A ORIGEM DO MITO, SUA FUNÇÃO E PASSAGEM PARA FILOSOFIA
O que é um mito? — a genealogia do mito.
O professor Pierre Grimal, francês especialista em língua, literatura e filologia latina, nos lembra de que, ao pensarmos em “mitos” ou “mitologia”, inevitavelmente construímos em nosso imaginário um conjunto de lendas de todos os tipos, de narrativas fantásticas e relatos surpreendentes, cujos elementos figurados nos remetem aos países de língua grega, especialmente nos períodos entre o século IX ou VIII antes de nossa era. Tal época é demarcada pelos poemas homéricos, e pelo fim do paganismo, deflagrado três ou quatro séculos depois de Cristo.
Deste período, aponta Grimal (1982) que temos um material colossal, dificilmente definível, e de origem e características bastante diferenciadas, mas que desempenhou e ainda desempenha um papel fundamental na história espiritual do mundo. Isto porque “todos os povos, em dado momento de sua evolução, criaram lendas, ou seja, relatos maravilhosos nos quais, durante certo tempo, e pelo menos em certa medida, acreditaram” (GRIMAL, 1982, 7).
Essas lendas, por representarem forças e seres consideradas superiores aos seres humanos pertenciam ao domínio da religião e se figuravam como um sistema mais ou menos coerente de explicação do mundo. Em diversos poemas épico-religiosos da literatura hindu, por exemplo, cada ação do herói ilustrada em suas façanhas mais extraordinárias é narrada como um gesto criador, isto é, que implica em consequências sobre todo o universo.
Na antiga Grécia o mito se apresenta com todas essas características, seja matizando a história e servindo como título de nobreza para cidades ou famílias, seja desenvolvendo-se em epopeias e narrativas épicas, ou mesmo como nos traz Grimal servindo para dar base e sustento nas crenças e ritos religiosos. Em suma a palavra grega que o designa, μυθος (mithós), estende-se a qualquer história narrada, ora plasmada em uma tragédia de Ésquilo, como na tetralogia A Oresteia, ora pulsante nas intrigas de uma comédia, como na peça satírica As Núvens, de Aristófanes.
O mythós, como veremos no tópico de sua passagem para a filosofia, “se opõe ao Logos grego como a fantasia à razão, como a palavra que narra à palavra que demonstra.” (GRIMAL, 1982, 8). No entanto, logos e mythos, dirá Grimal, são as duas metades da linguagem, ou duas funções equivalentemente fundamentais da vida do espírito, o que talvez justifique que hoje o mito admita não apenas uma interpretação psicológica, mas também uma leitura simbólica, como no Timeu de Sócrates, em que o mito imita a verdade sem ser a verdade.
Grimal (1982) parte da posição que o mito tem por finalidade apenas a si mesmo, ou seja, acredita-se ou não nele, conforme a própria consciência ou vontade, num ato de fé caso o mito pareça belo ou verossímil, tão somente porque se quer acreditar. O mito, portanto, “atrai em torno de si toda a parcela do irracional existente no pensamento humano; por sua própria natureza, é aparentado à arte, em todas as suas criações” (GRIMAL, 1982, 9). Esta será a principal característica do mito grego, que não tendo fronteiras, insinua-se em toda parte integrando-se em todas as atividades do espírito humano, nas artes, na música, ou na literatura, sendo toda a fonte de meditação dos gregos.
O mito na psicologia histórica
Junito de Souza Brandão, em “Mitologia Grega”, nos mostra que após Freud, Jung, Neumann, Melanie Klein, Erich Fromm, e como se verá adiante, Mircea Eliade, o mito alcançou análises muito mais profícuas, pois deixou de ser visto como mera ficção e passou a integrar graus de novas possibilidades de percepções simbólicas dadas a partir do conceito de arquétipo e de formação da Consciência Coletiva.
