Manada Humana

Patrick Prado
4 min readOct 5, 2021

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Estamos todos na mesma posição, como sempre. Todos posicionados nos mesmos lugares de sempre, sei quem é cada um dos que estão nesse aqui. O vagão treme um pouco e todos chacoalham, mas ninguém move um centímetro sequer, nem eu. Não preciso olhar, mesmo com a cabeça baixa sei de cada detalhe do que se passa ali, como todos os outros. É quase um acordo inaudível. Nunca fazemos algo que esteja fora da programação, o dia todo, todos os dias.

O trem para, alguns descem e outros ocupam seus lugares. O mesmo número de passos de ontem e do dia anterior. Cada um dos assentos se ocupa por novos passageiros enquanto os antecessores seguem suas rotinas habituais. Voltando às suas instalações talvez? Outros apenas iniciando nas suas funções laboriosas. Meu dia apenas começava, é claro. Pronto para fazer o mesmo que ontem, ou do dia anterior.

As telas por todo o vagão brilham intensamente, refletidas em seus donos parecem até aumentar. Alguém aqui sequer desvia o olhar? Espero que não, diferente demais. Até porque… O que será que poderia ser visto caso alguém desviasse o olhar? O que será que existe além das janelas quando o vagão está se locomovendo? Formas sombrias se movendo rapidamente por entre cenário ainda mais obscuros. Coisas que deveriam ser galhos secos raspando as janelas e deixando marcas permanentes. Sons indistinguíveis que fariam espinhas gelarem e pelos eriçarem.

Mas ninguém olha pela janela, então nada disso importa. Finalmente a porta abre e eu posso sair, mas nem nesse momento eu consigo saber se é dia ou é noite. Já faz algum tempo que tudo virou o mesmo, os números que vemos não representam mais nada além de trocas de turno, sequer a intensidade das luzes muda, um eterno dia ou uma eterna noite? Uma pergunta completamente irrelevante, decido não focar nisso, foco apenas em mexer minhas pernas o mais rápido possível, o lado esquerdo da calçada, da escada, da entrada, o lado rápido.

Seria sufocante de tão quente que é, culpa da superlotação do lugar, mas quem não esquentaria depois de tanto tempo ligado? Indo o dia todo de um lado pro outro, seguindo o mesmo cronograma de sempre.

Viro uma esquerda, como sempre, poderia ter apenas ido reto, e seria até mais fácil, mas sempre vamos todos pela esquerda. Acho que algo nesse trajeto já me incomodou algum dia, mas não tenho mais certeza disso. Hoje não incomoda, nem é agradável, apenas o que todos fazemos normalmente. Não vejo necessidade de questionar um hábito coletivo tão forte.

Caminhamos revezando entre passadas apressadas e passos vagarosos, depende apenas do lugar pelo qual a multidão está passando. O espaço se torna amplo, os passos se agilizam e sons orgânicos demais para ser de um dos nossos ecoam, é mais um daqueles dias. É uma pena, hoje é o dia no qual eu teria menos afazeres e poderia ir para manutenção mais cedo, mas teremos de parar tudo como sempre e contribuir para o repúdio. Os passos frenéticos viram em direção ao som, mantendo a velocidade.

O som se intensifica, a temperatura ambiente começa a subir e os passos começam a ir para ambos os lados ao mesmo tempo, metade de nós para um lado e metade para o outro, aparentemente eu fora programado para estar na margem do círculo perfeito formado ao redor das coisas que emitia aqueles sons ilógicos. Provavelmente era alguma linguagem fora da gama que tenho armazenado.

O animal aumentava o volume cada vez mais, parecia alterar sua cor de acordo com o volume alcançado. Se movia de um lado para o outro dentro do círculo que formamos, tocava meus iguais pelas pontas e se agitava freneticamente, sem dúvidas algo desprezível. Informados de como esse tipo de ser se porta ficamos apenas parados, a energia da coisa parecia acabar aos poucos, como se estivesse gastando rapidamente. Damos todos um passo para frente. Um dos membros da criatura toca alguns centímetros acima da parte por onde emite sons. Damos o segundo e o terceiro passo. A reação foi de olhar para os arredores, começou a mover o corpo mais vagarosamente, se movendo lentamente até o centro do círculo e girando seu corpo.

O círculo começa a diminuir com nossos passos e uma fresta é formada por onde passam os Néscios. Ele atravessa o círculo e o espaço entre nós e a coisa rapidamente. A coisa reluta, mas os Néscios sabem como lidar com isso e subjugam aquilo e o prendem no chão, imóvel. Finalmente, o fim do repúdio. Agora minhas tarefas voltam para a programação normal enquanto cada um de nós pisa na criatura ao chão, acabando com seu sofrimento repleto de ilucidez, o caminhar para meus afazeres volta a acompanhar a pisada dos meus iguais. Agora com um igual a menos, devido ao erro em sua programação.

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Patrick Prado

Eu sou Patrick, professor de inglês, tarólogo e hermetista. A relevância disso tudo? Bom, nenhuma e toda dependendo da perspectiva.