A cultura do hip hop como ferramenta de expressão e representatividade de sociedades marginalizadas no Brasil

Ana Vitória
10 min readJan 4, 2024

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Ana Vitória Oliveira Porto

1. Introdução

O hip hop é um dos principais movimentos culturais e artísticos que envolvem a dança (break dance), música (rap) e artes visuais (grafite). Desde a sua criação, o movimento foi muito marginalizado pelas elites, mas adotado por aquelas pessoas que eram deixadas à margem pela sociedade. Dessa forma, o hip hop sempre buscou denunciar os problemas sociais e lutar pela igualdade.

No dia 11 de agosto de 1973, na região do Bronx, em Nova York, um dj jamaicano, chamado Kool Herc, resolveu inovar sua apresentação e tocou apenas o instrumental, junto às batidas, das músicas de funk e soul, muito populares da época. A novidade encantou o público e fez com que os cantores de funk, conhecidos como MC’s (Mestres de Cerimônia), acrescentassem rimas em cima do ritmo, deixando as festas ainda mais animadas.

Surgiu então o rap, sigla para “rhythm and poetry” (ritmo e poesia), a forma de maior destaque do hip hop, em que os MC’s buscam contar, através da música, a realidade vivenciada por eles.

A partir daí o movimento ganhou muita visibilidade entre os jovens do Bronx, os quais presenciavam diversos problemas de ordem social, como a violência, pobreza, racismo, carência de infraestrutura, entre outros, e encontram na arte uma maneira de lazer e denunciar as situações enfrentadas diariamente. Após o rap, foram surgindo as danças e pinturas, como forma de conscientizar, instruir e demonstrar à população sobre a realidade de muitos.

O hip hop espalhou-se pelo mundo e, por volta da década de 80, chegou ao Brasil, nas ruas de São Paulo, mais precisamente na parte externa da estação do metrô São Bento, onde aconteciam os encontros de grupos de dança, rappers e grafiteiros.

O movimento passou por diversas transformações ao longo dos anos e hoje tornou muito popular e bem-sucedido. O sucesso se deve, em boa parte, ao pioneirismo de vários artistas que enfrentaram o preconceito e fizeram a arte circular livremente. Para alguns, a cultura é vista como violenta e criminosa, mas para muitos é uma forma de representar suas experiências do dia a dia, além de uma oportunidade de mudar de vida.

Sendo assim, este artigo promove a discussão sobre como a cultura do hip hop influencia as comunidades brasileiras, além da importância desse movimento como ferramenta de representatividade de uma população deixada à margem pela sociedade.

2. Fundamentação teórica

2.1 O rap como pioneiro do movimento

No Brasil, a cultura do hip hop encontrou nas ruas e periferias de grandes cidades, o local ideal para desenvolver. Por ser considerado, por muitos, um movimento violento, nunca teve um grande investimento, assim, foi no ambiente urbano em que a arte evoluiu. “A carência por um novo espaço e a falta de capital para investir em boates e festas de rap foram alguns dos fatores catalisadores para o surgimento de rodas culturais nas ruas e praças da cidade” (CURA, 2017, p.3).

A música, a dança, o grafite e a moda do hip hop tornaram-se formas de expressão para diversos jovens que, historicamente, foram excluídos e marginalizados pela sociedade. Por meio do hip hop, eles encontraram uma voz e uma maneira de contar suas histórias, vivências, lutas e conquistas.

É inegável a influência que a modalidade possui na cultura brasileira, principalmente para as periferias, em que “(…) vem mostrando sua força em várias vertentes culturais: como a organização em movimentos de rádios comunitárias e na voz emergente que se inscreve através do movimento hip hop” (MOASSAB, 2008, p.17). Utilizando principalmente da música, os jovens periféricos abordam questões sociais e políticas, denunciando a desigualdade, o racismo e a violência que permeiam a vida nas comunidades.

