Arquipélago Gulag (4/6)

Hemanuela P
6 min readApr 24, 2019

--

Ideologia e prisão

Disponível em Exame

“De certo modo, o ponto de vista do Partido se impunha com mais êxito às pessoas incapazes de compreendê-lo. Aceitavam as mais flagrantes violações da realidade porque jamais percebiam inteiramente a enormidade do que se lhes exigia, e não estavam suficientemente interessadas para observar o que acontecia. Graças à falta de compreensão permaneciam sãs de juizo. Apenas enguliam tudo, e o que enguliam não lhes fazia mal, porque não deixava resíduo” George Orwel, 1984

Nesta parte do livro Soljienitsin faz alguns comentários interessantes sobre a natureza humana a partir da observação do comportamento dos carcereiros.

Como puderam, tantos deles, fazer esse trabalho ano após ano, sabendo de toda falsidade dos processos? “Esforçavam-se talvez por não pensar (mas isto já é uma destruição do homem), aceitando pura e simplesmente que assim tinha que ser: os que lhes enviavam as instruções não podiam ser enganados”.

Ele os chama de “bonés azuis” e explica que não havia limite de caráter entre eles. Roubavam, chantageavam, exploravam e ninguém podia contra eles, já que podiam botar qualquer um na cadeia.

Soljenitsin questiona “como surgiu essa raça de lobos em meio do nosso povo? É da nossa raiz? É do nosso sangue? Sim, é”. E complementa “se a minha vida se tivesse apresentado diferentemente, ter-me-ia eu convertido num carrasco assim?”

Explica então que sabia, desde jovem, em seu coração que não queria fazer parte daquilo (ser oficial). Mas sua cabeça alertava sempre “é necessário”. E foi a partir da escola de oficiais que passou a experimentar a alegria da rusticidade: ser militar e não refletir. Esquecer certas sutilezas espirituais pois andavam atazanados pela fome, tentando descobrir onde conseguir um naco a mais, ganhar mais insígnias, galões.

Alexander foi Comandante de Brigada e quando foi preso e arrancaram os galões do seu uniforme. Sua preocupação foi a degradação de ser visto assim pelos seus soldados.

Ao precisar caminhar junto com outros detentos, chegou a recusar carregar sua própria mala pois havia um alemão também entre os prisioneiros. Ora, que o alemão carregue a mala! E comenta que “nem sentia remorso” em pensar assim. Na verdade, considerava que era uma honra ser preso não por roubo, traição ou deserção, mas pela força da dedução dos segredos maldosos de Stalin.

Confessa “eu era um carrasco em potência. […] Que feche aqui o livro o leitor que espera que ele continue sendo uma acusação política. […] A linha que separa o bem e o mal atravessa o coração de cada pessoa. E quem destrói um pedaço do seu próprio coração? No decurso da vida de um coração esta linha desloca-se dentro dele, ora oprimida por uma alegria maligna, ora libertando espaço para o despontar da bondade.”

Ele explica que em livros os vilões são sempre puramente maus. Mas as coisas não são assim na vida real pois “para fazer o mal, o homem deve tê-lo antes anteriormente reconhecido como um bem, como uma ação sensata, de acordo com a lei. Tal é, infelizmente, a natureza do homem, ele deve buscar a justificação das suas ações”.

Neste ponto do livro, creio que uma das observações mais perspicazes é feita. Soljenitsin explica que a ideologia é o meio para a “desejada justificação para a maldade. Ela constitui a teoria social que o ajuda, perante a si mesmo e perante os outros, desculpar os seus atos e a não escutar censuras nem maldições, mas sim elogios e testemunhos de respeito”. E explica que graças às ideologias a humanidade viveu os piores horrores no século XX.

No capítulo seguinte ele conta sobre as prisões. Não há diferença entre o que ele descreve e muitas prisões que vemos em filmes sobre campos de concentração. Não vou me ater a isso. Mas é importante saber que ele não considerava a cadeia como um abismo, mas sim, como a viagem mais importante da sua vida.

O fundamental destes capítulos (o que considerei mais curioso) foram os aspectos psicológicos de todo o processo. Alexander conta que sua primeira cela foi dividida com mais três presos. Um deles logo que o viu pediu um cigarro. “Pressenti algo de estranho neste companheiro de idade e de frente, e logo me fechei perante ele para sempre”. Soljenitsin explica que a falsidade se nota e este talento, de observar e avaliar o caráter, o ajudou durante os anos de prisão. Ele conta esse caso e deixa “à consideração dos amantes de psicologia”.

