Nós somos, antes de tudo, inquietação. E para falar da inquietação primeira, é preciso relembrar a importância de compreender o que habita o espaço entre a mulher fotografada e o olhar que registra.
Por muito tempo, a possibilidade de registrar e criar imagens era predominante e irrestritamente dominada por homens. Fotografar era, sobretudo, poder. Poder institucionalizado, de quem detinha não só capital, mas também passe livre na esfera pública. Poder, por tabela, marcado por um olhar sexista, que refletia, em luz e sombra, toda a podridão da estrutura patriarcal.
Aos poucos, esse olhar virou mercado, moeda de troca, em preto e branco ou colorido, estampado nas capas de revista, nos outdoors, na tv, nas telas de cinema, bem grande, quase tangível, impossível perder de vista. Esse olhar seria responsável, pouco a pouco, por criar um outro ser a partir daquele que se encontrava na frente da câmera. Ele fabricaria o ser mulher, enfiando goela abaixo uma imagem já saturada de tão velha. Nos faria querer — e muitas vezes tentar — conseguir apagar tudo de mais subjetivo que levamos por dentro e por fora para imitar a imagem que não somos, que não nos é e que sequer existe. Aquela inalcançável, que nem todos os produtos de beleza da loja mais cara do mundo e nem todas as dietas e levantamentos de pesos e fitdances vão conseguir esculpir.
No meio do caminho, esse olhar passaria a sexualizar o nosso corpo. Nós, em pouco tempo, viraríamos mercadoria para outros olhares, também de homens. A nossa carne, imprópria, tarjada de nascença para nós mesmas, tabu. Para os homens, objeto e propriedade. O mundo mudou de uns tempos pra cá. Mas as coisas continuam as mesmas. Voltamos a ser expostas e desnudas pelo mesmo olhar, só que agora é pior. Dessa vez, vem com um discurso diferente. Eles falam de liberdade e aceitação, empoderamento. Os corpos, entretanto, são os mesmos, os de antes. Quem sustenta o olhar, vê e registra, também. Eles ganham likes, fazem carreira, dão aula, se reproduzem. Assediam, estupram, pedem desculpas, choram, somem, voltam, ganham likes, fazem carreira, dão aula, se reproduzem, assediam, estupram, pedem desculpas, choram, somem, voltam. Estão sempre voltando.
O Punho nasceu daí. Da revolta de ver homens encontrando na fotografia e nos corpos de mulheres um caminho mais fácil para sustentar e abafar seus crimes. Da inquietação e do cansaço de acompanhar todos os dias uma tentativa constante de universalizar o que é ser mulher. Do desgaste de presenciar a invisibilização institucionalizada dos nossos corpos, como eles são, e de quem somos, como somos. Da repulsa de assistir à sexualização, agora falsamente revestida de liberdade, de corpos exaustivamente repetidos e milimetricamente parametrizados, que não comportam tudo o que somos.
O Punho nasceu da inquietação que move. E da sororidade. Da admiração que nós, mulheres da e pela imagem, temos por outras mulheres que também o são e que, não de hoje, nos retratam mesmo sem nunca nos ter fotografado. Nasceu da necessidade e do querer unir forças, multiplicar conhecimento, trocar vivências, ocupar espaços. Nasceu da busca pela compreensão, desconstrução e reconstrução das mulheres que somos e que lutamos, dia a dia, para ser.
O Punho é sobre coletivo, sobre criar uma rede de mulheres que entende a importância daquilo que habita o espaço-entre a mulher fotografada e o olhar que está por trás de tudo e registra. O Punho é sobre imagem, mas é, acima de tudo, sobre o que acontece quando mulheres se juntam.