. A banda era formada por Lee nos trompetes, Harold Mabern no piano, Jyme Merritt no baixo e Billy Higgins na bateria. Os substitutos, sempre que precisavam, eram Cedar Walton, no piano, e Herbie Lewis, no baixo.

Havia um outro jovem na banda chamado Frank Mitchell. Segundo a sra. Morgan, o encontraram morto no Rio Hudson. Ela estava certa de que alguém o havia matado, mas não disse porque pensou nessa possibilidade. Frank escreveu a música “Expoobient” do álbum com o mesmo nome. Helen agenciou a banda de Lee e a manteve em turnê em lugares como a California, por exemplo, durante um mês. Duas semanas em Redondo Beach, Los Angeles e duas semanas em São Francisco.

A banda também tocou em Chicago por duas semanas e em Detroit, na volta para costa leste, onde Helen arranjou apresentações nos maiores bares de Nova Iorque e outras cidades. Ela também programou um show na ilha caribenha de Antigua, que foi um sucesso. De 1965 até 1970, Helen era a pessoa de confiança de Lee, sua empresária e porta-voz. Se alguém ligava no seu apartamento e perguntava sobre trabalho, ele passava o telefone. Ela negociava com os contratantes, agendava os voos, os transportes necessários e estadias em hotéis.

Enquanto isso, Lee se concentrou em praticar com sua banda e gravar. Deixou ela cuidar dos negócios. Sem dúvida a amava e respeitava, tanto que escreveu uma composição chamada “Helen’s Ritual”, que foi inspirada nos momentos em que a observava se aprontando para sair, passando creme em suas pernas e no resto do corpo. Ela não era apenas a empresária da banda, mas também a cozinheira, treinadora, fã e, possivelmente, a melhor crítica.

A sua frase favorita quando a banda tocava bem era “Go head Morgan! Go head Morgan!”. Ela disse que Lee dava risada e as pessoas, incluindo os membros da banda, riam dela também. Helen não se importava. Ela continuava dizendo “Go head Morgan! Go head Morgan!” porque fazia os membros da banda se sentirem bem em saber que alguém estava ouvindo e, mais importante, porque fazia ela se sentir bem. Em Rhode Island, no festival Newport Jazz, a música não ficou tão boa.

“Estavamos em Newport. Eles estavam bebendo. Toda aquela bebedeira. Eu disse, ‘vocês estão parecendo criancinhas’. E eu… ‘eles costumavam dizer que se eu não dizia nada é porque eles não estavam fazendo nada. Eu só fiquei sentada olhando para eles. Eu disse, ‘vocês estão parecendo criancinhas’. E aí Miles disse algo a eles e Morgan disse em seguida: ‘sim, foi isso mesmo o que minha esposa acabou de me falar, que eu parecia um garoto e que a gente estava tocando igual criancinhas’. Miles disse, ‘bem, ela estava certa!’”.

Os bons anos para os Morgans foram quando Lee estava trabalhando e tomando metadona. Helen estava conhecendo pessoas de alto escalão, personalidades do show business, os quais ela e Lee entretinham em seu apartamento, no Bronx. Ambos gostavam de uma festa. Foi em uma das festas de afterhours que ela conheceu um visitante curioso. Ela conheceu o saxofonista Gerry Mulligan, um garoto branco, alto e bem vestido, sentado em uma almofada na sua sala, no meio do mar de rostos negros.

Pelo tempo e lugar que se encontravam, o fim dos anos 60, durante os últimos estágios do movimento dos direitos civis e o começo do violento fim do movimento, Mulligan era mais do que um garoto branco corajoso. Ele estava fora de si e do seu lugar. Especialmente para Helen Morgan, a garota de fala rápida, da Carolina do Norte que no momento estava vivendo no auge e intensamente.