Nessa perspectiva também não se identifica o mito como mera lenda, mas atribui a mesma acepção que lhe atribuíam as sociedades antigas, “onde o mito é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais” (BRANDÃO, 2010, 37). O mito, desse modo e em consonância com Eliade (1963), trata-se de um
relato de uma história verdadeira, ocorrida nos tempos dos princípios, illo tempore, quando, com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou tão somente um fragmento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma espécie animal ou vegetal, um comportamento humano (BRANDÃO, 2010, 37).
Aqui também se manifesta como narrativa de uma criação, isto é, que nos conta de que modo algo que não era, passou a ser. Em síntese é uma história verdadeira ocorrida no tempo primordial, mas que em decorrência de intervenção de entes sobrenaturais, passa a gerar uma nova realidade, uma “cosmoantropofania”, podendo ser total ou parcial (BRANDÃO, 2010, 38).
Por outro lado, observa Brandão, o mito é sempre uma representação coletiva e transmitida de geração em geração para relatar uma explicação do mundo. Nesse aspecto é que se forma enquanto consciência coletiva, pois expressa o mundo e a realidade humana, mas o expressa coletivamente. Isso implica, conforme Brandão (2010), em aceitar a acepção de Carl Gustav Jung, na definição do mito como “a conscientização dos arquétipos do inconsciente coletivo, quer dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem como as formas através das quais o inconsciente se manifesta” (BRANDÃO, 2010, 39).
Devemos compreender o inconsciente coletivo como a herança das vivências das gerações anteriores, ou seja, algo que expressaria a identidade de todos os homens, independente da época ou lugar em que tenham vivido. Também podemos compreendê-lo, como nos colocou Jung, pela conscientização dos conteúdos desse inconsciente, os já mencionados arquétipos (arkhétypos), que significa modelo primitivo, ideias inatas. Esses conteúdos, no mito “remontam a uma tradição, cuja idade é impossível determinar. Pertencem a um mundo do passado, primitivo, cujas exigências espirituais são semelhantes às que se observam entre culturas primitivas ainda existentes” (BRANDÃO, 2010, 39).
Mas ainda é necessário esclarecer que o inconsciente e seus conteúdos não podem se manifestar de forma conceitual, verbal, mas tão somente por meio de símbolos. A palavra símbolo, symbolon, do grego, vem de symbolê, que significa aproximação, encaixamento. Os gregos utilizavam o símbolo num sentido muito amplo de equivalência, no sentido de apontar ou ser equivalente a um outro, e que, ao mesmo tempo, é referido por aquele. Em outras palavras o símbolo é aquilo que se apresenta no lugar do outro, que o substitui, mas nunca arbitrariamente, pois o símbolo se dá por substituição ao seu simbolizado. Para então se chegar ao mito, que se manifesta por símbolos, é necessário “fazer uma equivalência, uma ‘con-jugação’, uma ‘re-união’, porque, se o signo é sempre menor do que o conceito que representa, o símbolo representa sempre mais do que seu significado evidente e imediato.” (BRANDÃO, 2010, 40).
Em síntese, concluirá Brandão, é os mitos a linguagem imagística dos princípios. São esses princípios que Mircea Eliade, em “Mito e Realidade”, identificará como tempo primordial, tempo fabuloso “do princípio”, pois o mito relata um acontecimento ocorrido nesse tempo, o que fará dele uma história sagrada. Eliade (1963) concorda que o mito fala apenas do que realmente ocorreu, daquilo que passou a ser devido às forças dos entes sobrenaturais. Os mitos revelam, portanto, “sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a ‘sobrenaturalidade’) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no Mundo.” (ELIADE, 1963, 11).
Se tomarmos o mito como uma história sagrada, assim ele deverá ser visto, sobretudo, como uma “história verdadeira”, já que sempre se refere a realidades. Sendo assim, conclui Eliade, que o mito cosmogônico, por exemplo, “é verdadeiro porque a existência do Mundo aí está para prová-lo; o mito da origem da morte é igualmente verdadeiro porque é provado pela mortalidade do homem, e assim por diante” (ELIADE, 1963, 12). Ora, se os mitos falam da realidade, como então considerar sua verdadeira função e seu impacto na história da humanidade, mas, sobretudo, como entender sua transição para a filosofia? Discutiremos a seguir.
