Grito e silêncio

Rafael Godoy
3 min readOct 13, 2022

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Por Rafaela Maria

Entre os teus dedos eu era uma espécie de passado que ainda não fazia muito sentido na minha cabeça. Como se uma fita VHS se entrelaçasse num DVD, um choque de gerações não tão distantes, mas ambas descartadas pela impiedosa patologia do ser social. A carne era só um pedaço.

Eu enrolava aquele cigarro com tanta clareza no espírito que as minhas únicas dúvidas eram sobre em que horário fumaríamos, se seria na varanda ou na garagem abandonada. Se veríamos a noite com os olhos turvos de planta ou de álcool. E eu ria ao pensar essas merdas, porque eu lembrava da tua voz dizendo que eu planejo demais. E você deitada, acariciando minhas costas e mexendo no celular, parecia estar em paz também.

O maior conflito que havia era o tempo. O tempo pelo qual nunca fiz questão em saber, mas me perdia constantemente nessa brecha, nessa coisa que a gente julga ser relativa. “Eu não tenho um relógio”, gritava a vida. E eu não fazia a mínima noção se aquilo era passado, presente, futuro, ou qualquer coisa solta no meio disso tudo. E por mais que pareça angustiante, confesso, foram os melhores dias das minhas noites.

A viagem já tava marcada. A primeira. Não a nossa primeira viagem, mas a primeira sendo com todos aqueles objetivos traçados. E de objetivos você conhece bem, inclui vários todos os dias na lista. O maior deles era aquela primeira viagem. Não ela, exatamente, mas o ponto de partida. A nossa vida de andarilho, de nômade, tomando gás. Voltávamos às nossas raízes.

Desde que a cartomante havia previsto a fatura completamente paga por causa do bom investimento que você teria a fazer — e escrevo isso sorrindo — as coisas caminhavam pra um sonho que nunca mais a gente tinha sonhado. Não posso dizer que tava tudo escrito, mas desenhado. E a fila dos frustrados, dos insuficientes, dos incompletos, perdia duas pessoas extremamente importantes. Dois grandes ativistas da causa. A gente venderia a casa.

O apartamento, embora alugado, parecia ser mais a nossa cara. A varanda floral, o piso em tacos, as portas abertas pra ventilar e mais um cheirinho de coisa boa vindo da ponta dos teus dedos, sempre eles. Eu não sabia se a gente tava indo longe, mas pra gente só o fato de ir já contava muito. E o aluguel não seria pago.

Falando assim, parece mais uma morte anunciada. Não, nunca foi. Não haveria de ser fatal uma coisa tão vívida. Os goles que precisávamos dar já haviam sido engolidos, as pontas que precisávamos fumar já haviam sido queimadas e a caminhada, principalmente ela, já tinha conquistado seu descanso de ser só. Não que a gente fosse descansar na melhor hora, afinal, nem eu nem a vida temos um relógio.

Você gritou algumas vezes, porque o futuro sempre foi teu medo mais constante, mais pungente, mais bonito. E nunca foi pelo medo de vivê-lo, mas sim pelo temor de não conseguir viver todos os futuros possíveis. Os choques de gerações eram dois fusíveis, interligados nessa cabeça elétrica e nesse chacoalhado de pernas.

Reclamar dos textos que eu escrevia sobre você já era um hobby muito bem quisto, parecia que você gostava de odiar a Cristo, se me entende. Eu sempre adiava, o melhor estava por vir. Mentira, eu só torcia por isso. Nunca tive satisfeito, e se te amassava em minhas palavras, era nada mais que um grito da torcida. Um grito tão entoado que a desgraça morria de vergonha por tudo que eu fazia pra me manter no jogo. Por tudo que fazia pra temperar o teu corpo esmagado e tentar refazer a comida.

Bem, eu não sei se demorou, porque como já disse, eu não tenho um relógio. Por isso, o nosso futuro-passado confunde-se tanto quanto eu, dentro de um presente esperançoso. Mas tá aqui, uma composição alternativa que será enviada como artigo do tempo, que nos falta. Ou, vai ver, nos sobra. O que eu tenho mesmo é a certeza de que estou lombrado, de que não sei as horas e de que você, por mais bonita que seja, não vai me convencer que estamos errados. Deu nas cartas.

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