Cinco B.Os, um feminicídio: por que ainda falhamos em proteger mulheres

Priscila Bellini
9 min readJan 4, 2017

Os jornais divulgaram que Isamara Filier, a técnica em contabilidade que foi assassinada na chacina em Campinas, já havia denunciado o ex-marido. Entre os boletins de ocorrência (são cinco, ao todo), ela tinha denunciado ameaças de morte, por exemplo. A partir da notícia, vimos algumas reações:

1) As pessoas que ficaram surpresas com o quanto o sistema falha em proteger mulheres (e é disso que vamos falar, a princípio)

2) As pessoas que duvidaram ou acharam que, como Isamara não deu continuidade aos processos, não dava pra saber que a situação era TÃO GRAVE,

3) As pessoas que ainda estão achando que esse é um caso isolado, de um psicopata, que não foi “pego” pela Justiça

A má notícia é que casos como o de Isamara existem aos milhares. Milhares todos os anos. Mais do que caberia em um jornal ou em um post de Facebook. Ainda que nós consigamos estimar um número de feminicídios, por exemplo (no ranking mundial, o Brasil tem o quinto mais alto), existe uma cifra escondida. O número que identificamos é apenas a ponta do iceberg.

Muitas são agredidas e não recorrem ao sistema de justiça. Inúmeras. Parece uma loucura, não? Um sistema ali, pronto para registrar a denúncia, uma Lei Maria da Penha à disposição e NADA? Na verdade, o caminho que essas mulheres percorrem, que pode chegar à denúncia ou não, varia muito. Muitas hesitam em recorrer ao sistema de justiça — e há muitos motivos por trás disso.

O que nós convencionamos chamar de amor

Vamos imaginar assim: você se apaixona por um cara. Fica completamente apaixonada, assim, como acontece com quase todo mundo. Vocês passam um tempo juntos — uns meses, uns anos, ou mesmo algumas décadas. Vocês saem juntos, depois vão morar juntos, têm filhos. É uma história comum a muita gente, né?

Só tem um problema: e se o cara com quem você se relaciona agride?

Aí você vira pra mim e fala: JAMAIS. Eu, agredida? Pff, nunca. J A M A I S. Isso só acontece com esse tipo de mulher (e provavelmente vem à sua cabeça a tal “mulher de malandro”), ou com esses caras DOIDOS.

E eu te digo isso: acontece muito. Com muita gente, o tempo todo. Com os relacionamentos que você achava meio “conturbados”, com aqueles que rendem fotos lindas no Instagram. Esse não é um problema de mulheres que “gostam de apanhar”, nem de “psicopatas”, “homens loucos” e “casos isolados”.

Funciona assim: raramente as agressões aparecem logo no início da relação. Só que, aí, acontece. Ela acha que é só daquela vez, porque namora um cara legal. Um cara muito, muito legal. E acontece de novo e de novo. O namorado que está ali do lado há anos, o pai dos filhos, o marido dedicado com quem alguém casou de véu e grinalda.

Nesse meio tempo, vai ter quem diga que aquilo é normal, que homem é assim mesmo. Que homem, quando gosta, quer só pra ele — e por isso o ciúme. Que homem é esquentado mesmo. Que, se ele bateu na mesa porque não gostou da janta, o jeito é caprichar mais. Aquilo faz parte de um relacionamento normal, porque amar não é fácil mesmo. Nós convencionamos chamar de “amor” o que não passa de violência.

É difícil conceber que aquela história de Príncipe Encantado que contaram desde cedo pode ser interrompida por um tapa na cara, um empurrão, uma ameaça. É difícil entender — e, depois, conseguir agir — quando o “cara legal”, com quem você se envolveu emocionalmente, virou o vilão da história.

O ciclo de violência

Os casos de violência doméstica são comuns, os feminicídios cometidos por parceiros ou ex-parceiros também. Faz algumas décadas que teóricas como Lenore Walker (que, em 1979, lançava o livro The Battered Wife) perceberam um padrão nesse monte de casos: o tal ciclo da violência doméstica.

Crédito: Associação Portuguesa de Apoio à Vítima

São três fases principais, como você pode ver no quadro aí em cima. De início, as tensões se acirram entre a vítima e o agressor, com discussões e brigas. “Relacionamento é assim mesmo”, né? Vem um empurrão ali, um grito em outro momento. O cara te diminui, te coloca pra baixo. Mas ele continua sendo o namorado, o marido, o “bom pai”.

