Info-víduo: novas tecnologias geram novas demandas

Projeto MemórIA
7 min readJul 12, 2024

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Por João Pedro Chevi

Uma das características que tornam os seres humanos tão únicos e distintos de outros seres e das máquinas, é a sua consciência. Por muito tempo, a palavra “consciência” foi utilizada como sinônimo de “inteligência”, sendo incoerente afirmar a sua equivalência no contexto das ciências cognitivas. Enquanto consciência diz respeito à capacidade de autoconhecimento, reflexão e experiência subjetiva que os seres humanos possuem. A inteligência, por outro lado, pode ser compreendida como a capacidade de processar informações, resolver problemas, aprender e adaptar-se a novas situações (Santaella, 2023).

Restringir a inteligência apenas aos seres humanos seria um grave erro, já que é possível observar, na natureza, comportamentos animais inteligentes. A fim de sobreviver, todos os seres vivos precisam estar em constante evolução e adaptação em razão das diversas mudanças ambientais — que, quase sempre, estão diretamente relacionadas com os impactos do comportamento humano. Um exemplo que recentemente tem ganhado notoriedade é a capacidade cognitiva dos corvos, que são capazes de gravar rostos, demonstrar emoções e, o mais impressionante, utilizar técnicas e ferramentas com a finalidade de conseguirem alimento.

As ligações entre a humanidade e a IA (Fonte: Imagem gerada através da ferramenta Leonardo IA, por Talita Magnolo, em 11 de julho de 2024.)

Um grupo de cientistas da Universidade de Oxford, no Reino Unido, observou com espanto quando a ave pegou espontaneamente com o bico um pedaço de arame na gaiola e, na sequência, usou um objeto próximo para dobrar uma de suas extremidades, transformando o arame em uma espécie de gancho. Esta ferramenta permitiu a Betty “pescar” um pequeno pedaço de carne de dentro de um tubo de plástico. Seu almoço estava servido. (BBC, meio digital, 2024)

De forma análoga, as aplicações da Inteligência Artificial, já se expandiram para além das máquinas laborais e dos programas com finalidades restritas, e pode ser encontrada até mesmo nos smartphones e aplicativos do nosso cotidiano, podendo, inclusive, ser concebida como inteligente. Primeiramente, é imprescindível compreender que as máquinas ainda não são capazes de auto replicação ou auto programação, ou seja, é necessário que sejam programadas com alguma finalidade e lhes seja entregue um banco de dados. As redes neurais artificiais têm como inspiração o próprio cérebro humano, logo seu modo de funcionamento também é semelhante ao funcionamento do tecido nervoso biológico.

Segundo Boden (2021), nada de radicalmente novo pode passar a existir através da IA, já que todas as possibilidades de mutações devem se situar dentro do espaço de possibilidades definido pelo programa. Para algo existir, precisa ser percebido no mundo exterior, portanto, se não percebemos e transcrevemos para a máquina, esta coisa não é uma possibilidade, uma vez que os programas consomem informações de bancos de dados. Logo, de acordo com biólogos e filósofos, apenas biologicamente seria possível a criação de novos sensores perceptivos.

Para Aristóteles, a sociabilidade humana está em seu âmago por ser um animal carente por natureza. O filósofo argumenta que o homem é um animal político, o que significa que ele tem uma propensão natural para formar comunidades e participar da vida pública. Diferentemente dos outros animais, desde o nosso nascimento somos inclinados às conexões interpessoais, uma vez que nascemos dependentes do amparo alheio — normalmente as mães — para se desenvolver e sobreviver. A razão e a linguagem são fundamentais para essa natureza social, pois permitem a comunicação, a deliberação e a cooperação.

Previamente inibidos pela distância, o advento dos avanços das tecnologias de informação disponíveis para a população média permitiu a conexão digital entre dois ou mais indivíduos. A grande primeira rede social foi o MySpace, criado em 2002, um blog gratuito personalizável, que permitia o consumo e a interação com artistas. A partir de então, as redes sociais vêm ganhando, cada vez mais, poder de influência no nosso cotidiano, visto que há uma crescente demanda de estar conectado no meio digital.

A princípio, as redes sociais não tinham fim lucrativo, mas, uma necessidade de suprir demandas de interações interpessoais e compartilhamento de interesses em comum. Contudo, no capitalismo tudo vira fonte de renda, e com as redes sociais não foi diferente. Tornando-se uma forma de anunciar outras empresas e produtos, e um meio de acumular as informações dos usuários para revendê-las e retomar o processo cíclico do capital. Quando se fala sobre o algoritmo das redes sociais, estamos falando, na verdade, sobre as aplicações da IA de modo a coletar os dados dos internautas e convertê-los em mercadoria para que outras empresas possam oferecer exatamente o que aquele usuário busca. O capitalismo faz com que vivamos em um mundo de pequenas concessões, resultando, portanto, na crescente dependência dos aparatos que nos conectem ao meio digital (Di Felice, 2021).

Info-víduo (Fonte: Imagem gerada através da ferramenta Leonardo IA, por Talita Magnolo, em 11 de julho de 2024.)