“Nunca vou esquecer a festa que dei e Gerry Mulligan veio à minha casa. Eu não sabia quem ele era. Eu não sabia nada sobre Gerry Mulligan, entende. E ele estava lá sentado… Eu vi aquele garoto branco sentado em um canto. E, sabe, nós temos um hábito, você sabe o que falamos, ‘Nigger!’. Você sabe que nós nos chamamos de Nigger. (Risos) Pense só nisso. Porque era só amor! Então eu nem percebi quando ele estava lá. Mas alguém disse alguma coisa e eu disse alto, ‘Nigger, você tá louco?’. E eu virei e olhei para aquele cara branco e fiquei envergonhada. Então disse, ‘bem, agora eu já falei. Quem é você?’. E alguém respondeu, ‘Esse Gerry Mulligan’. E eu disse, ‘e daí?!’ (Risos). Então Morgan veio até ele e disse, ‘essa é minha esposa Helen’. Eu não era a pessoa mais adequada também. Eu não vou dizer aqui que eu era uma pessoa legal porque eu não era. Eu era uma que te daria um corte. Eu era afiada. Eu tinha de ser. Eu tinha de ser afiada. E Gerry Mulligan ficou sentado lá e eu disse, ‘bem, sinta-se em casa’. Ele ficou sentado lá porque na sala não tinha cadeiras. Sentava-se em almofadas e coisas parecidas. Ele sentou e comeu. Eu sempre tinha muita comida. E você se servia e também curtia a festa. Eu não servia ninguém. Eu fazia a comida. Mas não ia ficar servindo ninguém. Uma vez, eu fiz uma brincadeira”, ela continuou. “Eu tinha rapé (risos) e era um tipo estranho de rapé. E eu dei essa festa (risos). E eu falei para todos que era cocaína nigeriana. Eles fingiram e falaram que estavam chapados. E eles se queimaram. Eu falei, ‘fiquem de cabeça para cima’. Eles começaram a pular. Era marrom… Cocaína nigeriana. E eu ri. Eu e meus amigos fizemos isso. Nós pegamos eles. Alguns nunca tinham estado lá… Lembro que dias depois vi duas pessoas. Lembraram de mim e me disseram o quanto foi divertido a festa na minha casa e perguntaram se eu tinha mais daquela cocaína? Eu disse, ‘que cocaína?’. Eles responderam, ‘aquela da Nigéria que você tinha’. Eu falei, ‘não!’. Agora você vê como é a cabeça das pessoas. Eles não estavam chapadas. A gente tomou vinho. Eles estavam loucos de vinho e de fumar baseado. A gente tinha cocaína, mas eu não ia desperdiçar toda minha cocaína e eles não teriam nada”.

Helen riu quando falou dos tempos felizes, quando Morgan estava fazendo dinheiro. Ganhou dinheiro com o seu disco de sucesso “Sidewinder”, mas ela insistiu que ele gastou tudo em drogas. Sra. Morgan falou que durante esse período (1965 até 1970), Lee estava usando grandes quantidades de cocaína. Ele tomou o rumo dos antigos viciados em heroína, que quando estavam no tratamento com metadona, mas em vez disso, aplicavam cocaína, pois achavam que não ia fazer mal. Aquele pó branco não era heroína.

Era como saltar de uma panela fervente para uma frigideira, trocando um mal hábito por outro. No caso de Lee Morgan, foi isso o que aconteceu, de acordo com ela, e ainda muito pior. Ele começou a ficar nas ruas e muitas vezes não voltava para casa durante dias. Helen começou a pensar que os maravilhosos e divertidos tempos estavam chegando ao fim. Foi nesse período que começou a se questionar: “Eu amo ele? Ou ele é uma posse minha? Penso que essa parte pode ter sido minha falta porque talvez eu estivesse sendo muito possessiva ou muito parecida como uma mãe para ele. Eu era muito mais velha que Morgan. Ele tinha seus trinta e poucos anos quando morreu e eu estava no fim dos meus quarenta. Para mim, era como se tivesse feito ele. Sabe como? Eu o trouxe de volta. Você pertence a mim. Você não pode sair e fazendo o que quisesse. Ele começou a sair com uma garota e eu percebo agora. Eu estava em cima dele por usar muita cocaína. Ela estava usando com ele. Ela estava injetando com ele. E você sabe o que isso significa? É muito rápido. Você não dura muito quando cheira, menos ainda quando você injeta. Ele tinha toda hora. Eu falava, ‘você está injetando, está usando muita cocaína. Você está usando muito. Está comendo. E seus nervos?’. Acho que eu comecei a soar como uma mãe. E essa garota, ela estava atrás dele fazia tempo. Quando ele estava numa pior, ela não aparecia. Quando ele tinha, ela queria estar com ele. Eles saíam juntos. Lee tinha alguém da idade dele para brincar.