A situação piora e acontece o episódio de violência, o “ataque violento”. É o mais extremo, quando aquela tensão toda culmina em uma agressão — mesmo que, antes disso, tenham ocorrido diversas violências (psicológicas, morais, patrimoniais). Um tapa, um soco, um empurrão. Uma ameaça de morte, um xingamento que vai marcar para o resto da vida. Nem toda violência, nessa hora, deixa marcas físicas (e vou explicar isso em outro texto).

Aí tá bom, aconteceu. A mulher inventa uma desculpa para o roxo no braço (“caí da escada”, “foi um acidente”, “sou tão desastrada, nem reparei!”), finge ignorar a ameaça. E o agressor faz o quê? Muda. Aparentemente, ele muda mesmo. Virou outra pessoa, nem parece o cara que gritou com a esposa no dia anterior.

Ele promete que aquilo não vai se repetir. Ele é o pai dos seus filhos, é o seu primeiro namorado. Ele gosta tanto de você, mesmo você sendo tão sem graça. Se ele não quiser, quem mais vai querer?

Depois de tudo isso, a tensão volta a aumentar e o ataque violento ocorre novamente. Voltamos, então, ao ciclo.

A relação entre os dois

Devo a explicação a seguir à juíza Teresa Cristina Cabral Santana Rodrigues dos Santos, de Santo André, e acho bom passá-la adiante.

Uma coisa é um completo estranho chegar perto de você, de repente, e dar um tapa na sua cara. Outra coisa é o seu marido, seu namorado, seu parceiro fazer isso. A marca que isso deixa, embora pareça a mesma fisicamente, não é igual.

Olhando o ciclo da violência assim, separado em etapas, com ilustração em cima, parece fácil de sair. Só sendo mulher de malandro pra não ver, tá muito óbvio. Só que, como apareceu lá em cima, existe uma relação entre os dois, agressor e vítima, um envolvimento amoroso presente ou passado.

E aí vem uma leva de perguntas que são comuns às vítimas. Entre elas:

1) Como eu vou ter coragem de denunciar o pai dos meus filhos? O que os outros vão falar? (Se você, que está lendo este texto, é mulher, sabe que a gente não pode nem peidar que já vem alguém julgar)

2) Tá bom, vou denunciar. Mas onde? E como vai ser essa ida à delegacia?

3) Se eu denunciar essa pessoa, o que vai acontecer comigo?

A essa altura, ainda acho que não repeti o suficiente: é MUITO DIFÍCIL entender que aquilo acontece com você. As pessoas vão julgar e achar que o problema vem da mulher irresponsável, e que o marido nem é tão ruim assim.

O agressor é um homem comum, um homem de bem, é um cara legal. Ele vai à missa, frequenta as reuniões do partido, é o cara muito, muito legal que está em todo happy hour, é o funcionário do mês. E também é o cara que faz de tudo para destruir a autoestima da parceira. Que vai minar a autoestima pouco a pouco e chamar isso de amor.

Mas, se a vítima quiser denunciar, o que vai acontecer?

Em teoria, existe um sistema todo desenhado para encaminhar essas denúncias. Nós temos, há dez anos, a Lei Maria da Penha — uma lei sobre a qual todo mundo já ouviu falar. O texto legal não só fala de responsabilização dos agressores, mas também de integrar várias áreas para combater o problema a violência contra a mulher (saúde, educação, etc).

Mas, voltando à pergunta: há dois caminhos principais. Ou a vítima chega ao sistema de saúde, ou à delegacia. No primeiro caso, pode ser por uma das lesões que sofreu, ou mesmo por queixas indiretamente relacionadas ao problema. As vítimas podem sofrer não só física, mas também psicologicamente — e, também nesses casos, procurar ajuda no SUS.

Só que, no fim das contas, o que a mulher encontra em uma delegacia?

Para começo de conversa, é difícil (para dizer o mínimo), em termos de Brasil, encontrar uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (ou, como são conhecidas em São Paulo, uma Delegacia de Defesa da Mulher). Pelos dados oficiais, menos de 10% do território brasileiro contam com uma. A Revista Azmina mostrou, nesta reportagem, que muitas das DEAMs simplesmente não existem, apesar de constarem no mapa.

O jeito? Recorrer aos distritos comuns e aguardar atendimento. Mesmo lesionada fisicamente, uma mulher em situação de violência vai dividir espaço com um monte de gente que chegou por lá para denunciar roubos, furtos, o que for. Todo mundo junto.

Há delegacias por aí colhendo depoimentos de mulheres de portas abertas, sem garantir a privacidade da vítima. Há delegados e delegadas que discriminam mulheres que chegam ao distrito, considerando os crimes como de “menor importância”. Há quem diga à mulher para voltar para casa e deixar de besteira. Há quem informe mal, ou que sequer informe, quais serviços podem acolher uma mulher em situação de violência.

