Sir Francis Drake & Uncharted

Pedro Sciarotta
6 min readOct 25, 2017

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O mapeamento do navegador inglês na série da Naughty Dog

Por Pedro Sciarotta
(Atenção! Spoilers sobre a série Uncharted)

Sir Francis Drake existiu de verdade. Ele foi um famoso explorador, capitão e corsário inglês durante o século 16. Navegou ao redor do mundo, comandou batalhas marítimas e saqueou tesouros. Visto como herói pelo ingleses e pirata pelos espanhóis, Sir Francis Drake foi um homem de muitos feitos. Em Uncharted, virou antepassado do protagonista Nathan Drake. Mas como a veracidade de sua vida e de suas conquistas se mistura com a liberdade criativa da produtora Naughty Dog?

O primeiro ponto é o fato de Nate acreditar ser descendente do navegador. A questão é retratada na cena inicial do primeiro jogo da série, Uncharted: Drake’s Fortune (2007). Elena Fischer, a repórter e futura esposa de Nathan, destaca que Francis Drake não teve filhos de acordo com suas pesquisas, algo corroborado pelos fatos reais. Mas Nathan rebate. “A história pode estar errada, sabe?”, argumenta.

O assunto se repetiria em Uncharted 3: Drake’s Deception (2011), em um flashback que mostra a época em que o herói conheceu Victor Sullivan em Cartagena, na Colômbia. O então adolescente Nate rouba o anel de Sir Francis de um Museu Marítimo e justifica que está apenas pegando de volta um item que pertence a sua família. Sully atenta que Francis não teve herdeiros, mas Nathan responde que “pelo menos não com a esposa dele na Inglaterra”, sinalizando que o navegador poderia ter tido filhos com outras mulheres durante suas viagens. Mais tarde, no entanto, o próprio cânone da série parece aceitar o fato histórico. Marlowe, a antagonista do terceiro jogo, mostra conhecer o passado de Nathan e sugere que “Drake” não é o verdadeiro nome do herói. Isso indica que ele próprio teria adotado o sobrenome — após sua mãe se suicidar e o pai entregá-lo para tutela do Estado com apenas cinco anos de idade — por admirar as explorações do navegador.

A verdade finalmente é descoberta em Uncharted 4: A Thief’s End (2016). Nathan e seu irmão, Sam, invadem a casa de uma senhora chamada Evelyn à procura de itens da mãe que foram vendidos pelo pai. Evelyn é uma colecionadora que trabalhava com Cassandra Morgan, mãe dos meninos, e considerava-a a historiadora mais brilhante que já conhecera. A senhora conta que ela e Cassandra acreditavam que Sir Francis Drake havia tido herdeiros, pensamento contrário ao que é conhecido historicamente — mas a mãe faleceu antes que pudesse concluir o que teria sido sua maior realização. “Talvez um dia vocês possam terminar o que ela começou”, diz Evelyn, entregando o antigo diário de Cassandra para os irmãos. Esse acontecimento leva Nate e Sam a deixarem o sobrenome “Morgan” para trás e adotarem “Drake”, ansiando por uma vida de aventuras.

Pinturas da época mostram a Rainha Elizabeth nomeando Francis Drake como cavaleiro a bordo do Golden Hind, embarcação do navegador

SIC PARVIS MAGNA
Em Uncharted, o anel de Francis Drake é o item mais icônico da série. O objeto possui entalhado o lema verídico do navegador: “Sic Parvis Magna”, do latim, “a grandiosidade vem das pequenas coisas”. O anel não existiu, mas foi colocado em um contexto verdadeiro. Segundo o jogo, o item foi dado pela Rainha Elizabeth em 1581, quando Francis Drake recebeu o título da cavalaria britânica após sua expedição de volta ao mundo. Além da nomeação de “Sir”, Drake recebeu uma joia da rainha e seu próprio brasão por este feito.

Outro fato interessante é que Francis usava como emblema um wyvern vermelho, símbolo da família Drake de Ash, paróquia próxima à vila de Musbury, Inglaterra, com a qual ele alegava ter parentesco (qualquer semelhança com Nate é mera coincidência?). Seu novo brasão era composto por uma faixa ondulada e a representação das duas estrelas polares, Norte e Sul.

