Curas para a gripe espanhola: teve até treta de farmacêutico em 1918

Quinino, cigarro, limão, rapé, coca, elixir, emulsão e reza. Tanta coisa que experimentar todas provavelmente te deixaria mais doente que a própria “hespanhola”.

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8 min readApr 25, 2020

Inúmeras “curas” têm aparecido pra COVID19. Tem desde fake news no grupo de WhatsApp da família, até o próprio governo alardeando uso de remédios ainda sem eficácia comprovada. O texto de hoje é sobre esse fenômeno... em 1918.

Esse texto foi realizada com pesquisas em diversos jornais do Brasil feitas pelos estudantes da UFSM Aislan Soares Viçosa, Alícia Quinhones Medeiros, Amanda Schirmer de Andrade, Angelita Rubin, Danielli Pedroso, Gabriel Rohr, Isadora Campo, Maria Eduarda Mendez, Nadine Aguiar, Nicholas Abadi e Pietro Henrique Mello de Oliveira.

Os remédios, elixires e tratamentos homeopáticos que vamos falar sobre hoje apareciam em grande número nas páginas dos jornais. E sem qualquer comprovação científica.

Um dos primeiros produtos a serem indicados para tratamento era o sal de quinino. Houve uma verdadeira corrida ao sal após as recomendações do uso deste produto nos principais jornais do país. O governo chegou a confiscar importações do sal nas alfândegas para uso terapêutico.

O produto ficou muito caro e várias iniciativas surgiram para garantir o sal a preço baixo para a população. Alfredo Leal, proprietário da farmácia Colombo, afirmava vender o sal por 300$ ou invés de 400$, o preço normal, por conta da “hespanhola”.

Passados mais de cem anos, há quem afirme hoje que o mesmo quinino pode tratar a COVID19. Fazem alusão ao quinino como sendo uma molécula análoga à hidroxicloroquina e incentivam (de maneira irresponsável) o consumo de produtos com este composto.

Ainda que as moléculas sejam análogas (a hidroxicloroquina foi produzida para ser uma forma sintética do quinino), você precisaria beber 34 latas de água tônica para ingerir a quantidade de um comprimido que é tóxico e nem tem sua eficácia comprovada.

Um dos mais famosos medicamentos daquele tempo, a Emulsão Scott (um tônico fortificante), apareceu prontamente para tratar as “convalescenças da hespanhola”. Publicidades como esta foram encontradas em vários jornais do Brasil.

Remédios homeopáticos apareciam oferecendo a cura da “hespanhola” em 24 horas, como o “Allapenitum”, “a homeopatia triunfante na cura da grippe hespanhola”. Afirmava que 9 mil frascos foram produzidos em 10 dias e que foram oferecidos ao presidente e distribuído aos hospitais.

O “Thermothol” e o “Antipapyrus” eram outros remédios homeopáticos que também ofereciam cura rápida da “hespanhola”. Na época, não haviam normas para publicidade, os anúncios eram propositalmente feitos para se confundirem com as matérias.

A “Grippina” era também usada na prevenção. Foi dada gratuitamente ao jornalista de O Combate, que fez o famoso “jabá” no meio de uma matéria sobre “a indecorosa especulação”. Imagina a vlogueira puxar um comprimido no meio do vídeo de recebidinhos (e nem avisar que é publi).

Em Pernambuco, havia uma receita de um espírita contra a gripe espanhola. Segundo ele, pelos exagerados preços dos medicamentos estabelecidos nas farmácias, era necessária a criação de um remédio que fosse acessível à todos. Afirmava ter curado 120 pessoas com tal medicação.

Também em PE eram anunciados os famosos elixirires, como o “Elixir Sanativo”, capaz de imunizar a população contra a influenza caso fosse utilizado regularmente e da maneira sugerida.

Em Porto Alegre, era o remédio homeopático “Chininum Arsenichosus” o que se apresentava como o “mais poderoso preventivo” contra a epidemia de influenza.

Outros medicamentos se apresentavam no tratamento dos enfermos. Era o caso do tônico “Vanadiol” e o “Contratosse”, que faziam publicidade de sua capacidade de recuperar os atingidos pela gripe espanhola.

Mas nem só de remédios viviam as expectativas de prevenção e cura. As receitas populares se multiplicavam e eram amplamente divulgadas na imprensa do país: era alho, canela, limão, vinagre, guaraná, vinho, whisky, conhaque, pinga, raízes de plantas e até cigarro e rapé!

O vinagre produzido na usina São Gonçalo aproveitava as recomendações médicas de higienização dos alimentos com este produto para fazer publicidade do seu vinagre como o “melhor remédio preventivo contra essa perigosa moléstia”.