A função do mito
Mircea Eliade nos mostra que o mito nos oferece uma explicação do Mundo e de seu próprio modo de existir no Mundo, isto porque ao rememorarmos o mito e reatualizá-los, “ele é capaz de repetir o que os Deuses, os Heróis ou os Ancestrais fizeram ab origine. Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas” (ELIADE, 1963, 18). Argumenta Eliade que não aprendemos somente como as coisas vieram à existência, mas, sobretudo, onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecem.
Outra possibilidade é quê, conhecendo a origem das coisas, consequentemente passamos a dominá-las e manipulá-las à vontade; e isso implica que não se trate, portanto, de um conhecimento abstrato, mas de um “conhecimento que é vivido ritualmente, seja narrando cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele serve de justificação” (ELIADE, 1963, 22). Isso significa que “viver” os mitos implica uma experiência verdadeiramente religiosa, pois ela, dirá Eliade, se distingue da experiência profana da vida quotidiana. Nessa experiência, ao se reatualizar os eventos fantásticos, assistimos novamente às obras criadoras dos chamados Entes Sobrenaturais, os personagens míticos, que nos permite deixar de existir no mundo banal para penetrar nesse mundo transfigurado, impregnado desses mesmos entes míticos. Em síntese, conclui Eliade que os mitos revelam que o mundo, os homens, e a vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, religiosa, sacra, e que essa mesma história é significativa, preciosa e exemplar, o que apontará o mito também como regra, como uma normativa que oferece regras práticas para a vida do homem.
O mito como educação e ethos
Como discutimos anteriormente o mito converge para uma função normativa, isto é, educativa e que oferece regras práticas para a vida humana. Mas para o filólogo alemão Werner Jaeger, em sua grandiosa obra “Paideia, a formação do homem grego”, Jaeger traz as poesias de Homero e Hesíodo como um verdadeiro modelo de paideia, mais precisamente, aponta Homero como o grande educador de toda a Grécia. Jaeger considera que Homero não deve ser visto como simples objeto da história formal, mas como o grande modelador de toda a educação grega. O filólogo justifica sua posição ao demonstrar que existe uma plena relação entre os aspectos estéticos e éticos da poesia épica, e que interagindo com os mitos, formam um conteúdo normativo expressa na obra de arte. Esses conteúdos são propriamente educativos caso suas raízes poéticas
mergulhem nas camadas mais profundas do ser humano e na qual viva um ethos, um anseio espiritual, uma imagem do humano capaz de se tornar uma obrigação e um dever. A poesia grega nas suas formas mais elevadas não nos dá apenas um fragmento qualquer da realidade; ela nos dá um trecho da existência, escolhido e considerado em relação a um ideal determinado. (JAEGER, 1995, 63).
Esse ideal se mostra nitidamente no sublime destino heroico do homem lutador, que é o sopro espiritual da Ilíada, mas também o ethos da cultura e moral aristocrática, presente na Odisseia. Para Jaeger, o propósito dos cantos homéricos também buscam manter vivos na memória dos homens os feitos gloriosos dos homens e deuses, identificados a partir dos mitos. É por isso que os cantos épicos partem de uma união necessária, e dirá Jaeger, inseparável de toda a poesia com o mito, pois anunciam o conhecimento das grandes ações do passado.
Os mitos passam então a ter um valor iminentemente educativo, pois seus exemplos exortam advertências e estímulos, a exemplificar os constantes conselhos que a deusa Palas Atenas adverte ao herói Ulisses e seu filho Telêmaco, na obra homérica Odisséia. Para Jaeger
O mito contém em si este significado normativo, mesmo quando não é empregado expressamente como modelo ou exemplo. Ele não é educativo pela comparação de um acontecimento da vida corrente com o acontecimento exemplar que lhe corresponde no mito, mas sim pela sua própria natureza. (JAEGER, 1995, 68).