O rap ganhou força no Brasil por volta da década de 90, momento em que as rádios e indústrias fonográficas passaram a dar mais atenção ao novo estilo de música. “A música teve importante papel no surgimento do hip hop já que, além de principal veículo de manifestação das ideias, da causa, foi o grande motivador de sua organização, o agente que fez reunir as pessoas” (FOCHI, 2007, p.62). O estilo musical tornou-se uma forma de protesto e resistência, além de uma maneira de chamar atenção para as injustiças e exigir mudanças.

Através das letras das músicas, os MC’s promovem vários debates e discussões a respeito da realidade em que vivem. No Brasil, nomes como “Thayde” e “DJ Hum” fizeram muito sucesso e foram os primeiros rappers a terem o reconhecimento no país. Logo após, vieram “Pavilhão 9”, “Gabriel, O Pensador”, “Planet HEmp”, entre vários outros. Mas, um grupo que surgiu em 1988 e que ainda ganha destaque nos dias atuais é o “Racionais MC’s”.

A banda, formada por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, é considerada o maior grupo de rap do Brasil e um dos mais influentes do país e da música brasileira. “É consenso que, no caso brasileiro, o grupo Racionais MC’s foi aquele que mais influiu na constituição da tradição do rap nacional, cujo traço marcante é o grito-denúncia do conjunto de espoliações que negros e pobres sofrem cotidianamente nas cidades” (LOUREIRO, 2016, p.237). O Racionais é considerado por muitos a voz da periferia e alcançou os quatro cantos do país, criticando a violência que permeia a sociedade brasileira (LOUREIRO, 2016).

Muitos desses astros da música surgiram das chamadas “batalhas de rima”, uma modalidade do hip hop em que acontecem duelos entre MC’s com rimas improvisadas, sobre os mais variados assuntos. As competições acontecem nas praças, ruas e avenidas, principalmente nas grandes capitais brasileiras. A Batalha da Aldeia em São Paulo, Batalha do Tanque no Rio de Janeiro e a Batalha do Coliseu no Distrito Federal, são alguns exemplos que atrai multidões semanalmente. Os competidores ganham milhares de fãs e sucesso na mídia. “Com a ampliação das rodas e do público, alguns MC’s passaram a formar sua própria rede de fãs, na medida em que se destacavam nas batalhas, podendo assim vislumbrar oportunidades de negócio e ascensão na cena mainstream” (CURA, 2017, p.4).

2.2 A dança de rua

Além da música, a dança e o grafite sempre estiveram presentes no movimento. Assim como as batalhas de rima, que arrastam multidões, as competições de breaking animam e divertem todos que as presenciam. As batalhas acontecem em trio, duplas, grupos, individuais e permitem que os campeões saiam premiados com troféus, medalhas e dinheiro.

Com movimentos rápidos e chamativos, ao som de batidas que envolvem os dançarinos e até mesmo o público, o break dance tem a capacidade de contar histórias e transmitir mensagens através das performances. A cada passo, os dançarinos carregam consigo uma carga emocional e uma narrativa única.

No bairro Maré, do Rio de Janeiro (RJ), estão os maiores núcleos de dançarinos de break na cidade (RAPOSO, 2013, p.7). Eles utilizam da dança como forma de lazer e até mesmo refúgio para lidar com a realidade. “Num meio onde os confrontos armados entre as facções do tráfico de drogas e a ação truculenta da polícia impõem constrangimentos à circulação dos moradores, esses dançarinos têm conseguido romper as dinâmicas de segregação” (RAPOSO, 2013, p.7).

Recentemente, o Comitê Olímpico Internacional (COI) confirmou o breaking como modalidade nas olimpíadas de Paris 2024, uma grande conquista para o hip hop, uma vez que dará mais visibilidade para o esporte, além dos competidores, assim como o skate conquistou na última olimpíada.

2.3 O grafite e as denúncias pintadas

Da mesma maneira que o rap e o break representam a arte de rua e a realidade de diversas comunidades, o grafite tem sua expressão por meio das pinturas em muros e prédios, também denunciando e abordando questões sociais. No contexto do hip hop, o grafite vai além dos desenhos. Ele representa a cultura de rua, a resistência, a busca por visibilidade e reconhecimento, além da transmissão de mensagens e ideias.