No Maranhão, o xarope “Peitoral de Contra-Herva e Jambú Composto” combatia as tosses da gripe espanhola “sem ter falhado em um único caso”.

Em Pernambuco, o Guaraná da Pernambucana afirmava que seu consumo evitava o contágio da “influenza hespanhola”.

Este jornal trata do uso de homeopáticos à base de sene, mas principalmente uísque ou conhaque com limão. Os bares ficaram sem as bebidas. Os limões explodiram de preço e sumiram do mercado. Quem não tinha dinheiro para uísque ou conhaque, usava Cara Preta mesmo, uma pinga.

A gente ñ sabe, mas dizem que foi desses tratamentos que surgiu a caipirinha. Os limões viraram produto de luxo, como atesta esta notícia do Jornal O Norte, da Paraíba, em que se dão receitas caseiras com limão e, na falta deste, alho. Imagina uma caipirinha de alho, que horror.

O Jornal, do Maranhão, reproduzia notícia do jornal italiano Corriere della Sera, em que se indicava o consumo de rapé para “sustar o desenvolvimento do bacilo” da influenza espanhola.

No Rio, o vinho “Guaraná de Marinho” fazia propaganda sobre sua capacidade de combater o estado de fraqueza dos doentes, com ingredientes como guaraná, cola, quina e coca.

Na Paraíba, uma mercearia anunciava o vinho “Jerez Quina — Cruz Vermelha”, como produto com “resultados satisfatórios na cura da influenza hespanhola”.

Havia as propagandas de chás que curavam uma série de debilidades ao mesmo tempo. Um grande pacotão de curas doenças! Como o chá “Cholerinicida”, feito de uma erva brasileira.

Até cigarro foi propagandeado como possível produto preventivo da “hespanhola”. Uma reportagem de O Norte (MA) informava que um telegrama do Rio de Janeiro noticiou que os médicos do exército recomendavam o fumo como medida preventiva à epidemia.

Um repórter percorreu fábricas de cigarros na cidade da Parahyba do Norte (atual João Pessoa) questionando os proprietários se seus funcionários estavam adoentados da gripe. Como nenhum operário fora acometido pela peste, a conclusão foi de que nicotina é um ótimo desinfetante.

Assim como a hidroxicloroquina não está sendo usada em larga escala por conta da falta de estudos comprovados e pelos efeitos colaterais que vêm sendo relatados, na gripe espanhola vários produtos foram causa de polêmicas.

Em Santa Catarina, em 1918, o jornal O Estado (SC) anunciou que uma pessoa havia doado grande quantidade de raiz de guiné, uma planta medicinal da qual se faz chá, para ser dada aos pobres.

O farmacêutico João de Souza Medeiros precisou enviar uma carta ao jornal avisando que a raiz de guiné não tem propriedades contra a influenza. E ainda tem graves efeitos colaterais.

No dia seguinte, o farmacêutico Francisco Pereira Oliveira Filho contesta a carta de Medeiros. Alegou que Medeiros não conhecia as propriedades de cura do guiné e que: “o uso diário que a população vem fazendo desta planta desmente cabalmente as palavras do sr. Medeiros”.

A questão só se resolveu dias depois. “As boas causas sempre triunfam”, escreveu o sr. Medeiros. A Inspetoria de Higiene havia proibido a venda da planta, pelo perigo à saúde pública. Toda quantidade que fosse encontrada à venda, seria apreendida e o vendedor seria multado.

E curas milagrosas, que não precisam nem da presença (em corpo) do paciente? Era o que prometia Antonio Lopes Gil em consultas diárias das 6h às 19h, usando o “don que Deus” deu a ele para curar. Era só levar o nome do doente (e pagar) para garantir a cura.

A revista carioca Fon-Fon ironizou a enorme quantidade de anúncios que saíam nos jornais prometendo a cura ou tratamento da “hespanhola”: “Neste momento, à falta de afirmação positiva da ciência, toda a droga cura o já célebre mal”.

Como podemos ver, na pandemia de gripe espanhola, por todo o Brasil surgiram curas e tratamentos rápidos, eficazes e milagrosos. O desconhecido da pandemia aguçou o imaginário da população (e os bolsos de quem queria lucrar com o momento).

Não faltam supostas curas hoje em dia também. Algum dos que você leu sobre nessa thread te lembrou de alguma notícia ou corrente de WhatsApp de hoje em dia? Tem algum tratamento de hoje tão absurdo que você acha que vai ficar pra história? Responde aí pra gente conhecer também!

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Divulgação científica em história. Uma produção da Universidade Federal de Santa Maria.