Acampamento Cigano São Pedro — Ibirité | Foto: Rafaela Paranhos.

A luta do povo Cigano em Ibirité

Rafaela Paranhos
9 min readNov 25, 2019

Território, educação, saúde, assistência social e emprego. Estas são as principais demandas atuais dos povos ciganos de Minas Gerais, levantadas pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese-MG) em 6 visitas técnicas em diferentes municípios para ouvir os ciganos, principalmente da etnia Calon. No Acampamento Cigano São Pedro no município de Ibirité não é diferente. Ele existe desde o início da cidade e é o lar de 23 famílias (cerca de 80 pessoas) ciganas da etnia Calon, todos pertencentes à mesma parentela. Na cultura cigana é considerado parente até os primos de primeiro grau e os acampamentos são formados por tendas, morando uma família por tenda.

Utensílios domésticos no acampamento | Foto: Rafaela Paranhos.

RACISMO E PERSEGUIÇÃO ÉTNICA

A presidenta do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Conepir-MG), representante dos Povos Ciganos na Comissão de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais e membro da Associação Estadual Cultural de Direitos e Defesa dos povos Ciganos de MG, Valdinalva Caldas (Nalva), é moradora do Acampamento São Pedro e relata sua vivência. “Somos perseguidos por causa das roupas. Se eu entro no supermercado vestida de cigana o fiscal deixa de vigiar a loja, os bandidos de verdade, pra me vigiar.” Ela conta que foi a um encontro de assistentes sociais que havia sido convidada a participar em Belo Horizonte e, no horário de almoço da reunião, foi com outras participantes ao mercado central para comprar algumas coisas. “O segurança veio para o meu lado querendo me tirar de dentro do mercado central, porque eu era cigana e ali não era lugar de pedir.” Ela e as mulheres que a acompanhavam enfrentaram o segurança, o gerente chegou a ser chamado. “Eu peguei e falei, ‘você sabe com quem você ta falando?’ Aí o gerente viu que cometeu uma gafe ali naquela hora, veio e pediu desculpas. Meu erro foi não ter registrado uma queixa.”

Varal no Acampamento Cigano São Pedro em Ibirité | Foto: Rafaela Paranhos.

Nalva reforça a necessidade da aprovação do projeto de lei que cria o “Dia Estadual dos Ciganos”, em 24 de maio, para que a atenção da comunidade se volte para as pautas e demandas das comunidades ciganas; além da “Lei da Indumentária”, objetivando corroborar o direito ao uso de trajes e adereços tradicionais. “As meninas saem pra trabalhar e viajam pra vender o pano de prato e não podem vestir a roupa; até aqui na rua, a maioria das mulheres saem pra trabalhar, vender alguma coisa, não vestem roupa de cigana, porque se vestir roupa de cigana o pessoal não compra. Tem preconceito. A nossa luta é essa.

TERRITÓRIO

Desde 2017 os ciganos do Acampamento São Pedro estão em conflito com a prefeitura de Ibirité. “Quando começamos a nossa luta nós estávamos sofrendo ordem de despejo”, conta Nalva. Desde a fundação da cidade os ciganos estão presentes, e sempre estiveram migrando entre terrenos no município, removidos de um lugar pela prefeitura e tendo que procurar outro para se abrigarem. As retiradas muitas vezes eram violentas, “a polícia entrava dentro dos acampamentos da gente e jogavam tudo”, comenta Nalva; e reforça a existência da recomendação do Ministério Público ao Comandante Geral da Polícia Militar em Minas Gerais e ao Chefe da Polícia Civil em Minas Gerais, de 2013, que preza pelo absoluto respeito à garantia de inviolabilidade dos domicílios das comunidades ciganas.

Tenda no acampamento cigano | Foto: Rafaela Paranhos.

“A prefeitura que tira, só que dessa vez nós não aceitamos eles tirarem” diz Nalva a respeito das retiradas.

O interior e o exterior | Fotos: Rafaela Paranhos.