Atualmente, o grafite está inserindo-se cada vez mais nos centros urbanos e adquirindo novas interpretações. Como mencionam Lurdi Blauth e Andrea Possa, a arte faz parte do dia a dia e vem sendo legitimado como manifestação artística que quebra com os padrões estéticos (BLAUTH; POSSA, 2012). “Ao mesmo tempo, percebemos que, o grafite está sendo discutido e inserido cada vez mais em diferentes espaços culturais, inclusive no meio acadêmico, gerando discussões entre artistas, críticos e apreciadores de arte” (BLAUTH; POSSA, 2012, p.7).

Entretanto, a arte de rua, apesar de toda a sua importância cultural, ainda passa por muitas dificuldades no Brasil. A falta de reconhecimento e valorização por parte das autoridades e a criminalização dessa forma de expressão são alguns dos obstáculos enfrentados pelos grafiteiros. Muitas vezes, obras de arte são apagadas ou destruídas sem qualquer consideração pelo seu valor cultural. Além disso, é muito confundido com a pichação, que utiliza de palavras e letras como meio de expressão, porém, realizada contra a lei e, geralmente, sem permissões. O ato da pichação “está relacionado com a escrita e ao ato de sujar e agredir um determinado espaço com palavras escritas de maneira diferenciada, mantendo certa identificação do autor ou grupo” (BLAUTH; POSSA, 2012, p.7). Já os grafiteiros buscam expressar-se predominantemente através de imagens, envolvendo um processo de criação com autorização.

Além de que o grafite também é uma forma de ocupação dos espaços públicos. Ao pintar muros, prédios e outros espaços urbanos, os grafiteiros estão dando uma nova vida a esses locais, transformando-os em verdadeiras galerias de arte a céu aberto. Essa ocupação dos espaços públicos é uma forma de reivindicar o direito à cidade e de tornar as comunidades mais coloridas e vivas.

2.4 Empoderamento e liberdade de expressão

Seja por meio da voz, expressões corporais ou através de imagens, o movimento do hip hop busca criticar, denunciar e relatar situações rotineiras, além de prezar pela igualdade e justiça social. Dessa forma, o movimento é, de certa forma, um ato político, pelo falo de ocupar o espaço público e estar diretamente criticando o sistema “numa tentativa de estabelecer fontes de diálogo com o governo em busca de apoio e legitimidade para as artes urbanas” (CURA, 2017, p.12). “O hip hop é fortemente embasado pelo ‘conhecimento’ e ‘atitude’, isto é, o pensamento e a ação em acordo com as posições discursivas que circulam e amadurecem por todos os eventos e meios de divulgação do movimento” (MOASSAB, 2008, p.18).

No Brasil, o hip hop sofreu e ainda sofre muito preconceito por parte de pessoas que não possuem o conhecimento do que se trata o movimento, fazendo com que membros de comunidades e participantes sejam marginalizados. Mas, para aqueles que se sentem excluídos e querem mostrar como se sentem, a arte de rua tornou-se a ferramenta ideal e representativa.

Outro aspecto importante e de grande destaque do hip hop é a união e empoderamento dos membros de grupos e comunidades, em que mostram que é possível superar as dificuldades e alcançar sucesso. Muitos rappers compartilham suas experiências pessoais de luta e adversidades, e como eles conseguiram superar esses obstáculos. Suas letras inspiram e motivam outros a acreditarem em si mesmos e a perseguirem seus sonhos, independentemente das circunstâncias. Na música “Moleque de vila”, do cantor Projota (2016) o rapper destaca toda sua trajetória até chegar aonde está.

Os MC’s também apoiam uns aos outros e reconhecem que a união é fundamental na luta contra o preconceito e evolução do rap. Na música “Esse é meu estilo”, o rapper carioca Bk, em parceria com Febem e Akira (2019), cita em um verso a responsabilidade que ele tem de levar a música para os jovens da periferia: Pro mundo eu tenho cara de bandido, para os que são igual a mim eu sou quem livra eles disso”. Essa frase além de mostrar a importância da cultura, mostra também como essas pessoas que estão inseridas dentro dela sofrem com vários tipos de preconceito. A dança também ajudou diversos jovens pelo país, tirando do contato com o tráfico e a violência, oferecendo oportunidades para pessoas que mais precisavam dentro das periferias.