É uma tradição do passado que celebra a glória, o conhecimento do que é magnífico, nobre, não sendo um acontecimento qualquer. Por isso para Jaeger os mitos constituem um tesouro inesgotável de exemplos e modelos de nação, que bebem nos mitos ideias e normas para a vida. São exemplos dados ricamente por Homero, provando a íntima ligação entre mito e a epopeia, já que Homero usa exemplos míticos para todas as situações possíveis e imagináveis da vida humana. Situações que podem vir a aconselhar, advertir, admoestar, exortar, proibir ou mesmo ordenar qualquer coisa. Jaeger entende que há no âmago do mito alguma coisa que tem validade universal, pois seu caráter não é tão somente fictício, “embora originalmente seja, sem dúvida alguma, o sedimento de acontecimentos históricos que alcançaram a imortalidade através de uma longa tradição e da interpretação enaltecedora da fantasia criadora da posteridade.” (JAEGER, 1995, 68).
A união da poesia com o mito está intimamente ligada à poesia como origem de cantos heroicos e gloriosos, de louvor e imitação da imagem do herói. A poesia épica traz por essência um mundo ideal, cujo elemento de idealidade está intrínseco no mito e contido no pensamento grego primitivo. Na Ilíada, por exemplo, Homero retrata a guerra como um quadro grandioso, abarcando todas as possibilidades humanas. A guerra de Ilíon representava para ele “a luta prodigiosa de muitos heróis imortais, da mais sublime arete — e não apenas gregos.” (JAEGER, 1995, 72). A aretê é a virtude grega que une as forças materiais com as forças da fé, impelindo um caráter ético-religioso dado aos homens virtuosos. Na Ilíada os grandes heróis aqueus encarnam a mais alta heroicidade figurando esse ato sublime.
Do mesmo modo a Ilíada, por meio da figura heroica e trágica de Aquiles, nos lega conforme Jaeger, um monumento imortal para o reconhecimento da vida, das tragédias humanas, de suas dores. Nesse sentido a grande epopeia de Homero
não representa apenas um progresso imenso na arte de compor um todo complexo e de amplo traçado; significa também uma consideração mais profundas dos conteúdos íntimos da vida e dos seus problemas, o que eleva a poesia heróica muito acima da sua esfera original e outorga aos poetas uma posição espiritual completamente nova, uma função educadora no mais alto sentido da palavra. (JAEGER, 1995, 73).
Para Jaeger a interpretação espiritual e criação das grandes epopeias gregas são, no fundo, uma e a mesma coisa, já que partem da mesma raiz que sua ação educadora, isto é, da mais alta consciência espiritual dos problemas da vida. Problemas identificados também pelo grande poeta Hesíodo, segunda fonte de valor cultural e educativo para os gregos, presentes nas sagas de sua Teogonia. Hesíodo, poeta do campo, parece falar mais aos seus ouvintes próximos exprimindo mitos que refletem a condição real e pessimismo da classe a que pertence, ou das causas das misérias e necessidades da vida social que os oprimem, por exemplo:
o mito de Prometeu, no qual Hesíodo encontra a solução para o problema do cansaço e dos sofrimentos da vida humana; a narração das cinco idades do mundo, que explica a enorme distância entre a própria existência e o mundo resplandecente de Homero, e reflete a eterna nostalgia do Homem por melhores tempos; o mito de Pandora, que é alheio ao pensamento cavalheiresco e exprime a concepção triste e prosaica da mulher como fonte de todos os males. (JAEGER, 1995, p.89)
Já no seu grandioso poema Teogonia, Hesíoso arquiteta uma evolução mítica do mundo, uma evolução cheia de sentido, que se fazem presentes não apenas forças dos entes sobrenaturais, mas também forças que intervenham em caráter moral. Para Jaeger o pensamento da Teogonia
não se contenta em pôr em interação os deuses reconhecidos e venerados nos cultos nem se se atém aos conceitos tradicionais da religião em vigor. Pelo contrário, põe os dados da religião, no sentido mais amplo do culto, da tradição mítica e da vida interior, a serviço de uma concepção sistemática da origem do mundo e da vida humana, elaborada pela imaginação e pela inteligência. Julga assim toda força ativa como uma força divina, o que é próprio de tal grau de desenvolvimento espiritual. (JAEGER, 1995, 94)
Esse grau de desenvolvimento só é possível porque o mito, como observa Jaeger, é como um organismo vivo. Ele desenvolve-se, transforma-se, e se renova initerruptamente. Cabe ao poeta estruturar e dar uma nova forma ao mito a partir de seu tempo e de suas motivações interiores. Desse modo o mito se mantém vivo a partir da contínua metamorfose de sua ideia, ideia que deve ser transportada pela seguridade do mito, seguridade que se expressa na relação do poeta com a tradição. Em Hesíodo essa relação torna-se ainda mais visível “visto que nele a individualidade poética aparece de modo evidente, age com plena consciência e serve-se de tradição mítica como um instrumento para o seu próprio desígnio” (JAEGER, 1995, 96);
Em suma, encontramos em Hesíodo a função primordial do mito, pois a verdadeira raiz de sua poesia está fundada num intuito educativo, cuja missão se encora na forma da linguagem épica, tal como foi absorvida a partir de Homero. Jaeger observa que, ao escolher Homero, Hesíodo definiu para a posteridade a essência da criação poética enquanto sentido social, educador e construtivo. Ele oferece o mito como uma força edificadora que “brota, para além de qualquer instrução meramente prática ou moral, de uma vontade de atingir a essência das coisas, vontade que nasce do mais profundo saber e que tudo renova”. (JAEGER, 1995, 96). Mas se o mito é essa força inesgotável que se renova, cabe então perguntar: como se deu então, sobretudo na Grécia antiga, sua passagem para a filosofia? Teriam os mitos na verdade se esgotados?
Do mito à Filosofia
Se tomarmos a Grécia como o possível berço da filosofia, então admitimos que as formas da vida espiritual grega prepararam o seu nascimento. Geovanni Reale, em “História da Filosofia Antiga”, adota a posição de que os grandes educadores gregos foram os poetas, sobretudo Homero, que legaram toda a espécie de alimento espiritual “essencial para se extrair modelos de vida, matéria e reflexão, estímulo à fantasia, e, portanto, todos os elementos essenciais à própria educação e formação espiritual” (REALE, 2005, 19). Segundo Reale, o poema de Homero manifestava algumas características do espírito grego que possibilitou o surgimento da filosofia. Para o historiador italiano, a imaginação homérica já se estrutura segundo o sentido de harmonia, da eurritmia, proporção, do limite e da medida, que se revelará, doravante, uma constante da filosofia grega.
Ademais, Reale também observa, seguindo na esteira de Jaeger (1995), que na poesia de Homero existe uma “arte da motivação” que é uma constante, no sentido de que “o poeta não narra só uma cadeia de fatos, mas busca, embora em nível fantástico-poético, as suas razões”. (REALE, 2005, 18). Nesse aspecto Homero não é um mero agente passivo que recebe a tradição e narra os fatos, mas é um agente que estabelece em cada poema nexos causais, em que cada evento é construído a partir de uma rigorosa motivação psicológica, preparando, conforme esclarece Reale (2005), os antecedentes da pesquisa filosófica da “causa”, do “princípio”, do “porquê”, das coisas.