Ela relata que, em 2018, o prefeito, em conversa, havia deixado eles ficarem e o secretário de governo esteve inclusive presente no acampamento para dar aos ciganos um outro terreno. O mesmo disse que colocariam água e orientou que eles deslocassem o acampamento todo para lá. Itamar, marido de Nalva e líder deste acampamento, ficou desconfiado e decidiu levar apenas 2 barracas para o território. “Vieram aqui, pegaram os dados do Itamar, falaram que iam colocar água e que o acampamento podia subir, só subiu eu e mais uma barraca só pra testar”, conta Nalva.

Assim que terminaram a montagem das tendas, relatam que a polícia chegou com o dono do terreno. “Aí foi a maior humilhação pra gente, o Itamar sentou e falou ‘não, eu não vou sair, vai esperar pelo menos eu descansar, eu tô cansado, acabei de montar a barraca, se vocês viram a gente montando porque não chegaram aqui e avisaram? Foi a prefeitura que mandou’.” Ela acredita que foi “armação da prefeitura” e que se tivessem levado o acampamento todo para lá teriam ficado sem ter para onde ir e perdido o terreno atual. Permaneceram lá 3 dias sem água e então voltaram. Foi quando o oficial de justiça dirigiu-se até o acampamento com um representante da prefeitura e informaram aos ciganos que tinham uma ordem de despejo.

Nalva e Itamar relatam terem dito a eles que estavam errados, pois havia autorização da prefeitura para estarem lá e, a resposta que receberam do representante da prefeitura foi, segundo Nalva, que se eles não tirassem suas coisas, então seriam jogadas na rua, ou na porta da prefeitura para que lá resolvessem. Ela então os deixou no acampamento enquanto anotavam os nomes de todos os moradores e foi até a prefeitura se informar do que estava acontecendo. “Eles negaram isso tudo e falaram que não sabiam.” Ocorreu nos dias que se seguiram a formação de uma rede de apoio, a Rede de apoio aos Povos Tradicionais e Igualdade Racial, composta por: Ministério Público, Defensoria Pública, Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese-MG), Instituto Metodista Izabella Hendrix, a qual existe até hoje e está só aumentando. A defensoria dos direitos humanos entrou com um processo para impedir o despejo e suspender a ordem — o que ainda está em andamento.

Hoje, Nalva afirma ter uma boa relação e contar com o apoio da polícia de Ibirité. O impasse existente é que as opções de terreno apresentadas pela prefeitura à comunidade cigana não atendem às necessidades desta. Onde estão tem água, tem uma escola perto, “os terrenos que estão mostrando pra gente quando não é de gangue, onde tem briga de traficante e a gente fica no meio, levam a gente lá no deserto, só o primeiro comércio é 7 mil metros de distância, sem escola, sem nada”, conta Nalva. O local vigente parece ser um terreno que a prefeitura prometeu à indústria e agora está colocando a comunidade local contra a comunidade cigana dizendo ser para uma creche. É urgente a necessidade da regularização de territórios ciganos para que se garanta o acesso à terra e o direito à moradia.

Jogo de cartas no Acampamento São Pedro | Foto: Rafaela Paranhos.

EDUCAÇÃO

Alguns pontos positivos já foram conquistados. A comunidade cigana conseguiu vagas na escola estadual próxima ao acampamento, mas ainda há crianças que ficam sem e o preconceito dentro da escola existe. Yasmim, 7 anos, contou tristonha que queria muito ir para a escola e que, quando abriram vagas, foi com os pais rapidamente se inscrever, porém não conseguiu a vaga e está esperando ansiosa. São raros os ciganos que completam o segundo grau, eles costumam estudar apenas o fundamental, relata Nalva, isto ocorre tanto pela questão cultural, quanto também porque são expulsos; os municípios, ao expulsarem os acampamentos, retiram também as crianças da escola. Assim não é possível manter regularidade.