Falta efetivo, e as equipes existentes se desdobram para dar conta da demanda. Ainda que a Lei Maria da Penha fale em equipes multidisciplinares — com assistentes sociais e psicólogos, em vez de contar apenas com policiais — , isso está longe de ser realidade nas delegacias. Muito, muito longe.

Em resumo, quem acha fácil para uma mulher em situação de violência fazer a denúncia do agressor não conhece a realidade dos distritos policiais.

Depois da delegacia

Ok, vamos supor que uma mulher hipotética tenha decidido ir à delegacia, tenha esperado algumas horas, narrado o ocorrido a um funcionário, ao delegado responsável, tenha registrado o B.O. Talvez ela tenha de fazer um exame para comprovar a agressão física ou sexual, por exemplo — e, com isso, somamos mais algumas horas a esse caminho (e, mais uma vez, a vítima repetindo os fatos para um estranho).

Depois disso, ainda é necessário manifestar a vontade de representar, ou seja, de dar continuidade e processar o agressor. (Em crimes como lesão corporal leve, que costumam aparecer nas DEAMs, não há necessidade de representação, já que o Tribunal de Justiça considerou que há uma “ação incondicionada”)

A mesma mulher hipotética, que já teve de narrar a agressão (e, de uma forma, revivê-la) no mínimo três vezes, terá de fazer tudo de novo. Vem aí audiência, a necessidade de convocar testemunhas (e convencê-las a falar), a necessidade de contar os mínimos detalhes ao juiz ou juíza. Talvez o juiz duvide, talvez ache besteira tratar do caso. Talvez o juiz pergunte sobre a sua vida sexual, sobre as motivações que deu para a agressão. Não há qualquer obrigação, por parte do juiz, em ter formação em gênero.

No outro extremo, o réu é citado, chamado, intimado, escolhe seu advogado (ou tem um defensor público nomeado), apresenta resposta à acusação, é chamado para a audiência de instrução e, por fim, convocado para o julgamento. Do boletim de ocorrência à sentença, são meses, ou mesmo anos. Várias vezes lidando com o processo, várias vezes narrando a mesma violência, várias vezes revivendo a situação. Como eu não cansei até agora de dizer, é difícil.

O sistema de Justiça, ainda que tenha avançado muito, também hesita em falar de gênero. E também discrimina as mulheres que recorrem a ele, com frequência. Se você é mulher, for agredida e quiser denunciar, o jeito é torcer para encontrar bons profissionais no meio do caminho.

Um parênteses: as medidas protetivas

Toda vez que um caso como o de Campinas aparece, alguém vem falar de medidas protetivas. É um recurso usado, como o nome sugere, para garantir a segurança e a integridade da vítima.

Numa medida protetiva, o juiz pode determinar que o agressor fique a no mínimo, por exemplo, 50 metros da moça que o acusou. Pode estipular que o sujeito não consiga contatá-la por e-mail, telefone, ou qualquer rede social. Pode recomendar muita coisa, exigir muita coisa. É um caminho para coibir práticas violentas, não só físicas como psicológicas.

Maravilha, não? O problema, nesses casos, vem 1. da dificuldade em conseguir acionar tais medidas (ainda que o juiz receba os pedidos em 48h), 2. do fato de muitos juízes não aceitarem pedidos sem que haja um processo penal em curso.

No primeiro caso, por exemplo, podemos pensar no delegado que não quer registrar o boletim, por achar besteira. Acontece, já que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Um juiz com uma formação precária em gênero pode não reconhecer a gravidade do problema e avaliar a medida como desnecessária.

O segundo ponto ficou separado porque muita gente acredita que medida protetiva e ação penal (o processo todo, que foi descrito bem resumidamente ali em cima) caminham juntas. Nem sempre. E vou aproveitar a explicação que o Tribunal de Justiça de São Paulo deu para o caso:

“O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. E só. Elas não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial.”

É obrigatório passar por esse caminho todo para ter acesso à proteção? Não. O delegado pode exigir isso na hora de solicitar a medida? Não. É um direito de qualquer mulher em situação de violência pedir.

Então, por que elas não denunciam?

Por isso tudo que você leu ali em cima, e mais um pouco. Porque, mesmo quando denunciam, correm o risco de serem agredidas pelo companheiro ou ex. Porque não têm para onde ir, porque não contam com o apoio de ninguém que está em volta. Porque, mesmo que rompam um relacionamento e se esforcem para manter distância do agressor, casos como o de Campinas estão aí, aos montes. Porque, enquanto machismo reverbera por aí e as pessoas se negam a discutir gênero, fica difícil resolver o problema.

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