A arte de rua sofreu grandes transformações até chegar nos dias atuais. Hoje, grande parte da sociedade está mais aberta para essa forma de expressão e até mesmo acatando as ideias transmitidas por elas. Como forma de representação de pessoas ignoradas, o hip hop permite que muitos jovens desenvolvam seu conhecimento, talento e habilidades. Ao verem artistas negros e periféricos alcançando sucesso e reconhecimento através do hip hop, os jovens dessas comunidades sentem-se representados e inspirados. Eles percebem que suas histórias e suas vozes importam, além de que podem fazer a diferença através da arte e da expressão. Nomes como Djonga, Projota, Lourena, Mc Cabelinho, são exemplos de artistas que vieram da periferia e hoje faz sucesso por todo o país. Eles têm usado sua influência para conscientizar e mobilizar as comunidades, buscando transformar a realidade em que vivem.

3. Considerações finais

Mais do que um movimento, o hip hop é um estilo de vida, unindo a arte, música, esportes, moda, promove a justiça e a luta pela igualdade. No entanto, é importante reconhecer que a cultura do hip hop ainda enfrenta muitos desafios no Brasil. A marginalização e a discriminação ainda são uma realidade para muitos artistas e fãs da arte urbana. A falta de investimento em educação e cultura também limita o acesso de muitos indivíduos a oportunidades de desenvolverem seus talentos.

Em suma, a cultura da arte de rua tem desempenhado um papel fundamental na expressão e representatividade de sociedades marginalizadas no Brasil. Através da música, da dança, do grafite e até mesmo da moda, o hip hop tem dado voz aos jovens negros e periféricos, permitindo-lhes contar suas histórias e lutar por uma sociedade mais justa. O hip hop é mais do que apenas um movimento artístico, é um movimento de resistência e transformação social.

O hip hop sempre foi uma expressão artística que ultrapassa barreiras e permite que pessoas de diferentes origens e experiências se conectem por meio das suas artes. No meio urbano, há uma valorização da individualidade e criatividade de cada membro, sendo reconhecido por suas habilidades e talentos, independente de classe social, raça ou cor.

Portanto, a cultura do hip hop é uma importante ferramenta de expressão, empoderamento e representatividade das comunidades marginalizadas no Brasil, além de união dessas pessoas que buscam por igualdade e enfrentam diversos desafios todos os dias.

Referências bibliográficas:

BLAUTH, Lurdi; POSSA, Andrea Christine Kauer. Arte, grafite e o espaço urbano. Palíndromo, n 8, 2012.

CURA, Tayanne Fernandes. Tramas do rap: um olhar sobre o movimento das rodas culturais e a questão de gênero nas batalhas de rima e slams de poesia do Rio de Janeiro. Intercom, Curitiba, set, 2017.

DORNELAS, Luana. Como foi o surgimento da cultura hip-hop no Brasil. Redbull, 17 fev. 2021. Disponível em: https://www.redbull.com/br-pt/O-surgimento-da-cultura-hip-hop-no-Brasil

FEBEM. Esse é meu estilo. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QYtWIW_6p4k

FOCHI, Marcos Alexandre Bazeia. Hip hop brasileiro: Tribo urbana ou movimento social? Facom/Faap, São Paulo, n 17, p 61–69, jun, 2007.

LOUREIRO, Bráulio Roberto de Castro. Arte, política e cultura na história do rap nacional. Institutos de Estudos Brasileiros, n 63, p 235–241, abr, 2016.

MOASSAB, Andreia. Brasil periferia (as): a comunicação insurgente do hip hop. 2008. Tese (Doutorado) — Curso de Comunicação e semiótica, Pontífica Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

PROJOTA. Moleque de vila. São Paulo, 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kzLESxMqnTg

RAPOSO, Otávio Ribeiro. Coreografias da Amizade: estilos de vida e segregação entre os jovens do break dance da Maré (Rio de Janeiro). 2013. Tese (Doutorado) — Curso de Antropologia Urbana, Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2013.

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