Existe um projeto de escola dentro do acampamento, o Galpão Escola — estão trabalhando em emendas parlamentares e recursos para este. Um ponto é certo: se a comunidade tivesse um terreno fixo, teria mais chance de estudar por mais tempo, o que nos aponta, novamente, a importância da questão territorial. Um avanço interessante são as cotas para ciganos na Universidade Estadual de Minas Gerais — UEMG, demanda da Associação Estadual Cultural de Direitos e Defesas dos Povos Ciganos, por considerar que grande parte dessa população tem dificuldade em acessar o ensino superior público.

Nalva diz que por vezes os meninos são taxados, por exemplo, de ladrões dentro da escola e não se mantêm por tal motivo. Outro ponto é o medo dos pais ciganos em relação às meninas continuarem nas escolas e sofrerem assédio dos meninos ou se envolverem com não-ciganos. “Lá não deixam vestir nossas roupas, tem que usar calça apertadinha no corpo, começa namorinho na escola com não-ciganos; não existe respeito”, comenta Nalva. Entretanto, tal receio só acontece com as meninas e nunca com os meninos, o que abrange mais uma questão: o homem pode casar com não-cigano, mas a mulher não.

Yasmim, 7 anos | Foto: Rafaela Paranhos.

SAÚDE

Desde 28 de dezembro de 2018 vigora um acréscimo na legislação no âmbito do Sistema Único de Saúde — SUS, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Povo Cigano/Romani. Nalva conta que antes eram discriminados em alguns serviços de saúde e que com esta positivação da lei isso vem mudando, agora ela apresenta a portaria se necessário para garantir a efetivação do direito ao acesso.

“Eu levei uma cigana pra ganhar menino, foi recente, não tem 1 ano isso, ela foi limpinha. Eu escutei o médico falando com a enfermeira nessas palavras, ‘leva essa cigana pra tomar um banho, porque isso pra mim é lixo’. Você entendeu agora, a palavra que ele falou comigo? Ele acha que eu não escutei, só que na época eu não tinha esse negócio de brigar nem nada. São essas palavras. Hoje eu sei. Hoje eu sei que eu posso pegar e brigar, e eu sei que racismo é crime, entendeu?” — Nalva.

Nano Pena da Silva, 62 anos | Foto: Rafaela Paranhos.

TRABALHO

A comunidade cigana de Ibirité se sustenta por meio do comércio e de recursos advindos de programas governamentais como o bolsa família e doações caritativas. Os ciganos trabalham com peças de couro e artesanato, fazem tudo no próprio acampamento e saem para vender. Nalva conta que hoje estão fazendo mais panos de prato e que o que é feito vai de acordo com o mercado. Vão sem data, levam uma quantidade de produtos e seguem em viagem até venderem; o carro é uma ferramenta de trabalho e no caminho costumam dormir em postos de gasolina pelas estradas.

POLÍTICA

Hoje os ciganos têm representatividade dentro do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial — CONEPIR/MG, que “tem por finalidade propor políticas que promovam a igualdade racial no que concerne aos segmentos étnicos minoritários do Estado, com ênfase na população negra, indígena e cigana, para combater a discriminação racial, reduzir as desigualdades sociais, econômicas, financeiras, políticas e culturais e ampliar o processo de participação social,” e Nalva é a presidenta do mesmo.

Eles possuem também representatividade dentro da Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais — Cepct, e em alguns Conselhos Municipais. Foi criada a Associação Estadual de Direitos e Defesa dos Povos Ciganos e está sendo criada em 6 municípios associações municipais, filiadas a estadual.

Valdinalva Caldas, 45 anos, e sua neta | Foto: Rafaela Paranhos.

“Nós estamos nos organizando”, afirma Nalva.

Fotos: arquivo pessoal de Valdinalva Caldas.

Mas ainda há muita luta pela frente.

Trabalho final apresentado à disciplina de “Oficina de Fotografia”, ministrada pela Prof. Anna Karina, do curso de Jornalismo da UFMG.

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