Di Felice (2021) cunha o termo “info-víduo”, utilizado para referenciar a entidade plural e complexa, formado por redes de diferentes tipos: biológicas, neurais, celulares, sociais, digitais, entre outras. A interação não ocorre mais de forma singular e única, quase tudo que nos cerca necessita, em algum nível, da sua existência, também, no mundo intangível. A formação do info-víduo exige um novo tipo de direito a ser agregado ao conjunto de direitos já existentes e relativos ao âmbito da pessoa física — direito à privacidade, anonimato, acesso a dados públicos.

A forma de rede do cidadão digital, da pessoa digital e a do indivíduo físico não são uma identidade dada, mas uma forma plural interativa, que precisa ser construída continuamente pela administração do fluxo de dados. O info-víduo não é, portanto, a sombra aumentada do sujeito político moderno e do ator social, cujas atividades são gerenciadas e reguladas pelas leis vigentes, mas uma complexa rede de interações que habitamos e que compõem nossa pessoa plural.

Quando usamos um smartwatch para aferir a pressão cardíaca ou contabilizar a distância percorrida e as calorias gastas nesta atividade, também é uma forma de extensão humana para o meio etéreo, como um outro sujeito que também está vivendo aquilo. Em junho de 2021, um idoso de 76 anos foi salvo por seu relógio inteligente — um Apple Watch — após detectar que o homem estava imóvel. O homem havia passado mal, desmaiado e caído. O aparelho é dotado de um mecanismo capaz de detectar uma queda brusca, dispara um alarme e a tela mostra opções de órgãos emergenciais, caso o usuário não respondam após um minuto, uma mensagem automática é enviada às entidades capacitadas (Correio Braziliense, meio digital, 2024). Ou nas redes sociais, por exemplo, em que compartilhamos nossas vivências, memórias e fatos das nossas vidas, não se trata apenas de uma réplica do indivíduo, mas uma ampliação da experiência do que é viver no século XXI.

O Brasil, atualmente, se destaca por apresentar legislação que atende também ao meio digital, a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). Trata-se da Lei nº 13.709/2018, aprovada em 2018 referente aos usos de dados pessoais e controle da privacidade do usuário na internet. É incontestável que a LGPD careça de melhorias e especificações sobre os usos da IA Generativa, por exemplo, visto ser uma lei já defasada em comparação ao exponencial desenvolvimento das tecnologias de informação. Já se passaram seis anos desde sua aprovação e muitas novas tecnologias surgiram e se desenvolveram desde então. Contudo, recentemente a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) proibiu a Meta de utilizar dados de seus usuários para treinar sistemas de inteligência artificial no Facebook, Instagram e Messenger, por apresentar “indícios de violações à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)”.

A vida online tem se tornado a nova realidade interativa, seja para fins pessoais ou corporativos, e não há meios que impeçam este processo. Estamos sujeitos às escolhas das Big Techs sobre nossas próprias vidas, tendo que escolher trocar a nossa privacidade pelo acesso à internet ou simplesmente não acessar. Não há nuances nesta batalha bilionária. Portanto, é preciso lutar para que as novas demandas sejam atendidas, leis que protejam de fato o usuário. Quando o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sofre com a disseminação de deep fakes, há um arsenal de advogados para defendê-lo frente à Suprema Corte. Mas quando meninas, menores de idade, são vítimas da geração de nudes falsos através de IA, o máximo que lhes são oferecidos é um pedido de desculpas e a suspensão de seus agressores por alguns dias, talvez. A balança da justiça que pesa os crimes cegamente claramente está desregulada e vendo muito bem, pesando mais para um lado do que para o outro e fazendo vista grossa quando há dinheiro envolvido.

O mundo tecnológico (Fonte: Imagem gerada através da ferramenta Leonardo IA, por Talita Magnolo, em 11 de julho de 2024.)

Bibliografia

BBC. A surpreendente inteligência dos corvos. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-52910678 Acesso em: 09 jul. 2024.

BODEN, Margaret. Inteligência artificial: Uma brevíssima introdução. São Paulo: Editora Unesp, 2020.

CORREIO BRAZILIENSE. Apple Watch salva vida de idoso de 78 anos após queda e desmaio nos EUA. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2021/07/4935889-apple-watch-salva-vida-de-idoso-de-78-anos-apos-queda-e-desmaio-nos-eua.html Acesso em: 10 jul. 2024.

CNN. Meta é proibida de usar dados de usuários para treinamento de inteligência artificial no Instagram e Facebook. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/meta-e-proibida-de-usar-dados-de-usuarios-para-treinamento-de-inteligencia-artificial-no-instagram-e-facebook/ Acesso em 10 jul. 2024

DI FELICE, Massimo. A cidadania digital: a crise da ideia ocidental de democracia e a participação nas redes digitais. São Paulo: Paulus Editora, 2021.

NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL. Por que alguns animais são mais inteligentes que outros? Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/animais/2022/08/por-que-alguns-animais-sao-mais-inteligentes-que-outros Acesso em: 09 jul. 2024.

SANTAELLA, Lúcia. A inteligência artificial é inteligente? São Paulo: Almedina, 2023.

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Projeto MemórIA

Publicações do projeto de extensão Memór.IA da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora.