A eterna novela: arte e design em 3 atos

Rafael Frota
7 min readJan 10, 2018

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Teto da Capela Sisitina , por Michelangelo: um dos maiores exemplos de design da História da Arte

Ato I — O que é arte?

As palavras podem assumir várias significações, independente do real sentido que elas exprimem. Podemos usar “filme”, por exemplo, tanto para exprimir aquilo que vemos no cinema ou na televisão quanto para enaltecê-lo — como na frase “isso sim é um filme”. Ao usarmos uma palavra em seu sentido original, tomamos seu sentido classificativo, ou seja, ela exprime exatamente aquilo que propõe. Se, ao contrário, a usamos para exaltar uma qualidade daquilo ao qual nos referimos, estamos usando seu sentido valorativo. Se cada palavra pode assumir um sentido, dependendo do contexto em que é empregada, com a arte não seria diferente.

Arte vem do latim ars, equivalente ao techné grego, ambos relacionados ao conjunto de regras para dizer ou fazer com acerto alguma coisa — ou seja, técnica, capacidade, habilidade. Se tomarmos este como seu sentido classificativo, entendemos que qualquer pessoa que siga um método está se utilizando de arte: seja um médico ao fazer uma incisão, um professor elaborando seu plano de aula ou um servente limpando o chão. Neste ponto fica impossível distinguir a produção artística como a entendemos de qualquer outro tipo de ofício.

Na maioria das vezes quando pergunta-se o que é arte, na verdade está se indagando sobre o sentido valorativo do termo, a tal “Arte com A maiúsculo”, ou até mesmo “boa arte”. Daqui por diante, para simples efeito de distinção, passarei a adotar a palavra arte, com minúscula, para me referir ao sentido original da palavra, e Arte, com maiúscula, para abordar os aspectos valorativos do termo.

Mas então, o que é Arte? Muitas teorias se propuseram a responder essa questão buscando propriedades que as definissem em sua totalidade, uma essência comum entre todas as obras de Arte. Essas são chamadas de teorias essencialistas, como as teorias da Arte como expressão (só existe arte quando se exprime a emoção do artista) e a da Arte como imitação (uma obra de Arte só acontece quando se imita algo natural). Porém, as teorias essencialistas sempre falharam na tentativa de universalizar o conceito. Tratando-se das teorias citadas, a Arte não pode ser só uma imitação, pois abrange o abstracionismo, como também não depende da expressão do artista, pois vários foram os artistas que não buscavam uma expressão pessoal.

Mulher com sombrinha, por Monet: no Impressionismo, o subjetivismo deu lugar a uma razão quase científica.

Dentre todas as teorias, a que mais pode fazer sentido é a da “forma significante”, ou seja, classifica a Arte como algo que gera algum sentimento estético no espectador. Esse pensamento tira a autoridade do objeto e passa a figurar no espectador.

É importante, nesse ponto, que mudemos a abordagem da questão. Definir o que é Arte é uma tarefa tão complexa e subjetiva quanto definir o que é algo bonito ou gostoso, pois tudo faz parte de um sem número de fatores que influenciam nosso juízo estético. Se eu não gosto de peixe, isso não quer dizer que o peixe seja uma comida ruim. Se isto parece óbvio, por que tanta gente generaliza o conceito de Arte usando unicamente valores pessoais? O que parece mais justo é que a questão seja revista para algo como “o que eu aprecio ou entendo como arte”, pois assim colocamos o foco na subjetividade de cada um, assumindo que Arte é um conceito individual e intransferível. Afinal, como diz o dito popular: o gosto pessoal não se discute, se lamenta.

Ato II — A arte e o design

De acordo com o designer Charles Eames, “o design é um plano para dispor elementos de maneira a melhor atender a determinada intenção”. Essa definição pode ser vista de uma forma divertidíssima em um esquete do grupo inglês Monty Python, onde Michelangelo, supostamente contratado para pintar a última ceia, refuta com seu cliente — no caso o Papa — a importância da liberdade artística numa obra de arte, mesmo que se utilizem elementos sem a menor coerência, como gelatinas, cangurus e malabaristas para contar uma história bíblica. Vemos aqui que o trabalho de design não é uma criação subjetiva, ele está sempre focado a resolver as necessidades do cliente.

A Penúltima Ceia, esquete do grupo inglês Monty Python

Passando do falso Michelangelo para o verdadeiro, o seu trabalho para o teto da Capela Sistina, embora considerada uma das maiores obras de Arte do mundo, também é um exemplo de projeto de design. Cercado por várias limitações criativas, refeito várias vezes, com orçamento apertado e em condições precárias de trabalho, nem de longe encontramos em Michelangelo a figura mítica do artista que trabalha pela pura licença poética, como se pensa por aí. Isso mostra que, o ato de se fazer design é bem anterior à própria invenção da profissão de designer.

Artistas não são apenas loucos que expõem coisas sem-pé-nem-cabeça em galerias. Artistas têm tanta técnica a aprender quanto os designers. Se você não acredita, procure entender como se faz o talho-doce ou a marca d’água de uma cédula, e por que esse tipo de arte ainda é usada por todas as Casas da Moeda do mundo como o método mais eficiente de segurança de papel-moeda. Os processos de reprodução mecânicos como conhecemos hoje eram feitos artesanalmente por mestres em oficinas de gravura. Por isso, dizer que artistas não têm compromisso com a utilidade ou com a técnica, apenas com a expressão, é uma generalização tão absurda quanto dizer que designers são pessoas que fazem coisas bonitinhas.

A Virgem das Rochas, por Da Vinci: a versão reprovada e a aprovada.

Grande parte do que conhecemos como obras de Arte, em sua origem, foram trabalhos feitos por encomenda, exatamente como qualquer projeto feito hoje. Não é difícil encontrar na História da Arte versões reprovadas de grandes obras, como as duas versões de “A Virgem das Rochas”, de Leonardo da Vinci. A arte sempre esteve ligada a funções comerciais: as pinturas rupestres estavam ligadas a crenças religiosas, as cerâmicas gregas eram utilitários domésticos, Tolouse-Lautrec teve grande expressão com seus cartazes publicitários, a Art Nouveau trouxe aplicações artísticas para objetos do dia-a-dia, como saleiros e espelhos, até chegarmos à Bauhaus e ao que hoje conhecemos como design.

Design e Arte não são objetos diferentes, a problemática e a extensão deles é que os separam. A função vai definir a forma ,seja em um ou em outro, porém as aplicações são diferentes. Um cartaz de Mucha é uma peça tão comunicativa como uma capa da Moema Cavalcanti. Uma ilustração de Marcos Garuti poderia ser facilmente exposta em uma galeria. Algumas pinturas são feitas com uma paleta específica para melhor atender a decoração de uma casa e nem por isso são chamadas de ilustração. Sem falar dos trabalhos de David Carson, que desrespeitam a maioria dos cânones do design e mesmo assim atendem com perfeição o público que as consome. Arte e design são respostas, as perguntas é que são diferentes.

Ato III — Finale — design é arte?

A palavra “arte plástica” vem do princípio de plasmar, ou seja, transformar uma ideia em algo concreto. Antigamente, as artes, de um modo geral, eram classificadas em dois grupos: as plásticas, que constituem todo tipo de manifestação de cunho estético-visual, como a escultura, pintura, gravura, arquitetura e o desenho, e as rítmicas, que possuíam a influência do tempo, som e movimento, como a dança, o teatro e a literatura.

Com o tempo, esses grupos foram se desdobrando graças o surgimento de novas tecnologias, algumas híbridas como o cinema e a televisão. Porém, algumas ainda são facilmente enquadráveis na ideia de arte plástica, como a fotografia e, claro, o design. Sim, porque design é uma arte, pois requer técnica, e é plástica porque é visual. Isso nos prova o primeiro fato: design é arte no sentido classificativo do termo.

Partindo para o campo subjetivo, nos resta saber: afinal, design é Arte, assim, com A maiúsculo? A resposta é simples: quem sabe é você. O conceito valorativo de Arte parte da sua referência intelectual e nada pode ser dito para mudar isso. Não importa se ela é aplicada, comercial, pura, expressiva ou o que seja. O único crítico dessas obras é o seu juízo de gosto.

David Carson — Anúncio para Nike

Alguns podem pensar que este tipo de visão acaba caindo na máxima “se tudo é arte, nada é arte”. Não é bem por aí. Há de se pensar que tudo que é feito pelo ser humano, dependendo do contexto em que está inserido, pode ser visto como Arte, mas isso não quer dizer que seja realmente. “Ser” é bem diferente de “entender como”. É lógico que no meio de tanto embuste, fica difícil saber o que é realmente bom ou ruim, porém generalizar não resolve essa discussão.

Como disse Ernst Gombrich, em seu livro “A História da Arte”:

“Não existe Arte com A maiúsculo. Existem somente artistas. (…) Aquilo que chamamos ‘obras de arte’ não é fruto de uma atividade misteriosa, mas são objetos feitos por seres humanos para seres humanos”.

De certa forma somos todos artistas e sempre há um pouco de arte e de Arte no que fazemos. Por isso, tentar colocar Arte e design como problemas distintos é apenas tapar o sol com a peneira.

Publicado originalmente em Aguarrás, vol. 4, n. 18. ISSN 1980–7767. Rio de Janeiro, MAR/ABR 2009

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