Fui estuprada e não fui à polícia

aquela coisa errada
4 min readMay 2, 2015

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Existe um comportamento humano totalmente compreensível que a gente vê nas redes sociais: quando uma tragédia ocorre, seja ela de proporções globais ou apenas uma injustiça no quarteirão, tendemos a tornar aquilo pessoal e falar das nossas experiências — nem sempre tão — relacionadas ao assunto.

Terremoto no Nepal: "Gente, vocês viram que horror o que aconteceu no Nepal? Mais de sete mil mortos, gente soterrada por quatro dias! Isso me lembra a vez que eu fiquei 40 minutos preso no elevador e…"

Entendem o que quero dizer? Mas, apesar deste blog ter o intuito expresso de ser centrado em mim, no caso Beco 203 eu tentei chamar atenção do máximo possível de pessoas apenas para o ocorrido. Só que, a essa altura do campeonato, vou ter que contar uma história bem particular para explicar porque o relato de estupro dentro da casa pode ser totalmente real, apesar do que dizem os representantes da mesma.

Quando eu tinha 25 anos e recém mudado para São Paulo, fui estuprada. A minha história é tão banal que chega a ser assustador. Pergunte para as mulheres com quem você tem intimidade e vai encontrar um número absurdo de gente que sofreu essa mesma violência, exatamente da maneira que vou narrar aqui.

No meu caso, levei anos para aceitar que aquilo não era sexo consensual, era sim um estupro. Eu tinha saído de uma festa com um cara que conhecia já fazia alguns meses e com quem tinha vários amigos em comum. Fomos de carro para a casa dele e lá, ficamos. Quando a situação evolui para fazermos sexo, eu declinei. Disse que não queria, que queria ir pra casa. Eu falei não incontáveis vezes, pedi para que ele me levasse para a minha cara ou que me deixasse pedir um táxi. Pedi que me deixasse ao menos sair do apartamento. A coisa começou a ficar agressiva e nós caímos no chão, ele por cima de mim. Lutei o quanto pude, sempre dizendo não, não, NÃO, PORRA!, mas ele insistia e tentava enfiar o joelho no meio das minhas pernas, para abri-las. Chegamos a um ponto em que eu estava cansada e percebi que não conseguiria ir embora, e que ainda corria o risco dele ficar ainda mais agressivo e me bater.

Acabei dizendo "tá bom" e tirei a calça.

Eu não tenho lembranças emocionais da situação. Não lembro de ter sentido nojo, dor, revolta, nada. Na verdade, por um bom tempo eu apaguei totalmente o que tinha acontecido e um dia, do nada, voltou. A lembrança que eu tenho é bem racional: concluir, muito friamente, que eu não conseguiria ir embora inteira e que então era melhor facilitar. Concordar. Fazer o que fosse necessário para que tudo terminasse logo. E foi isso que eu fiz.

Apesar de não ter ficado traumatizada como costumam ficar as vítimas de estupros violentos — e existe uma explicação psicológica para o meu caso; outro dia eu conto — essa é uma história muito, mas muito pessoal. Acho que devem existir umas quatro pessoas que sabem dela, contando com a minha ex-terapeuta. Nem minha família sabe.

Não contei ela aqui para comover ou gerar pena. Tudo que eu quero é esclarecer alguns pontos.

Eu nunca fiz um Boletim de Ocorrência e nunca vou fazer. Isso não quer dizer que o estupro que sofri não aconteceu. E, o fato de, depois de luta física eu acabar concordando e ter tirado a roupa também não constitui que eu consenti com aquela relação sexual. Eu fui coagida a fazer aquilo. Eu fui agredida, ameaçada e intimidada. E levei uns bons anos para entender e aceitar isso.

Então, voltando ao caso Beco 203. Existe a chance de a queixa (que seja de estupro, que seja de abuso sexual, que seja de assédio) ter sido retirada sim. Apesar de ter passado por uma situação semelhante, não dá para ter ideia do tipo de trauma que a noite de quinta para sexta tenha gerado na vítima. E também não temos como dimensionar a pressão que ela está passando. No post no Facebook eu menciono alguns fatores.

Por isso e por várias outras razões, a gente precisa compreender e aceitar caso a queixa tenha sido retirada e caso a vítima nunca queira se pronunciar a respeito.

Entretanto, retirar uma queixa não significa que o crime não aconteceu. Significa apenas que o queixoso desistiu de levar adiante, pelo motivo que for.

Outro detalhe que pode estar gerando confusão: a queixa pode estar lá, feita e mantida, bonitinha. Mas a vítima pode não querer processar civilmente a casa noturna. E isso também não significa que o crime não aconteceu.

Em janeiro um motorista tentou deliberadamente me atropelar quatro vezes, e quase conseguiu. Eu falei sobre isso neste post no Facebook.

E momento algum tive dúvidas de que iria registrar um Boletim de Ocorrência; afinal, o cara tinha tentado me matar e eu tinha a foto da placa do carro. No entanto, depois de todo o turbilhão, eu estava devastada. Moída, física e emocionalmente. Não tinha a menor condição de entrar numa delegacia e enfrentar um monte de gente questionando o que eu estava fazendo na rua, numa terça-feira 11h da noite (voltando do treino de futebol). Ou porque eu tinha saído do carro depois da batida (para tirar a foto da placa). Ou porque não tinha simplesmente corrido do motorista (porque eu não deixo ninguém me intimidar nem me ameaçar de graça).

Quem me ajudou foi a Wanessa, que entrou em contato com um amigo que é delegado de polícia, contou minha história e ele tomou meu depoimento. Até hoje eu penso que só consegui sair de casa no dia seguinte e ir até um DP registrar essa merda de boletim porque tinha gente me apoiando, me auxiliando, validando que não eu não era culpada e que sim, um idiota tinha tentado me matar na noite anterior.

Porque, gente: esse cara tentou me matar SIM. Em 2008, apesar de não ter registrado Boletim de Ocorrência, eu sofri um estupro SIM.

E essa menina, tendo retirado a queixa ou não, também sofreu uma violência. Provavelmente muito maior do que a gente talvez saiba, um dia.

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