Tantas recompensas não eram por acaso. A mando da Rainha Elizabeth, a viagem de Drake era uma expedição contra os espanhóis na costa da América do Sul no Oceano Pacífico — e foi um sucesso. Drake capturou navios e voltou para a Inglaterra em 1580 com ouro, toneladas de prata, moedas e mais tesouros. A Coroa Britânica ficou com metade do carregamento, o que por si só ultrapassou todos os outros rendimentos da monarquia naquele ano. Drake ainda presenteou a rainha com uma joia feita de materiais raros do mundo, como ébano, ouro esmaltado e diamante.

A Joia de Drake (Drake Jewel), presente que Sir Francis recebeu da Rainha após sua travessia pelo mundo.

RESTOS MORTAIS
Em Uncharted: Drake’s Fortune, Nathan usa os números inscritos no anel de Francis Drake como coordenadas para encontrar o caixão dele na costa do Panamá. Acredita-se que o navegador, de fato, tenha sido enterrado no mar do país próximo à cidade de Portobelo, em 1596. No entanto, seus restos mortais nunca foram achados. Em 2011, Pat Croce, um estadunidense dono de um museu de piratas, organizou buscas na baía de Portobelo para procurar o túmulo de chumbo no qual o corpo de Sir Francis teria sido colocado com todas as peças de sua armadura. A empolgação cresceu quando os mergulhadores encontraram destroços dos navios Elizabeth e Delight, ambos da frota de Drake e que afundaram pouco depois da sua morte, mas o caixão continuou sem ser localizado nas profundezas do oceano.

Na ficção, Sir Francis Drake forjou sua morte. O caixão que Nathan recupera não contém um corpo, mas o “diário perdido” do navegador. Nate segue as pistas e encontra o esqueleto de Francis Drake em uma ilha não mapeada ao sul do Pacífico. O navegador teria morrido ao evitar que a maldição de El Dorado se espalhasse pelo mundo. O sarcófago de ouro — e não uma “cidade dourada” como pensava Nathan — transformou os espanhóis que colonizavam o local em demônios, o que selou o destino de Sir Francis. A realidade é mais sem graça: Francis Drake morreu de disenteria, aos 55 anos, após perder uma batalha contra os espanhóis em San Juan, Porto Rico.

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Texto publicado originalmente na coluna “Entre Pixels e Átomos”, na edição #216 da Revista PlayStation (fevereiro/2016). A matéria pode ser vista aqui: bit.ly/1mH9gIi.

Pedro Sciarotta é jornalista de games e trabalha como editor de produção nas revistas oficiais PlayStation e Xbox, publicadas pela Editora Europa.

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EXTRA:
AS NOITES DA ARÁBIA
Sir Francis Drake volta a ser uma figura importante em Uncharted 3: Drake’s Deception (a trama de Uncharted 2: Among Thieves se baseia em uma viagem de Marco Polo). Nathan Drake usa o anel de Sir Francis em um decodificador para encontrar a mensagem “Golden Hind” (“Corça Dourada”), nome da embarcação do navegador. Sir Francis deu esse nome a seu navio (que antes se chamava Pelican) em homenagem a Christopher Hatton, Lorde Chanceler inglês que ajudou a patrocinar sua viagem pelo mundo — a corça dourada era um símbolo do brasão do investidor.

A mensagem leva Nathan a encontrar um mapa que comprova (na ficção) que Francis Drake não demorou seis meses para atravessar as Índias Orientais. Em vez disso, o explorador foi direto para a Arábia, o que conduz o protagonista em uma busca pela lendária cidade perdida de Ubar, também conhecida como Iram dos Pilares ou A Atlântida das Areias. Mas essa é uma história para outro dia…

Mais imagens:

Retrato de Sir Francis Drake.
Retrato de Sir Francis Drake pintado por Marcus Gheeraerts. O quadro mostra o brasão do navegador no topo e a joia que ele recebeu da rainha presa à cintura.
Representação do brasão de Sir Francis Drake, que pode ser visto na cena inicial de Uncharted: Drake’s Fortune (imagem abaixo).
Momento em que Nathan Drake encontra o cadáver de Sir Francis em Uncharted: Drake’s Fortune
Trajeto da expedição de volta ao mundo feita por Sir Francis Drake. A viagem levou quatro anos.
Um dos principais feitos de Sir Francis foi servir a Inglaterra como vice-almirante na tentativa de invasão da Armada Espanhola em 1588. (Quadro pintado por Philipp Jakob Loutherbourg em 1796).

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Pedro Sciarotta

Jornalista de games nas revistas oficiais de PlayStation e Xbox no Brasil.