Um desafio de humildade

Em série de crônicas do Puntero Izquierdo, torcedores escrevem sobre a alma de seus rivais. Diante da final da Libertadores da América, um palmeirense fala sobre o espírito santista (neste link, uma alvinegra praiana trata do adversário alviverde).

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
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6 min readJan 28, 2021

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POR LEANDRO IAMIN

– O Negrão não podia fazer isso comigo! O Negrão quer me complicar!

Cosmo Cid é, na minha e na cabeça de muitos, o santista fundamental, de almanaque. Você o enxerga de bermuda e chinelo mesmo que vista calça e sapato. A pele está castigada, deve ser o sol, e tem uma dança na voz que pode não parecer carioca, mas indica o caminho de algum litoral. No caso do Cosmo, a voz também é arranhada, maltratada, algo entre o charuto e o pós-gol, e ele está furioso. Minha sala é pequena dentro da União das Escolas de Samba de SP, onde, aos 22 anos, exerço o cargo de assessor de imprensa e encontro tipaços como este. Cosmo parece um tigre enjaulado dentro do recinto enquanto grita que “o Negrão não podia fazer isso comigo”.

Esperei a indignação diminuir para pedir explicações. Tratava-se de uma propaganda dentro do jornal Lance!, que diariamente comprava e deixava repousado em minha mesa. Sempre que visitava minha sala, Cosmo dava uma espiada no que falavam do Peixe. Naquele dia, o Cosmo, que é fundador e presidente histórico da Torcida Jovem, esbarrou em uma propaganda de um plano de saúde na qual Pelé aparecia dando socos no ar vestindo as camisas de 12 grandes clubes do país, rivais inclusos. Pelé de São Paulo, de Palmeiras, Pelé de todo jeito. “O Negrão não podia fazer isso comigo”. Me apaixonei pela fervura do brio de Cosmo.

Ele tinha razão. Nunca me ocorrera, olhando noutros dias para aquela propaganda, que o “Negrão” tem um compromisso “com eles”, e veja bem, não é só “com o Santos”, é “comigo”. Pessoal. Cosmo, que estava acompanhado de outro diretor da torcida/escola de samba chamado Manequim, um apelido jocoso que apontava para seu sobrepeso espetacular, saiu da sala ainda contrariado, como se quisesse cobrar explicações ao Rei, e eu fiquei ali, parado, jogando novos e importantes pensamentos sobre a imagem “do santista” que eu tinha até então. Se pareciam tipos mais relaxados do que outros rivais, se soavam menos estridentes e imediatistas do que a média, talvez fosse porque a coisa do futebol pega neles por outro viés, de outro jeito, e preservar a imagem do Pelé, de repente, parecia mais importante do que a posição na tabela ou a manchete maldosa que o Lance! dedicava ao Santos naquela tarde.

Digo a amigos que o santista é, antes de tudo, um ser generoso com a gente. Ele tinha a chance de ser conosco mais esnobe que o mais convicto madridista. Poderia rejeitar toda conversa sobre futebol com o argumento Pelé.

Nunca tinha visto o Santos campeão, debochava do calção quadriculado, da lama do gramado da Vila, tirei sarro até da inauguração da iluminação do estádio santista, tirei onda com o 6x0 de 1996, me achava por cima da carne seca. Bastava, e eu não percebia, um “Leandro, a gente teve o Pelé”, e eu estaria arruinado. Ser adepto do time que tem o mais belo quadro da história do esporte deve ser um desafio de humildade, e me parece que eles se saem muito bem. O torcedor vira um pouco curador de relíquias intocáveis, responsável pelo polimento das pratas e das palavras, veste uma gravata invisível em tempo integral, e, passei a suspeitar depois, é clemente na sua frente, mas, por dentro, ri, ou deveria rir, de quem tenta diminuir seu tamanho, peso ou grau de rivalidade. O santista tem um blefe e uma fortuna que, à primeira desatenção, deseduca, e sem nenhuma atenção, enlouquece.