Eu via ela em casa, às vezes. Ia ao banheiro e eles estavam lá. E eu falava, ‘é melhor você se cuidar, menina’. Dizia a ela, ‘melhor você se cuidar’”.

Pouco tempo depois, Helen parou de ir aos bares ver Morgan tocar, porém, continuava lidando com seus negócios e eles continuavam vivendo juntos. Continuavam saindo juntos em público. Quando ele era convidado em especiais da TV, era Helen quem o acompanhava, nunca sua nova namorada. Essa situação incomodou tanto a Sra. Morgan a ponte de ela tentar suicídio engolindo veneno. Lee estava em casa quando aconteceu. Ele pediu um táxi e a levou até o hospital para limpar o estômago. Quando Helen se recuperou por completo, teve uma conversa sincera com Lee sobre o futuro incerto. “O que eu preciso é me separar”, ela falou a ele. “Vá em frente e fique com ela e eu continuo a fazer seus negócios. Mas o que você está fazendo não é certo. Eu não sou dessas mulheres que falam, ‘sou sua mulher titular e você tem outra por aí’. Eu não sou assim. Essa não sou eu. Eu não sou mulher titular se você me deixa sozinha aqui todas as noites e está lá com outra pessoa!”.

Sra. Morgan disse que pediu a Lee que fosse embora, mas ele não ia. Ele não estava seguro o bastante para viver com sua nova namorada, segundo Helen, porque tinha noção que aquilo não traria nada, a não ser deixá-lo na pior. Lee estava convencido que Helen havia trazido a estabilidade que tanto procurava. Helen disse a ele que não fosse embora. Ela iria para Chicago visitar uns velhos amigos.

Helen disse também que não sabia se iria voltar e que talvez só voltaria se ele melhorasse.

“Inclusive me sentei e conversei com a garota”, ela explicou. “Disse à ela: não quero que você pense isso… Eu não sei o que ele está te dizendo. Mas vá com ele. Não quero ele implorando pra eu ficar. Esse domingo ele implorou pra eu não ir. Ele disse, ‘Helen, não vá para Chicago. Eu não quero que você me deixe’. Eu disse, ‘nós não podemos viver assim. Essa não sou eu’. Não fui para Chicago. Por conta disso eu disse a ele, ‘sabe Morgan, estou cometendo o maior erro da minha vida’”.

Essa se tornou uma profunda e profética frase. A levaria a ter uma atitude estúpida para uma mulher que havia feito tudo certo até aquele ponto. Ela continuou em casa e Lee até voltou uma noite ou outra depois da discussão. Mas não durou muito. Antes do fim de semana, ele já estava nas ruas, com seus amigos, injetando cocaína até o amanhecer. Ele estava trabalhando no Slug’s, um bar no centro da cidade. Helen havia fechado com os proprietários para que Lee tocasse aquela semana toda. Era fevereiro de 1972. Ela prometeu ao dono, como tinha feito muitas vezes no passado, que Lee estaria lá. E ele realmente apareceu, com seu quinteto. Tocando bem e sendo bem falado. Era o que não podia se perder na cidade. Diante disso, era impossível prever o que estava por vir. Foi na última apresentação no Slug’s.