Os poemas homéricos foram, portanto, primordiais para a fundamentação de determinadas concepções dos deuses e do Divino, além da normatização de diversos valores éticos dos homens, que passaram a ser verdadeiros paradigmas. A filosofia passa a se fomentar com esses paradigmas, que se deram a partir dos seus laços estruturais com a religião a grega, que se distingue em duas manifestações: a religião pública que tem o seu mais belo modelo respaldado em Homero, e a chamada religião dos mistérios cuja divisão é clara, pois “em mais de um aspecto, o espírito que anima a religião dos mistérios é negador do espírito que anima a religião pública”. (REALE, 2005, p.21). Observa-se uma fundamental importância na religião pública, pois se identifica que influi sobre o surgimento da filosofia.
Para Reale (2005), os deuses presentes na tradição homérica e nos poemas épicos e míticos são “forças naturais diluídas em formas humanas idealizadas, são aspectos do homem sublimados, hipostasiados; são forças do homem cristalizadas em belíssimas figuras. Em suma: os deuses da religião natural grega são homens amplificados e idealizados” (REALE, 2005, 21), e por serem amplificados e idealizados, são, desse modo, quantitativamente superiores a nós, mas não qualitativamente diferentes. É por isso que, para Reale, a religião pública grega é uma forma de religião naturalista, já que o homem identifica-se nos deuses, e tentando elevar-se a eles, não pode entrar em conflito com sua própria natureza.
Podemos identificar esse princípio parcialmente com os chamados pré-socráticos, os filósofos da physis (da natureza) “Quando Tales [de Mileto] disser que ‘tudo está cheio de deuses’, mover-se-á, sem dúvida, em análogo horizonte naturalista: os deuses de Tales são deuses derivados do princípio natural de todas as coisas (água).” (REALE, 2005, 22). O mesmo não poderá ser dito de filósofos como Pitágoras ao mencionar a “transmigração das almas”, ou Heráclito, ao mencionar um “destino ultraterreno das almas”, ou mesmo Empédocles, ao falar sobre a “via da purificação”, pois aqui surgirá a influência da religião dos mistérios, mais especificamente do orfismo.
Tais influências religiosas, ainda é mister esclarecer, não viriam a ser impedimentos para o surgimento da especulação filosófica, pois os gregos, a pesar dos mitos, não possuíam livros sagrados, tão pouco uma revelação divina, isto é, não possuíam uma dogmática, tendo por ausentes, por consequência, qualquer casta sacerdotal. Desse modo a religião dos mistérios floresceu na Grécia juntamente com a religião oficial.
Essa religião iniciativa e de mistérios, os chamados cultos órficos, observa Reale (2005), que consideravam como fundador do seu movimento o mítico poeta Orfeu, que encarnava um tipo de vida espiritual contrária aos heróis homéricos. O orfismo se pautava nas proposições que
a) No homem vive um princípio divino, um demônio, caído num corpo pro causa de uma culpa originária. b) Esse demônio, preexiste ao corpo, é imortal e, portanto, não morre com o corpo, mas é destinado a reencarnar-se sempre de novo em corpos sucessivos através de uma série de renascimentos para expiar sua culpa. c) A vida órfica, com as suas práticas de purificação, é a única que pode pôr fim ao clico de reencarnações. d) Por consequência, quem vive a vida órfica (os iniciados) goza, depois da morte, do merecido prêmio no além (a libertação); (REALE, 2005, p.24).
Notamos que com o orfismo nasce a primeira concepção de dualidade entre corpo e alma. Reale argumenta que pela primeira vez o homem se coloca numa contraposição de dois princípios, pois o corpo é visto como cárcere, e enfraquecendo a visão naturalista, passa a compreender que nem todas as tendências que o cercam são boas, e que, portanto, é preciso purificar o corpo, isto é, o elemento divino contido nele. Por consequência “estão lançadas as premissas de uma revolução de toda a visão da vida ligada à religião pública: a virtude dos heróis homéricos, a areté tradicional, deixa de ser verdadeira virtude; a vida passa a ser vista segundo uma dimensão totalmente nova” (REALE, 2005, 24).