Voltando à União das Escolas de Samba, onde fui tão feliz por quase quatro anos: a presidenta da casa e o diretor financeiro, Edleia e Osmar, donos dos dois cargos maiores do negócio, eram santistas. Santistas, negros (“negrões”, diria o Cosmo) e da periferia e do samba, do barulho, do confronto. Falavam alto e colavam o Santos nas paredes. Até então os meus santistas eram diferentes. Edleia e Osmar me aproximaram da ideia do santista capitalino, possesso, expansivo, provocador. Os meus santistas viviam no Canto do Forte, na Praia Grande, como o Toninho, um policial que me levou as duas primeiras vezes à Vila Belmiro, ou então do outro lado da sala de aula — o mais proeminente santista da escola chamava-se Diego, apelido era Soneca, inofensivo nas segundas e quintas de vitórias santistas. Até aquela fase da vida, opressores eram os outros, não os santistas. Mudei.

O santista indomável, malicioso, protagonista, só fui conhecer, então, assim como muitos de minha geração, a partir de 2002, com o fim da fila e o aparecimento de personagens insolentes como Robinho, depois Neymar, que te venciam sorrindo e sugeriam outra vez o afastamento da imagem santista da ideia de guerra, sangue e outros códigos simbólicos bobocas da narrativa do jogo. É curioso, aliás, como figuras impertinentes e narcisistas, como Gabigol e o próprio Neymar, sejam tão diferentes da imagem do torcedor médio deste clube, e no entanto combinem tão bem com o que estes torcedores gostam de bancar em campo. Neste tempo, porém, um me danou a mente, encurtou a vida e me fez paradoxalmente grato: Ricardo Oliveira. Criei antipatia por cada amigo e amiga santista que se enamorava daquela infame figura, mas foi gostoso, olhando em retrospecto, sentir esta raiva misturada com temor. 2015 foi um ano de relação muito difícil entre eu e meu clube, a arena nova, e aquela vontade de esmagar a cabeça do Ricardo Oliveira no gramado serviu de ponte de acesso para um sentimento quase suspenso.

É evidente que em uma cidade com quatro grandes torcidas temos pelo menos seis cruzamentos de olhares rivais, e o caldo fica menos concentrado — o que não é, de jeito nenhum, um alívio, já que um torcedor de time paulista precisa secar um trio, não apenas o seu rival único. Nesta mesa cheia demais para pouco bolo, noto um ressentimento dos santistas com o lugar midiático. O santista tem certeza que ninguém assiste a seus jogos. Preterido na TV aberta, jogado por um longo tempo para o terrível horário do abajur, às seis e meia do domingo no Sportv, fora do horário nobre quando joga Libertadores, é tudo verdade, embora isso contraste com o clube ter, ao mesmo tempo, uma cidade só sua, com uma oferta de TV e rádio bem generosa e parcial.

Minha hipótese é que, a longo prazo, o santista se acostumou a uma vida emancipada desta expectativa de ser a manchete das manchetes, e seu lugar de debate e troca se dá em comunidades menores, sem estardalhaço de ressonância nacional. O que pode ser muito bom.

Certa vez perguntei aos santistas nas redes sociais como eles se sentiam com o fato de saberem que o Santos poderia ter mais Libertadores e mais Mundiais, caso não tivessem se retirado com Pelé e cuia de algumas edições nos anos 60. As respostas foram divididas: metade disse que sente falta das taças e aquilo foi um vacilo, enquanto a outra metade disse que tudo bem, as excursões foram lindas e engrandeceram o Santos da mesma forma. Me parece existir, nesta divisão, um resumo do que é o torcer por este clube. O santista tem um céu mais amplo para contemplar, tem questões existenciais mais densas do que os de outros times, e, tal quando precisa escolher entre Vila Belmiro ou Pacaembu, se vê em dilemas cujas duas opções são saborosas. Ganhar mais dois mundiais ou levar o time dos times para passear pelo Mundo? Ser santista envolve um pouco menos de pragmatismo. “Aquele time tinha que ser visto pelo mundo, não ser apenas o campeão dele”, foi a resposta que mais me recordo.

Quando nasci, meu pai foi presenteado por um amigo com uma camisa do Santos para este bebê. Nunca vi esta camisa, mas reza a lenda que ficou no congelador de casa por algumas semanas, “que é lugar de peixe”. Na quadra da Torcida Jovem, lá na Penha, onde morei, já tomei algumas Itaipavas. Se o Ademir da Guia me inventar de fazer propaganda de plano de saúde, me segurem.

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