“Naquele sábado, eu não sei o que tomou conta de mim. Eu disse, ‘vou no Slug’s’. Ele estava trabalhando a semana toda e eu ainda não tinha ido lá. Tinha uma arma. Foi ele quem me comprou porque disse que não ficava em casa muito tempo e queria que eu me protegesse. Coloquei a arma na minha bolsa. Um amigo, chamado Ed, estava lá em casa comigo. Ed era gay e conhecia todos os músicos. Eu disse, ‘Ed venha comigo’. Ele disse, ‘não vá, não vá lá’. Respondi, ‘estou indo, vou dar um pulo no Slug’s e dizer oi. Depois eu vou pro Vanguard e ouvir o Freddie’. Peguei um taxi e fui até o Slug’s. Morgan veio até onde eu estava e estávamos conversando quando a garota chegou lá e disse, ‘eu pensei que você não estava mais com ela’. Ele respondeu, ‘eu não estou com essa vadia, eu estava dizendo pra ela me deixar em paz’. E foi aí que eu bati nele. Estava sem meu casaco, mas tinha minha bolsa. Ele me jogou pra fora do bar. No inverno. E a arma caiu da minha bolsa? Eu olhei pra ela. Levantei e fui até a porta. Acredito que ele tenha dito ao segurança que eu não poderia mais entrar. O segurança disse pra mim, ‘senhora Morgan, eu odeio ter que te dizer isso, mas o Lee não quer deixar você entrar’. Eu disse, ‘ah eu vou entrar!’. Acho que o segurança viu a arma na minha mão, então respondeu, ‘sim você vai entrar’. Morgan estava correndo até mim e tudo que pude ver era fúria em seus olhos”.

Foi aí que sra. Morgan atirou em Lee e seu mundo mudou após aquele disparo. Ela entrou em pânico e jogou a arma no balcão do bar. Um pandemonio se formou e as pessoa esvaziaram o lugar correndo. A polícia e uma ambulância chegaram na cena do crime. Helen ficou sentada no meio de tudo aquilo em completo transe, pensando que aquilo poderia ser apenas um sonho ou um pesadelo.

“Corri onde ele estava e pedi desculpas. E ele disse para mim, ‘Helen, eu sei que você não quis fazer isso. Me perdoe também’. Lembro dos policiais me tirando de lá. Fiquei histérica. Parecia que todo mundo tinha ido embora. Não sei onde foi parar a garota. Nunca mais a vi. Acho que ela pensou que era a próxima vítima. É engraçado, ela nunca mais passou pela minha cabeça. Depois do tiro, eu não tinha um casaco. Não tinha a bolsa. Não tinha nada. Só estava lá sentada. Parece que não registrei. Eu disse, ‘não posso ter feito isso. Não posso ter feito isso. Só pode ser um sonho e logo vou acordar. Não posso ficar sentada. Fui até uma cadeia e sentei. E na manhã seguinte eu tinha que ir ao tribunal. Meus filhos estavam arrasados. Eles não sabiam o que pensar. Mas os músicas estavam lá. Elas estavam lá. Todos me falavam, ‘não se preocupe, não se preocupe. Estamos com você. Não se preocupe. Vamos arranjar um advogado. Não se preocupe’. O advogado me orientou a dizer que eu era inocente. Inocente. Eu não entendia, eu disse, ‘bem, eu matei ele. Eu sou culpada, entende?’. Mas fiz o que ele disse. Então voltei atrás. Quando eles ouviram as testemunhas, minha mãe foi lá. Estava traumatizada por não acreditar. ‘Essa é minha filha!’. Eu disse a mim mesma, ‘bem, Helen, você tem que se recompor. Está feito. Você se colocou nessa. Então, se recomponha. Precisa começar a pensar. Tem que se recompor mentalmente para aceitar o que fez’”.

Helen disse que passou muitas semanas na cadeia de Riker’s Island antes de perceber que ninguém ia ajuda-la a não ser ela mesma. Demitiu seu advogado depois que ele a visitou apenas uma vez. Seus apoiadores foram familiares e amigos próximos que permaneceram ao seu lado, dentro e fora da prisão.

Só quando ela saiu de Nova Iorque, após 20 anos, com a saúde debilitada, rumo ao Sul da Carolina do Norte, onde sua vida havia começado, que ela decidiu conceder essa entrevista e falar sobre o triste e trágico evento que desencadeou a sua decadência, sendo desde “esposa de Lee Morgan”, uma mulher possessiva até devota, até a amorosa e fiel mãe e avó, conhecida como sra. Morgan. Menos de um mês depois desta entrevista, em fevereiro de 1996, a canção de Helen chegou ao fim, uma última nota, quando seu frágil coração parou e ela faleceu no hospital de Wilmington, na Carolina do Norte, rodeada de seus entes queridos.

por Larry Reni Thomas
tradução Rodrigo Ribeiro Pinto
revisão Jadson André

Rodrigo Ribeiro Pinto

Eu rimo na memória, no papel sai diferente, ideia transitória, na minha voz literalmente