O movimento monarquista de hoje busca fazer um uso público do passado. Como isso acontece? O que significa?

Manifestações recentes apresentaram uma variedade de símbolos monarquistas, pessoas fantasiadas de cavaleiros cruzados e iconografia nazifascista. São tentativas de usos públicos do passado.

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6 min readJul 17, 2020
Fotografia de Alexandre de Almeida

Os novos defensores da volta do regime monárquico têm dado as caras desde 2016 e moldam sua narrativa buscando no Brasil Imperial um modelo de país. Esse tipo de movimento não é novo. De fato, é tão velho quanto a república, que iniciou em 1889.

A Ação Imperial Patrianovista (AIPB) foi fundada como movimento político em 1928, buscando recriar uma monarquia assentado em três grandes pilares: o rei, a Igreja Católica e as corporações medievais.

O movimento foi formado por diversos intelectuais que integraram a Sociedade de Estudos Políticos (SEP), grupo criado por Plínio Salgado. A SEP daria origem a Ação Integralista Brasileira (AIB), mas os Patrianovistas se desvincularam da AIB quando esta optou pelo Republicanismo.

O Patrianovismo dizia em seus manifestos que não era conservador.

“O PATRIANOVISMO não é conservador, porque há muito e muito que destruir na decadente, injusta e anti-cristã sociedade moderna, o PATRIANOVISMO é renovador, pois não merecem conservação os vícios de uma sociedade infame que traiu a Deus, ao espírito, à inteligência e ao próprio sensível do homem, tendo no entanto na boca, muitas vezes, as mais belas máximas cristãs e humanas”

Em seu surgimento o grupo era apoiado diretamente pelos descentes de D. Pedro II, que viveram no exílio na França entre 1889 e 1920. Nas publicações da AIPB, o imperador escolhido era intitulado de D. Pedro III, bisneto da princesa Isabel.

A AIPB inspirava-se em movimentos semelhantes que haviam se organizado na França e em Portugal: L’Action Française (AF) e Integralismo Lusitano (IL). Ambos eram monarquistas antiliberais, com forte nacionalismo e grande valorização da tradição e do passado medieval.

A L’Action Française buscava recuperar a ordem católica medieval como via para sanar os problemas da França pós revolução de 1789. Trata-se de um uso utilitarista da história, buscando legitimidade no passado para suas ações.

A AF atuava pelo retorno da dinastia dos Orleáns, daí a flor-de-lis, símbolo dos Orleáns, em seu brasão. Durante a ocupação nazista apoiou o regime de Vichy, que colaborava com a Alemanha. A AF ainda existe na França como partido político.

As influências do Integralismo Lusitano sobre a AIPB também se verificam nos usos do passado como legitimação política. O IL também se aproximou muito de um discurso católico, escolhendo como um de seus símbolos o pelicano eucarístico, que representa o sacrifício de Cristo.

O IL também buscava no período medieval português os símbolos para mobilizar seu discurso monarquista antiliberal, buscando na Reconquista as raízes do ideal do movimento. Outro símbolo agregado por eles em diversos materiais é a cruz da Ordem de Cristo.

Esses movimentos europeus influenciam o monarquismo brasileiro, forneceram uma fórmula a ser adaptada. A AIPB organiza sua narrativa utilitarista do passado para glorificar os tempos do Império.

Nesse ponto vale a pena entender alguns dos símbolos mobilizados pela AIPB e pelos movimentos monarquistas da atualidade. O primeiro e principal é a bandeira do Brasil Imperial.

Além da bandeira, atualmente, é muito comum encontrar a venda réplicas de insígnias imperiais e ordens de cavalaria. No período imperial, eram símbolos de distinção social conferidos pelo Imperador. Expressavam a diferença do status social de seus detentores.

As insígnias serviam para reforçar a diferença de uma sociedade hierarquizada e ressaltar o privilégio dos grupos sociais que as recebiam. Nas imagens, as insígnias da Ordem da Rosa e a ordem do Cruzeiro, largamente distribuídas pelo imperador.

A fusão desse imaginário idealizado, com uma mistura de símbolos apropriados de outros contextos, produz expressões singulares. Esse é o “Capitão Brasil”, um mix de cruzado, monarquista, armamentista e super-herói.

Mas nem todas as apropriações são dignas de riso como o Capitão Brasil. Em protestos recentes os símbolos monarquistas foram exibidos pelos manifestantes ao lado de bandeiras da extrema direita ucraniana, como a do Pravy Sektor.

Fotografia de Alexandre de Almeida

A aproximação com o grupo Ucraniano é pelo cunho antidemocrático. “Ucranizar” virou sinônimo de perseguição violenta à oposição.

Essa relação entre monarquistas e grupos radicais também foi observada no episódio do atentado a sede da produtora Porta dos Fundos. Os especialistas chamam esses grupos de neofascistas.

O grupo que reivindicou o ato apresenta uma bandeira integralista junto de uma monarquista. Uma relação que, como apontamos, é antiga.

A valorização desses símbolos do passado é idealizada, mobiliza grupos que atribuíram ao império de Pedro II um tempo áureo. Precisa de muito esforço para enxergar no Brasil escravista e agrário do século XIX uma nação justa e livre da corrupção.

Essa busca por símbolos antigos é a tentativa de construir uma legitimidade. A bandeira imperial, por exemplo, tenta associar-se à independência e ao surgimento do Brasil como nação. Parecem esquecer que a bandeira traz símbolos ligados quase que exclusivamente ao imperador.

O retângulo representa o masculino e o verde a casa real dos Bragança, refere-se a Dom Pedro I. O losango é o feminino e o amarelo remete à casa de Habsurgo, da imperatriz Dona Leopoldina. A esfera armilar e a cruz de Cristo são símbolos de Portugal, a Coroa é a coroa do império.

Como se vê, os símbolos eram associados diretamente ao imperador, à sua família e à sua terra de origem. O Brasil aparece nos ramos de café e de tabaco, importantes produtos de exportação, cultivados e beneficiados principalmente por mão-de-obra escrava.

A bandeira imperial representa o imperador e sua origem assentados sobre a riqueza brasileira, produzida por escravizados.

Esse texto foi escrito por @raclateral, que pesquisa sobre poder e administração na América portuguesa e Brasil império, e @hugoandreffa, que pesquisa poderes no Império português.

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Esse texto foi publicado originalmente no Twitter:

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Divulgação científica em história. Uma produção da Universidade Federal de Santa Maria.