Um destes três primeiros colegas de cela, um senhor idoso e muito culto (Fastenko era seu apelido), o ensinou muitas coisas. Soljenitsin o elogia dizendo “com tudo o que tinha conservado na memória, ele podia analisar todo o passado e todo o presente. Homens assim não são somente valiosos numa cela como são raros no conjunto da sociedade”.

Fastenko havia visitado os Estados Unidos e o Canadá, e comentou que nesses lugares jamais haveria uma revolução proletária, sendo pouco provável que fosse necessária. Conversava muito sobre política e Alexander transcreveu parte de um texto que leu e o fazia recordar as falas do companheiro. Vou citar um pedaço, pois nos interessa: “para uma classe operária não pode haver maior desgraça do que a tomada do poder político quando ainda não está preparada para isso”. ² Uma observação perspicaz e bastante debatida na prisão. Muitos russos, até o próprio Soljenitsin, não eram exatamente contrários à revolução. Mas a forma como o Partido Comunista mudou sua postura, principalmente a partir de 1929, causou muitas revoltas e por isso perseguia-se tanto os dissidentes ou qualquer um que criticasse o PC.

Um outro interessante colega de Soljenitsin foi um engenheiro. Não um engenheiro dos primórdios russos, mas um dos que, quando mais novo, foi retirado do campo para ser treinado pelo Partido Comunista. Eram necessários “engenheiros conscientes, cem por cento leais, que não só fizessem o seu trabalho, mas se ocupassem de toda a produção”. Como estudante de engenharia esse rapaz recebia novecentos rublos de bolsa. Um operário recebia sessenta. Era dessa forma que o sistema encontrava meios de se sustentar. Nos outros resumos já citei o quanto os intelectuais eram valorizados, mas também perseguidos e acusados de sabotagem. Para evitar que o capitalismo se infiltrasse, os engenheiros eram treinados desde cedo tanto em sua profissão, quanto sobre a importância do Partido.

A Rússia era implacável na luta contra os inimigos do poder. Um outro caso citado é de Iuri E. Este rapaz havia lutado na guerra, foi preso após perderem uma batalha e levado para os campos de concentração alemães. Lá, para não morrer de fome, recusando declarar que sabia alemão (tinha receio de trabalhar como interprete e ter que entregar seus companheiros), disse que era pintor. Passou a viver pintando quadros dos comandantes. Junto dele havia um velho russo, um pintor muito culto, que abriu sua mente para o que Stalin vinha fazendo na velha Rússia.

Iuri E., depois de um tempo e já com a mente aberta, aceitou passar por treinamento de espionagem e foi enviado de volta a Rússia. Ao chegar a Rússia, entregou-se e foi preso. O amor à pátria foi maior, mas não foi retribuído. Levaram-no para Lubianka. Iuri E. contou que outros países enviavam ajuda aos presos nos campos de concentração, por meio da Cruz Vermelha, mas os russos eram os mais humilhados. Não havia ajuda. Não havia pacto humanitário. Uma vez que saísse do seu país, só restaria a morte ou a prisão.

Um triste comparativo que ele fez entre a Rússia e Alemanha: em 1996, na Alemanha Ocidental, foram julgados 86 mil criminosos nazis. O russos engasgavam de alegria, acompanhavam nos jornais e rádios e julgavam “é pouco”. Mas na Rússia, apenas dez homens foram presos, por receio de reabrir feridas. Para Alexander “um país que oitenta e seis mil vezes, do alto do estrado do tribunal, reprovou o crime (e o condenou irreversivelmente na literatura e entre a juventude) purifica-se ano após ano e degrau em degrau desse mesmo crime.”

Infelizmente, Soljenitsin fez uma previsão correta sobre a Rússia: “não castigando, nem sequer censurando os criminosos, não apenas os protegemos na sua velhice insignificante, como também solapamos as bases, para as novas gerações, de qualquer fundamento de justiça. É por isso que elas crescem na ‘indiferença’ e não devido à ‘debilidade do trabalho educativo’. […] Oh, como é desolador, terrível, viver num país assim!”.

Talvez em nenhum outro momento eu tenha sentido tanta empatia por ele.

Link para o próximo post: https://medium.com/@portatrechos/resumo-arquip%C3%A9lago-gulag-5-71ee7e510382

² Plekhánov, “Carta aberta aos operários de Petrogrado” (jornal Universidade de 28–10–1917) (N. do A.) in Arquipélago Gulag.

--

--