Mas essa dimensão ainda não é uma dimensão plenamente racionalizada, pois não há uma razão plenamente científica, um logos (razão) que se apresente totalmente oposto ao pensamento mítico. Jaeger (1995) concorda com essa posição, ponderando que o início da filosofia não coincide, assim, “nem com o princípio do pensamento racional nem com o fim do pensamento mítico. [pois] Mitogonia autêntica ainda encontramos na filosofia de Platão e na de Aristóteles. São exemplos o mito da alma em Platão […] (JEAGER, 1995, 192).
Partindo desse pressuposto podemos encarar a história da filosofia grega como um processo de racionalização progressiva da concepção religiosa do mundo, implicada nos mitos e nas tradições. Sobre esse ponto ainda elucida Jeager sobre o surgimento gradual filosófico
Se o representarmos por uma série de círculos concêntricos, a partir da exterioridade da periferia para a interioridade do centro, veremos que o processo pelo qual o pensamento racional toma posse do mundo se realiza na forma de uma penetração progressiva que vai das esferas exteriores para as mais profundas e interiores, até chegar, com Sócrates e Platão, ao centro, quer dizer, à alma. (JAEGER, 1995, 192).
Ainda é preciso notar que esse gradual processo de racionalização também se respaldou em condições políticas, sociais e econômicas que viriam a favorecer o nascimento da filosofia entre os gregos. Os gregos gozavam de certa liberdade para que suas estruturas religiosas se desenvolvessem junto ao pensamento racional livres de dogmas e impedimentos. Reale (2005) também defende a ideia que também gozavam os gregos de certas condições políticas dadas com a criação da polis, pois essa possibilitou que o grego não sentisse mais “nenhuma antítese entre o indivíduo e o Estado e nenhum limite à própria liberdade e, ao contrário, foi levado a compreender-se não acidentalmente, mas essencialmente como cidadão de determinado Estado, de determinada polis.” (REALE, 2005, 26).
O Estado representava para o grego como uma espécie de horizonte próprio, em que cada indivíduo identificava-se com o Estado como os seus próprios fins, e o “bem do Estado como o próprio bem, a grandeza do próprio Estado como a própria grandeza, a liberdade do próprio Estado como a própria liberdade” (REALE, 2005, 26). Entretanto, advertirá Reale, que são dois os fatos políticos concretos que possibilitaram o surgimento da filosofia, e esses fatos se deram a partir dos nascimentos dos ordenamentos republicanos, e a partir da expansão dos gregos para o Oriente e para o Ocidente com a formação e fixação de novas colônias, transformando as condições socioeconômicas da Grécia que deixou de ser um país predominantemente agrícola.
Assim sendo, observa Reale (2005) a filosofia nasceu antes nessas colônias do que na própria pátria mãe, nasceu sobretudo, nas colônias do Oriente da Ásia Menor, desenvolvendo-se também nas colônias do Ocidente da Itália meridional, para só mais tarde se expandir na pátria mãe. Isso aconteceu porque
como há tempo se notou, as colônias puderam, com a sua operosidade e com o seu comércio, alcançar o bem-estar e, portanto, a cultura. E por causa de certa mobiliade que a distância da mãe pátria lhes deixava, puderam também dar-se livres constituições antes daquela. (REALE, 2005, 27).
Concluindo, as condições socioeconômicas mais favoráveis é que possibilitaram e permitiram o surgimento e o florescimento nelas da filosofia, a que devorante, tendo alcançado a pátria mãe, galgou novos desenvolvimentos ainda mais altos, o que se deu especialmente em Atenas, local que usufruía enorme liberdade, uma liberdade notoriamente reconhecida e gozada pelos gregos.
Referências Bibliográficas
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 2010. V.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.
GRIMAL, Pierre. A Mitologia Grega. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.
JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga: I: das origens a Sócrates. 6.ed. São Paulo: Loyola, 2008.